Capítulo XVI [PARTE UM]
A CASA DOS WRIGHT iluminava a madrugada como um farol na escuridão. Era pouco depois das duas da manhã e, naquele silêncio, os pais de April provavelmente a ouviriam chegar a quadras de distância. Hunter guiou a moto pela rua fechada e o asfalto liso deu lugar a pedrinhas soltas de cascalho. Os cilindros ainda vibravam entre suas pernas quando April desceu da máquina: um par de pés descalços, cabelos castanhos desgrenhados e um vestido com a barra completamente imunda. Campbell ficou em dúvida se ela era um furacão ou o rastro de destruição que ficou para trás.
— Deixa que eu te ajudo com isso — murmurou, notando a falta de jeito da menina com a correia do capacete.
O olhar que ele recebeu de volta foi resposta o suficiente para fazê-lo recolher as mãos.
Segundos depois, o capacete desafivelado atingiu a grama.
Sem dúvidas, um furacão, ele pensou. Dizer que April estava irritada era menosprezar deliberadamente a situação. Hunter estava ficando sem superlativos para descrever o tamanho da fúria da menina.
Depois de correrem às cegas e despistarem um policial, April deixara bem claro que o ruído da Harley não era bem-vindo nas redondezas da casa dos Wright. A menina disse em outra ocasião que os pais tinham horror a motocicletas e jamais a permitiriam subir em uma. Hunter poderia facilmente ter estacionado a alguns quarteirões para acompanhá-la a pé até a porta, mas estava tarde e ele estava cansado — todas aquelas regras estavam começando a soar como ordens e ninguém o dizia o que fazer.
April não precisou tocar a campainha. Assim que alcançou a varanda da frente o barulho de passos apressados se fez presente do outro lado da porta e luzes no interior da casa foram acesas uma por uma. A menina apenas cruzou os braços em frente ao corpo e esperou, agarrando-se a jaqueta de couro preta ao redor dos ombros.
— Graças a Deus! — a porta se abriu revelando uma figura rechonchuda, alguns centímetros mais baixa que April. Era Greta, a governanta. Ela recebeu a menina com a touquinha de dormir ainda nos cabelos e Peludo, o assustador gato persa, pendurado em seu colo — Estava preocupada! Entre, senhorita April.
Uma vez dentro da casa, a governanta estendeu o felino para menina que o segurou como pôde. April estava vagamente familiarizada com o peso e a forma do inquilino — aquela era uma bola de pêlos cinza como fuligem e carente como poucos gatos eram. Peludo ronronou ao receber um carinho hesitante, fechando os olhos amarelos em sinal de confiança e April arriscou um olhar hesitante para cima.
Na mesinha do hall havia uma xícara fumegante de chá e um livro de mistério gasto, com a lombada surrada. Ambos pertenciam a Greta, assim como o felino em seus braços. April sabia que uma vez que subisse as escadas todos os sinais de que Greta estivera nessa parte da casa desapareceriam como se a governanta nunca tivesse pisado ali.
— Greta! Você ficou acordada esperando por mim?
A governanta não respondeu. Havia congelado antes de fechar a porta e olhava fixamente para um ponto acima dos ombros de April.
Cabelos desarrumados, vestido de preto dos pés à cabeça, soturno como o diabo. Até o momento, Hunter não havia dito nenhuma palavra. Apenas alguns metros atrás dele, a moto se posicionava exatamente sob a mancha de luz em frente da casa, reluzindo como joia recém polida. Era como somar um mais um.
A maçaneta dourada rangeu envolta pelo aperto firme dos dedos enrugados da governanta.
— Eu explico tudo — a menina prometeu, aproximando-se de Greta com Peludo no colo — Greta, onde está todo mundo?
— Estão todos na festa, senhorita — a governanta não tirava os olhos do garoto, franzindo a testa escondida pela touca — Seu carro deveria ter chegado há algum tempo... Eu fiquei preocupada.
