Capítulo XVI [PARTE TRÊS]
ERA BOM ESTAR EM terra firme. Sentada em uma pedra na beira do lago, April não precisava se preocupar com o movimento constante de um veículo ou com a paisagem do lado de fora mudando em alta velocidade. O máximo que ela tinha que fazer era se lembrar de chegar para o lado a tempo de não ser atropelada por algum de seus amigos. Eles passavam ali de tempos em tempos, correndo como loucos na direção do lago, deslocando água para todo lado ao se jogarem dentro dele.
O céu aberto em Bridgeford Lake foi uma feliz surpresa para April. Já passava de uma da tarde e o sol era como um afago gentil em sua pele, mantendo-a aquecida mesmo em seu traje de banho. O biquíni escolhido para a ocasião era uma coisinha comportada e maliciosa. O pano revestido de veludo era da cor do vinho que uma vez derramara por acidente no tapete do seu próprio quarto e fazia justiça a cada curva de seu corpo. Na hora da compra, a própria Paige Wright lhe assegurara que aquele era um dinheiro bem investido e a menina tinha que concordar com ela.
O dono das íris azuis deveria ter gostado também, a julgar pelos olhares famintos que havia lançado em sua direção. Não que ela se comovesse com isso. Desde que chegara ao lago April se manteve bem longe para não ser obrigada a presenciar mais performances ao vivo de Hunter e Lexie. Para a surpresa dela, Campbell parecia mais interessado em reduzir cigarros a cinzas enquanto fitava o nada do que na morena escultural que tomava sol ao seu lado, deitada em uma toalha de praia.
Finch esbarrou em April com o cotovelo. Ele levava uma latinha de cerveja aos lábios para dar o gole final. O metal ainda suava, conservando a temperatura da bebida, deixando uma marca redonda semi-evaporada na pedra em que estavam sentados.
— Sabe... Quando eu propus essa viagem ao lago eu não estava esperando que tanta gente viesse — ele comentou com os olhos distantes — Da próxima vez nós vamos aparecer de surpresa na sua casa e mandaremos você e o Cole entrarem no carro. Sem perguntas.
April tentou procurar o que o amigo tanto via. O ruído distante do rádio era constantemente interrompido pelas risadas e gritos de seus amigos se divertindo dentro da água, organizando um torneio de briga de galo. Ela observou o corpo de Jackie pender para o lado até despencar dos ombros de Seth, caindo no lago. A morena emergiu logo em seguida com uma risada, afastando o cabelo cacheado do rosto em um movimento para o lado, como uma sereia. Zoe estava começando a comemorar a vitória quando Zack a arremessou na água também.
Tirando eles, mais alguns adolescentes se espalhavam pela faixa de areia na orla — eles haviam chegado depois, em outros carros. Eram pessoas conhecidas do corredor da escola, que também participavam das festas arranjadas pelos meninos.
— Puta que pariu — ele continuou, a voz soando como um resmungo — Olha só quantas pessoas aquele loiro oxigenado convidou. Eles vão acabar com as minhas heinekens.
Pelo que April sabia, todos tinham que trazer alguma coisa para o passeio. O irmão dela ficou encarregado de trazer o som, enquanto Zack trouxe batatas chips e algumas garrafas de água. Hunter e Seth encheram um isopor com gelo e vários engradados de cerveja. Zoe ficou sabendo de tudo de última hora, então, pediu o carro do pai emprestado e ainda se preocupou em trazer alguns sanduíches para os amigos comerem na hora do almoço. Lexie, ela soubera mais tarde, tinha uma contribuição um pouco menos substancial — Finch até tentou explicar, mas achou melhor mostrar: ele retirou um baseado já bolado do bolso, sorrindo como uma criança antes de fazer merda.
Wright revirou os olhos tão forte que quase viu o próprio cérebro.
— Será difícil explicar a ausência de tantos alunos em uma segunda-feira.
April recebeu uma risada frouxa em resposta, como uma concordância bêbada.
— É... – a voz dele soava arrastada – Acho que o cemitério da cidade não tem túmulos o suficiente para suportar o falecimento de tantos avôs fictícios.
Finch amassou a latinha de cerveja e a arremessou em um saco de lixo a metros dali. Cesta.
Um sorriso sombrio surgiu nos lábios de April, satisfeita com o senso de humor do amigo. Naquele tempo em que estiveram sentados à beira do lago, Finch não mudou de assunto para falar de suas aventuras sexuais nenhuma vez — aquele poderia muito bem ser um recorde. Ao invés disso, ele tinha uma expressão dura por debaixo dos óculos escuros, como se as pessoas se divertindo na água o aborrecessem.
Percebendo que os dois miravam o lago, Zack chamou os amigos para entrarem com um aceno. Não demorou muito para que todos clamassem por April e Finch — todos exceto Jackie. A morena observava tudo em um silêncio hesitante, pela primeira vez imóvel dentro da água.