— Eu a trouxe — Hunter sorriu charmoso apesar do cansaço. Ele era uma figura conhecida naquela casa, assim como os outros meninos amigos do Cole — Nós perdemos a noção do tempo enquanto conversávamos. A senhora entende, não é?
— Sim, sim — a governanta concordou, as bochechas redondas enrubescendo como duas maçãs.
Houve um pequeno silêncio no hall de entrada da casa dos Wright e April constatou que Peludo era mais pesado do que parecia — seus braços definitivamente agradeceriam se tivessem um pouco de descanso.
De repente, o som do telefone tocando irrompeu dos corredores e Greta se agitou.
— Devem ser seus pais! Eles disseram que ligariam quando estivessem a caminho — a governanta pousou os olhos na menina e soltou uma exclamação de puro horror — O que aconteceu com a senhorita?
Hunter refreou um sorriso. Era bom ver April se atrapalhar com as palavras para variar — ela parecia mais uma adolescente comum, menos determinada em foder a vida dele.
Foi inútil tentar arranjar uma explicação convincente para o que aconteceu com o vestido: o cabelo despenteado dava uma pista, mas o rosto, vermelho de vergonha, era o que entregava o jogo. Aquela senhora não era boba. Ela deixou April falando com o vento depois de acenar com a cabeça algumas vezes e foi buscar o telefone.
— Então, você "caiu no gramado"? — Hunter provocou, sua voz baixa próximo ao ouvido dela — Isso foi antes ou depois de correr uma maratona?
Aproximou-se aos poucos, pousando os olhos azuis no rosto da menina, mas seu truque não teve efeito. A armadilha dependia do contato visual para obter algum resultado e no momento April estava concentrada demais em dar atenção para o Bola de Pêlos.
— Você não pode dizer que eu menti sobre a parte de correr.
April estava irritada, ele sabia disso. Sexo no chuveiro, amassos na biblioteca... Todas essas foram ótimas idéias. Sexo ao ar livre estava indo para o mesmo caminho, mas algo entre perder os preciosos saltos e fugir de um policial acima do peso deixou April possessa.
— Quer uma dica para futuras armações? Quem se explica demais está devendo.
Um repuxar de lábios recheado de escárnio se espalhou pelo rosto da menina:
— Não acho que você esteja em posição de aconselhar ninguém agora.
— Pense melhor, April — a risada masculina soava rouca, no pé de seu ouvido — Acho que você esqueceu com quem está falando.
Finalmente, ele tinha as íris castanhas apenas para si. Ferozes, cheias de fogo. Hunter queria tudo que ela tinha para dar.
Mostre-me o quanto você me odeia.
Hunter a segurou perto e ela não resistiu. Cada respiração era um incentivo. No momento em que seus lábios tocassem os dela, tudo se consumiria em fogo.
Aquilo era tudo o que Hunter desejava naquele segundo.
Peludo, o gato persa, discordava em gênero, número e grau — seus planos para a noite eram outros. No colo de April ele sibilou como uma cobra e estirou seu pequeno corpo, obrigando os dois a se afastarem. Parecia pronto para dar o bote, os pêlos cor-de-cinzeiro erriçados e as garrinhas de fora.
— Mas que merda?!
— Não tente me beijar na frente de outras pessoas, Hunter — a menina virou o corpo, escondendo Peludo dele. Foi como se ela tivesse deixado o lapso para trás em questão de segundos — Você sabe das regras.
As malditas regras de novo.
— É um gato, April! — a voz dele transmitia mais raiva do que o planejado —Com bigodes, orelhas e patas de gato. Não é como se ele fosse sair por aí contando!
O felino folgado havia arruinado tudo. Hunter sempre soube que havia um bom motivo por trás de sua preferência por cães. Isso não importou muito porque logo o som dos passinhos esbaforidos de Greta atravessou o corredor e se tornou cada vez mais alto. Em um piscar de olhos, a governanta estava de volta, tomando o gato irritadiço do colo de April e empurrando-a escada acima.
— Vá para seu quarto, senhorita April — a governanta lamuriava — Seus pais chegarão a qualquer momento! Amanhã é dia de aula.
— Eu só preciso falar com ela por um segundo — Hunter conseguiu chegar ao pé da escada antes de ser interrompido pela mais velha, que se colocou entre os dois — Por favor, Greta.
Alguns degraus acima April o observava com a postura altiva de uma leoa. Aquela selvageria lhe caía bem sobre os ombros, como uma segunda natureza. Os olhos dúbios, capazes de capturar almas, estavam cravados nele como duas estacas — mesmo a distância era difícil respirar. Marcado por suas unhas vermelhas, refém de cada capricho: ela o tinha em suas mãos.
— Senhor Campbell — Greta advertiu, trazendo-o de volta para a realidade, os olhinhos brilhando cheios de receio — Tenho certeza que pode esperar até amanhã.
Por mais que ele quisesse, não era justo tentar persuadi-la a se tornar uma cúmplice — aquela merda não era Romeu e Julieta. A pobre senhora estava apenas fazendo seu trabalho ali, sem contar que estava potencialmente salvando o traseiro de April.
Hunter assentiu, engolindo as palavras à força. Todas aquelas considerações reviravam seu estômago. Por um instante, nem ele entendeu as próprias urgências — ele só sabia que queria April e a queria agora.
Discutir, beijar, foder. Qualquer coisa. Todas as coisas.
April ainda o encarava. Depois de alguns empurrões insistentes a menina subiu os degraus, guiada de perto pela governanta que parecia a beira de um ataque de nervos. Elas discutiam baixo e a mais nova não desgrudava os olhos dele.
— A senhorita terá que mandá-lo embora — Greta sussurrou apenas para que April escutasse. — Isso se não quiser arranjar problemas com seus pais.
Mandá-lo embora.
O peito dela congelou. A simples conjectura soava depreciativa, como se Hunter fosse um vira-lata que a seguiu até a porta de casa. Mas ele não era nenhum coitado.
Eles tinham um acordo, nenhum dos dois sairia perdendo nessa. April o usava para atingir seus próprios objetivos egoístas e estava tudo bem porque ele a usava também. Poderia rastejar por debaixo de sua pele, roubar seu calor e jamais passaria disso: um jogo com regras que ela mesma ditou.
Mandá-lo embora.
Aquela frase não deveria soar tão cruel. Não era essa a ideia inicial? Terminar tudo quando estivesse saciada?Não, por enquanto ela não estava nem perto disso. Toda a ganância e a luxúria — aquilo estava longe de acabar.
O ronco suave de um motor dando partida a despertou dos devaneios e April quase tropeçou no vestido no caminho para a janela. Quando chegou ao fim do corredor a Harley já havia arrancado na estrada, deixando apenas uma nuvem de poeira para trás.
A P R I L
Tudo que vi foram luzes. Salões de baile e lustres de cristal se multiplicavam em padrões infinitos, como dentro de um caleidoscópio. Estava presa em mais um daqueles sonhos em que a minha cabeça girava e eu me sentia tão cansada que não conseguia me levantar.
Era dia quando abri os olhos. Minhas cortinas amanheceram abertas — trabalho de Greta, com certeza — revelando um céu branco coberto por nuvens translúcidas. Pelos meus cálculos, eu tive pelo menos cinco horas de um sono agitado, permeado por sonhos. Se eu fizesse uma cara suficientemente sofrida, minha mãe me deixaria faltar a aula — já havia feito um bom trabalho me comportando na festa, isso pesaria a meu favor.
Eu suspirei contente comigo mesma, rearranjando meus travesseiros. Segunda-feira era um pouco menos detestável quando eu estava embalada em cobertores quentinhos. Quando eu me preparei para virar de costas para a janela, meus olhos ficaram presos em uma peça que não fazia parte do quebra-cabeça.
Ele não me pediu a jaqueta de couro de volta.