Finch estava prestes a negar, abrindo a próxima latinha de muitas, quando April interveio:
— Vamos dar um mergulho.
O menino fez cara de tédio debaixo dos óculos escuros e April levantou água na direção dele com a perna, como se dissesse para ele deixar de ser chato. Com muito pesar, Finch deslizou a blusa por cima dos ombros, revelando o tronco desnudo – ela já o vira sem camisa e não tinha nada de feio ali. Todas as vezes que os amigos combinavam de nadar Finch demorava tanto para se livrar das próprias roupas que April podia jurar que ele tinha vergonha do próprio corpo.
Ele jogou a camisa para o lado e uma mancha de tom arroxeado na altura do tórax de Finch chamou a atenção da menina:
— Ei. Parece que alguém se divertiu ontem à noite.
April delineou com os dedos o hematoma com cuidado e instantaneamente um par de olhos azuis, antes distante, pousou nos dois. Interessante.
— Quem me dera. Eu arranjei isso no treino de futebol.
Finch cobriu a mão dela com os próprios dedos, mas ela se afastou, o encarando com um brilho de hesitação.
— Treino?
— É. Para as olimpíadas internas do colégio. Vamos pegar pesado essa semana, já que falta tão pouco para a abertura.
Que Deus os livrasse do último lugar. Finch desconfiava que dificilmente seus amigos sobrevivessem à outra derrota. A própria April tirava sarro deles pela fama de perdedores, mas eles não eram tão ruins – para um bando de sedentários fumantes que não sabiam jogar em equipe, eles até que eles se saiam bem.
— Eu não sabia que já tinham começado os preparativos.
Ele a fitou em silêncio, como se esperasse que April dissesse que estava brincando – o colégio inteiro estava fervendo de expectativa para esses jogos. Era basicamente o assunto que se falava pelos corredores: pela primeira vez em muito tempo havia uma chance da Thomas recuperar seu lugar no podium — quem sabe até ganhar.
— Bem, já você que está no time você deveria saber. As garotas começaram a treinar faz duas semanas.
Qualquer sinal de sorriso desapareceu da expressão de April. Uma brisa suave varreu as folhas caídas no chão enquanto ambos chegavam à mesma conclusão.
— Suponho que alguém tenha se esquecido de me avisar sobre os treinos —a voz dela era um som calculado, oco.
O garoto conhecia April bem o suficiente para saber que ela se sentiu insultada e nada no mundo a faria admitir isso. Era o orgulho Wright que a impedia de demonstrar qualquer traço de vulnerabilidade.
Uma pontada se encravou no peito dele. Ninguém havia se esquecido de avisá-la – April não tinha sido convidada para os treinos simplesmente porque as outras meninas não a queriam lá.
— Não ligue para isso.
April o mirou com descrença antes de esticar o corpo esbelto para trás, apoiando-se nos cotovelos. As madeixas castanhas se espalharam por suas costas como líquido.
— Eu estou cansada das pessoas do nosso colégio. Quando não se acham exclusivos demais para andar comigo, eles andam por aí como se suas atitudes me chocassem — o repuxar de lábios seco deu lugar a um sorriso — Vocês são tão maus.
O garoto deixou uma lufada de ar escapar pelo nariz, um som parecido com uma risada. Tinha certeza de que April conseguiria resolver isso sozinha, sem problemas – ela poderia se dar muito bem com as meninas do time se ambas as partes deixassem as baboseiras para trás.
— Bom saber que você leva na esportiva. Tenho direito a uma réplica?
— Não estava falando de você.
— Eu sei — a entonação dele era firme, mas sincera — Só dê uma chance a essas garotas.
— Acredite em mim, eu vou dar — ela dispensou o gesto de preocupação vindo do amigo com um dar de ombros — Olha, eu não entrei no time de vôlei e no de futebol para tapar buracos. Eu realmente sou boa. Se elas querem vencer vão precisar de mim.
— Justo – ele a admirou por alguns segundos – Sabe, você fica sexy toda na defensiva.
A menina bufou, tentando esconder o lisonjeio. Finch não sabia confortar ou demonstrar afeto: o garoto simplesmente flertava como uma segunda língua.
— Estou dizendo isso como amigo – um sorriso calmo espreitava seus lábios – Um elogio amigável.
Ela copiou o gesto, aproximando-se do guitarrista:
— E eu me sinto no dever de retribuir o favor – foi o que a garota disse antes de empurrá-lo da pedra para o lago.
April quis rir, mas o menino a puxou para dentro da água antes que tivesse chance de celebrar. Em questão de segundos ela estava gritando com o choque de temperatura e engolindo água enquanto os dois lutavam para afogar um ao outro.