Desde a noite passada ela jazia no mesmo canto, esquecida sobre a poltrona. Hunter a emprestou para mim como um perfeito cavalheiro, para me proteger do frio. O inconfundível cheiro de grama e terra estava impregnado em seu tecido graças a nossa pequena aventura noturna no parque. Era apenas mais uma pequena evidência de que aquilo tudo havia acontecido.
Algo gelado percorreu meu estômago e eu me aconcheguei mais à cama.
Eu não podia confundir aquele gesto com algo romântico de maneira nenhuma. Do jeito que as coisas terminaram ontem, ele provavelmente apenas havia esquecido de pedi-la de volta.
Quase ri.
De todos os garotos que eu saí antes, Hunter seria o primeiro a esquecer de cobrar seu casaco no fim de uma noite. Chegava a ser engraçado como todos davam falta imediata de seus pertences e pediam-os de volta, sem nem titubear. Noite após noite, eu me despia de algum agasalho qualquer para devolvê-lo ao dono. Aquele silêncio frio e constrangedor na varanda da frente já fazia parte da rotina dos meus encontros.
Por deus. A noite passada fora tudo, menos fria.
Eu tentei bloquear minhas memórias, mas não consegui. Fragmentos de conversas e a lembrança de mãos quentes percorrendo minha pele foram o suficiente para fazer meu coração acelerar. Com o rosto enterrado no travesseiro eu tive uma certeza: Hunter teria a jaqueta dele de volta o mais rápido possível.
Não passava das oito da manhã quando escutei a campainha ressoar pelos corredores da casa. Eu já tinha separado uma muda de roupas para passar o dia, mas não consegui ficar pronta a tempo de atender a porta. Pijamas teriam que servir.
— Estou indo! — eu gritei quando alcancei o topo da escada. Minhas infames pantufas abriam caminho pelo tapete veludo, descendo os degraus de madeira com o máximo de rapidez que eu conseguia atingir de manhã.
— Era muito cedo para eles chegarem mesmo — Cole suspirou, surgindo pela porta que levava ao salão de jantar.
Ele veio falar comigo hoje assim que acordei, avisando que iria ao lago com os amigos. Segundo a meteorologia local, um dia de sol como aquele merecia ser aproveitado — com o inverno chegando aquela poderia ser a última oportunidade do ano.
Mesmo sendo um dia letivo, eu tive que aceitar aquela oferta de paz. Nenhum de nós mencionou o ocorrido de ontem à noite, mas também não havia nada para mencionar. O loiro parecia bem. Maçãs do rosto coradas, cabelos molhados penteados para trás e uma camisa com a estampa do Unknown Pleasures.
Minha mão se fechou ao redor da maçaneta e no próximo segundo o rosto sorridente de Jackie apareceu na minha porta. Ela quase me enforcou com um abraço.
— O que tinha no seu café hoje? — eu murmurei, rindo contra o casaco de cor chamativa — Eu posso precisar disso também.
Era cedo demais para estar feliz daquele jeito, você começa a desconfiar.
— Qualquer dia que eu não tenha que assistir a aula de trigonometria é um bom dia — a morena me soltou e eu finalmente pude fechar a porta — E também... Eu não podia perder a chance de vir aqui.
A pequena mochila de lona decorada com os milhares de bottoms pendia de um lado para o outro à medida que Jackie andava. Ela parou no meio do caminho e os cabelos cacheados se moveram como uma cascata quando a menina jogou a cabeça para trás, admirando os ornamentos de gesso no teto como se estivesse vendo-o pela primeira vez — de dia a claridade que entrava pelas janelas parecia ficar presa ali, iluminando todo o hall.
— Em outras palavras, você estava só procurando uma desculpa para matar aula.
— É verdade. Vocês também tem um café da manhã melhor do que o lá de casa — ela deu de ombros, brincando com as alças em seus ombros sem me olhar — Mas quer saber? Depois de passar dias sofrendo pensando na prova da semana que vem eu me dei conta de uma coisa.
— Vá em frente — eu sempre poderia me impressionar com a sabedoria matinal de Jackie — Conte-nos.
De repente, eu tinha os olhos escuros sobre mim, carregados com uma seriedade atípica.
— No inferno ninguém liga para trigonometria.
Precisei meditar naquelas palavras por alguns segundos antes de responder.
— Isso é estranhamente motivador.
O barulho de alguém limpando a garganta interrompeu nossa conversa. Era Cole. Ele constantemente dizia que nós éramos más influências uma para outra, mas tal pensamento era absurdo em sua mera concepção.
Jackie era claramente a má influência aqui.
— Ora, ora. Se não é o baterista mais talentoso de todo Reino Unido — a morena passou um braço pela cintura dele, fingindo ares apaixonados — Pode autografar a minha teta direita?
Eu tentei segurar a risada e quase tive um aneurisma. Cole apenas sorriu de lado, a segurando de volta.
— Minha cara Jackie — ele suspirou com falsos ares de felicidade — A irmã que eu nunca pedi. Como você está?
A morena desfez o abraço para encará-lo indignada, levantando o rosto numa tentativa de superar a diferença de altura.
— Sabe, muitos músicos ficariam lisonjeados em assinar as minhas tetas.
Jesus Cristo. Meu irmão estava rindo, mas eu tinha minhas dúvidas quanto a ela estar brincando ou não.
— Jackie. Vamos? — eu me apoiei no corrimão da escada — Preciso terminar de me arrumar.
— Ah, sim — a morena meneou a cabeça em sinal de obviedade — O ritual matinal de April Wright.
— Eu não demoro tanto assim.
Parece que o que eu disse foi estímulo suficiente para instigá-la a desabafar sobre anos e anos de amizade. Os olhos dela se arregalaram como duas bolinhas de gude, prestes a saltar das órbitas.
— Eu nunca vi nada parecido! Você é tipo... — ela fez uma pausa e estalou os dedos algumas vezes, como se procurasse uma comparação — Tipo o Patrick Bateman¹ das rotinas matinais.
— Isso é perturbador — um vinco surgiu na testa do loiro — Eu meio que preciso concordar com ela, April.
Ele cruzou os braços, escondendo sua diversão atrás de uma faceta preocupada.
Eu apenas revirei os olhos e desatei a subir os degraus. Fui interrompida no meio do caminho pela voz do meu irmão.
— April! Não se esqueça de falar com o nosso velho.
— O quê? — eu quase derrapei no meio da escada.
Cole bufou, subindo os degraus de dois em dois para me alcançar. Parou um nível abaixo do meu, para que nossos olhos ficassem na mesma altura.
— Eu preciso que você fale com ele que nós fomos à Bridgeford Lake. Ele vai entender se você explicar.
— Explicar o quê?
— Bem, nossa mãe disse deixava e só tínhamos que falar com ele. Você sabe como ela é. Não mente e nem omite nada dele.
Ela geralmente deixava a parte das broncas para o papai também. De repente, o convite do Cole fazia um pouco mais de sentido.
— Você contou para ela que vamos matar aula?
Com aquele tom, eu poderia muito bem estar perguntando: "VOCÊ É BURRO?".
Meu irmão piscou.
— Sim — soou como uma pergunta — Não teve como esconder depois que ela me pegou arrumando a mochila. Mas escuta, você o faz de gato e sapato se quiser. Vai ser moleza.
Estranhamente, Cole estava certo — papai quase não me deu atenção. Ele tomou café-da-manhã no escritório hoje, cercado de papéis e pastas gordas. Nós conversamos rápido, entre uma ligação e outra, enquanto ele bebericava café de sua caneca favorita e foi isso. O pobre homem logo entendeu que não tinha escolhas — nós já tínhamos todo um plano orquestrado por suas costas e ele parecia cansado demais para se argumentar.
— Sua mãe está por trás disso, não está? — o homem me perguntou em determinado momento, encarando-me por cima dos óculos de leitura. Os cabelos loiros estavam penteados para trás, permeados por alguns fios cor de prata.
— De jeito nenhum.
Mamãe meio que já tinha deixado. Desde que contássemos a verdade e voltássemos para casa dentro da hora ela não se importava — isso, claro, sem extrapolar os limites. Papai reclamaria até nossos ouvidos caírem, mas jamais contrariava as decisões dela na nossa frente.
Antes de sair do escritório eu capturei com os olhos algo que me chamou atenção. Uma caixa de charutos — aqueles caros, que vendiam em uma loja de antiguidades no centro. Sabia disso porque uma vez papai me levou lá; ele me disse que era o único lugar da cidade que conservava o tabaco corretamente.
De repente, foi como se eu juntasse as peças do quebra-cabeça. Eu tinha ouvido que eles receberiam visitas do trabalho pela tarde — talvez, um bando de adolescentes suados ensaiando no porão não fizesse parte da agenda do anfitrião perfeito. Isso explicaria o sermão que não veio.
— Eles chegaram — meu irmão anunciou, abrindo a porta da frente — April, Jackie! Peguem suas coisas.
Eu levantei da poltrona da sala e joguei minha mochila pelo ombro, acompanhada por Jackie.
A entrada de veículos dos Wright nunca esteve tão cheia. Todos haviam desembarcado dos carros e conversavam animados do lado de fora, bem agasalhados e sorridentes. Se o problema não ficou evidente de primeira, eu repito: estavam todos encasacados. O sol se escondia atrás das nuvens e o frio da noite estava demorando a se dissipar. Tínhamos uma hora e meia de viagem pela frente para encontrar esse tal dia ensolarado.
— Ei. Não acredito que você veio, April Wright — Finch chegou arrastando as solas nas pedrinhas soltas no chão. Ele parecia detonado de sono, mas tinha os olhos espremidos em um sorriso.
— Pois é. Deve ser por isso que vai chover.
— Chove nada — nós dois estávamos com as mãos escondidas nos bolsos, chutando pedrinhas de cascalho um para o outro, sem ânimo algum.
Houve uma comoção quando meu irmão disse para todos se dividirem em carros, mas eu não dei atenção. Hunter estava a alguns metros dali, com as sobrancelhas franzidas devido à claridade e os cabelos escuros ainda amassados do travesseiro. Os cantinhos dos lábios dele se repuxaram em um sorriso que me fez prender a respiração, mas ele não estava olhando para mim.
Cabelos longos, lábios carnudos e olhos verdes destacados por algumas camadas de rímel. Era Lexie Palmer. Inicialmente, eu a conhecia como a garota que trouxe uma cópia do Kama Sutra para a aula de literatura para folhear com as amigas. Anos depois, ela ficou marcada na minha memória como a garota que trouxe uma garrafa de Jack Daniel's para beber no banheiro da escola.
— Dá tempo de desistir, April! — ela sorriu, entrando no segundo carro. Foi aí que Hunter fixou as duas íris azuis em mim — Você ainda pode chegar a tempo da aula.
Ela, assim como todos nós, era uma Thomas. Para a maioria das pessoas da Thomas — incluindo Hunter —, eu não era o que poderia ser chamado de membro modelo. Talvez por parecer um pouco esnobe ou por não participar das atividades sociais organizadas pelo grêmio, não sei. As pessoas simplesmente não entendiam o que eu estava fazendo quando escolhi me tornar uma delas. Acontece que eu estava cagando para o que as pessoas pensavam.
— Ignore-a — Finch murmurou.
Não respondi. Eu estava concentrada, esperando para ver se Hunter se juntaria a ela na provocação, como nos velhos tempos. Quando meu amigo reparou que eu não tirava os olhos do baixista, ele voltou a falar:
— Sabe, desde o verão passado eu tenho a impressão de que não sei mais escrever meu nome... — Finch estralou os dedos e depois o pescoço: — Eu vou dirigir.
Finch não dirigiu. O garoto organizou uma pequena campanha para nos convencer de que seria um ótimo motorista, mas, no fim, todos votaram contra a idéia. Conformado com a derrota, Finch decidiu se deitar no último banco da minivan para tirar um cochilo, ocupando todo espaço. Quando ele disse para Jackie embarcar no segundo carro, minha amiga sequer pestanejou — para ela, se misturar não era problema.
Eu fiquei com o banco dianteiro ao lado do motorista, já que odiava dirigir em estradas. Para minha surpresa, uma versão sonolenta e menos simpática do Hunter se sentou ao meu lado. Ele usava o mesmo moletom de sempre, preto e um pouco gasto, com as mangas arregaçadas até os cotovelos. Nós não falamos — o baixista apenas ajustou o banco e o espelho enquanto esperava todos se acomodarem e, então, deu partida no carro.
No banco de trás, Zoe conversava com Zack, ambos debruçados sobre as mochilas amontoadas — as vozes deles se uniam em um som distante, sem que eu me preocupasse em decifrar o sentido das palavras. Eram mais altas que um sussurro, mas baixas o suficiente para se misturarem ao ruído do motor. Além do casal, havia apenas o Finch. Eu pus meus fones de ouvido, evitando olhar na direção de Campbell na mesma intensidade em que ele me ignorava. Se o desconforto pudesse assumir uma forma humana, ele estaria sentado entre nós dois, se alimentando do silêncio.
Estávamos na rodovia há duas músicas e meia quando um carro cinza nos ultrapassou, invadindo a via contrária a toda velocidade. Assim que um caminhão surgiu na pista o veículo cinza arrancou na nossa direção. Hunter segurou firme no volante, diminuindo a velocidade para que o carro cinza pudesse voltar à faixa correta. Depois da manobra bem sucedida, Seth Montgomery apareceu na janela do veículo a nossa frente, uivando como um louco. Isso apenas serviu para fazer Hunter xingar mais intensamente.
— Esse é o cara que dirige melhor que eu? — esse era Finch reclamando. Pelo retrovisor eu conseguia vê-lo esparramado no último banco, ele havia caído no chão da minivan.
— Tem certeza que pode dirigir? — perguntei, ignorando Finch.
O baixista me lançou o que eu assumi ser um olhar irritado. Vestígios de cansaço ainda estavam presentes nos traços dele, mas graças a ultrapassagem repentina Hunter estava tenso e atento à estrada.
Foi nesse momento que a rádio decidiu pegar novamente. Tocava Sunday Morning do Maroon 5 e não poderia ser mais perfeito — ao mesmo tempo que a carranca de Hunter crescia, meu sorriso aumentava. Eu não me orgulhava disso, mas ano passado fomos massacrados pela Rosseau nas olimpíadas internas. Toda vez que eles marcavam um ponto contra o time adversário a música Moves Like Jagger tocava nos alto-falantes — eu acredito que até o dia de hoje essa seja a trilha sonora dos pesadelos do Hunter.
Por sorte, um interlocutor interrompeu a música para fazer a chamada de um programa.
— Bom dia, ouvintes da rádio BT. É uma linda manhã...
— Posso desligar? — a voz de Hunter estava rouca de sono.
A resposta foi um não entoado por mim e por Zack.
— Zoe, posso desligar? — ele se corrigiu, fitando-a pelo espelho.
Zoe era a dona do carro, afinal. Assim como eu, ela não queria dirigir. Chuvas significavam estradas molhadas e motoristas imprudentes. Ninguém gostava de lidar com esse tipo de responsabilidade atrás do volante. Só confiamos no Campbell por falta de opção.
— Pode desligar depois da previsão do tempo — Zoe murmurou de volta, dando de ombros.
Eu sorri para ela antes de voltar meus olhos para frente. Lá fora, o asfalto úmido se estendia no horizonte, até sumir em uma das curvas da estrada. As árvores eram tão altas que eu conseguia ver apenas pedaços do céu nublado — gotas de chuva ocasionalmente eram salpicadas no para brisas, correndo pelo vidro até chegar a lataria. Mesmo de vidros fechados, o cheiro de terra molhada invadia meu nariz como perfume, ou memória de infância.
Um suspiro pesaroso me desconcentrou. Flagrei Hunter olhando para mim e ele voltou o rosto para a estrada como se nada tivesse acontecido — uma das mãos segurando o volante enquanto a outra se embrenhava entre os fios escuros. Tirei os fones. O rádio velho do carro captava apenas uma estação e ela tocava uma coletânea de músicas recentes, mas não tão recentes — agora era Chasing Pavements da Adele.
— Deixei-me adivinhar — eu me ajeitei no banco fazendo um barulho engraçado — Você é um daqueles caras que se acham legais demais para ouvir artistas pop. Rádios são estúpidas e só veiculam a música mainstream.
Hunter estava reprimindo um sorriso e eu sabia disso.
— Só estou com dor de cabeça no momento. Dormi pouco, sabe. Noite agitada — ele sorriu como um perfeito cafajeste e passou a língua pelos lábios antes de continuar — E você, princesa?
Eu lancei um olhar cauteloso por cima do ombro, procurando a reação dos meus amigos. Ninguém tinha notado a insinuação — ou se notaram, já sabiam que era algo comum vindo do Campbell.
— Dormi muito bem, obrigada.
O silêncio que veio a seguir fez-me desejar não ter puxado assunto em primeiro lugar. Minhas mãos se ocuparam ajustando o cinto de segurança enquanto eu sentia um par de íris azuis sobre mim.
Noite passada eu havia gritado um bocado na cara dele. Eu exagerei, mas isso não mudava o fato dele ter nos metido em uma perseguição policial fajuta — e, claro, a fenda na lateral do meu vestido estava arruinada graças as mãos dele que subiram pelas minhas pernas e... Droga. Eu deveria ficar com raiva, não excitada.
— O que você está ouvindo?
Catei meu iPod dentro do bolso infinito do casaco apenas para mostrá-lo a capa de um álbum do Mumford & Sons na tela de bloqueio. Eu havia pausado a música para falar com Hunter. Aquelas árvores e a estrada coberta de cerração criavam o clima perfeito para ouvir a banda.
— Avril Lavigne — ele desviando a atenção da estrada rapidamente — April gosta de Avril. Saquei.
Olhei mortificada para o reprodutor. A música Hot estourava os fones esquecidos ao redor do meu pescoço.
— Foi o aleatório — eu resmunguei. Avril Lavigne me deixava nostálgica, mas essa era uma coisa sobre mim que ele não tinha direito de saber.
Um sorriso crescia aos poucos no rosto de Hunter e as íris azuis vagavam pela estrada que se desdobrava a nossa frente.
— Acredito em você.
— Cala a boca.
GLOSSÁRIO
¹ Patrick Bateman - Protagonista do livro Psicopata Americano.
N/A: No cats were harmed in the making of this chapter.
Chegamos ao fim de mais um capítulo de BULLSHIT, uma história original do Wattpad. Espero que tenham gostado!! Eu amo esse capítulo da viagem, muitas emoções ainda estão por vir.
Tenho recebido muitos comentários sobre palavras comidas, frases repetidas, etc. Gente, o app é fogo mesmo :/ A única saída é retirar o livro da biblioteca e adicionar novamente ou deslogar e logar de novo. É chato pedir, mas ler tudo certinho é uma experiência completamente diferente.
Obrigada a todo mundo que está acompanhando, viu? Seja por aqui, pelo instagram, pelo twitter. Vocês fazem toda diferença!
Curiosidades: A música White Blank Page me inspirou a criar esse casal, lá em 2012 ou 2013, quando comecei a pensar na história - "you desired my attention but denied my affections". Outra música que me inspirou foi Love More da Sharon Van Etten (escutei um cover feito pelo Bon Iver) - "chained to the wall of our room / yeah, you chained me like a dog in our room" e toda aquela parte do "she made me love / she made me love more".
Atenção: esse capítulo foi feito no intuito de reintroduzir aos poucos a vida escolar desses adolescentes doidos (porque faz muito tempo aaaaa então vamos com calma). Fora que muitas cenas são engraçadas e topsters (acho auhauha).
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