— Merda. Finch! – a menina o advertiu depois de alguns minutos, parando a briga – O negócio no seu bolso! – Finch a encarou em um silêncio mais do que desconfortável e ela revirou os olhos: – O baseado.
A ruguinha que havia se instalado no meio das sobrancelhas do menino se desfez até dar lugar ao choque. Finch passou a tatear desesperadamente o bolso — agora submerso — do calção e correu para a margem do lago. April ria tanto que sequer notou as íris azuis que queimavam sua pele como sol, sem deixá-la por um segundo sequer.
H U N T E R
As poucas horas que passei sentado à beira do lago foram suficientes para comprovar que Lexie realmente gostava de ouvir o som da própria voz. Ela precisava de menos que um movimento com o queixo para incentivá-la a falar sobre qualquer coisa, principalmente se fosse para me chatear.
Apesar do meu mau humor, eu já tinha passado da fase de me irritar com a garota. Em vez disso, eu observava o vai e vem da água com uma serenidade que não me pertencia – os mil cigarros que eu fumei faziam tudo por mim, acalmando até a última das minhas células.
— Esse lugar não te deixa nostálgico?
Eu sabia bem do que Lexie estava falando, e confesso que precisei dar pontos à menina pela cara de pau. O que eu me lembrava daquele fatídico fim de semana se resumia a um borrão bêbado que resultou em uma ressaca horrível na segunda-feira. O máximo que eu tinha na minha cabeça eram flashes: o corpo dela se movendo debaixo do meu, minhas mãos afundadas em seu cabelo e muita, muita, areia.
Nenhuma memória que eu me orgulhasse em particular.
— Não, na verdade não.
Por mais que eu quisesse dar o assunto por encerrado, um suspiro incomodado me chamou a atenção. Lexie estava deitada de bruços em uma toalha de praia e suas pernas bem torneadas se entrelaçaram, apontando para cima. Ela me pegou olhando, o que só aumentou seu sorriso safado.
— Que pena — a morena sussurrou, espalhando o cabelo brilhoso pelos ombros.
Mais risadas quebraram o silêncio na margem do lago. April tinha caído da pedra e agora brincava com Finch na água. Não me incomodei em olhar mais de duas vezes, pescando a longneck quase vazia que repousava na areia.
Porra. Desde quando Finch era tão hilário? Eu olhava para longe e a risada dela continuava na minha cabeça. Aquele otário podia tocá-la na frente de todo mundo e ninguém se incomodava com isso, absolutamente ninguém.
Isso era irônico. Hoje mais cedo April decidiu fazer uma sessão de fotos entre as pedras – ela empinou o corpo como se ensaiasse a pose mais provocante que conseguiu imaginar e sorriu... No próximo segundo eu estava recebendo um violão na cabeça. Cole me pegou olhando para irmã dele e eu recebi um violão na cabeça. Onde estava o loiro numa hora dessas?
As mãos de Finch envolviam a cintura nua de April e ela o segurava pelo ombro, perto demais. Eu bebi tudo de uma vez, com a certeza de que se eu mirasse naquela direção novamente eu perderia a calma. Merda. No que eu estava pensando, afinal? Mijar ao redor dela para marcar território? Não havia nada que eu pudesse fazer a não ser ignorar. Esse foi o combinado e só me restava respeitar April.
— Hunter, pode parar de agarrar a cadeira desse jeito? Vai quebrar.
Minha boca estava muito seca. Eu precisava de mais bebida. Quase derrubei a cadeira ao me levantar, tropeçando o resto do caminho até o isopor. As cervejas nadavam em gelo aquela altura.
Eu entendia porque as pessoas bebiam e usavam todo tipo de droga. Viver anestesiado, curtir o momento... Porra, para mim, fazia o mais perfeito sentido. Eu gostava disso. De fato, até recentemente, nunca havia me ocorrido o quão fodido era enxergar a bebida como uma solução, e não como um problema. Demorei a perceber que eu poderia entornar quantas garrafas fosse, meus aborrecimentos continuariam a existir, inabalados — a única diferença era que eu estaria cambaleando pelos cantos, entorpecido demais para me importar com eles. E, por mais que essa fosse a minha vontade, eu não poderia ficar bêbado o tempo inteiro para evitar toda merda que acontecia. Mas certamente não custava tentar.
Um gosto amargo invadiu minha boca enquanto eu chegava a inevitável conclusão: eu e Lexie tínhamos isso em comum — nós dois gostávamos de insistir em coisas que faziam mal. Ficar comigo tinha potencial para destruí-la, mas por algum motivo Lexie continuava a me procurar. Meu abismo chamava o dela e vice-versa.
Retornei a cadeira de praia com duas Heineken em mãos — como minha companhia não estava bebendo, sobrava mais uma para mim. Lexie me recepcionou com uma cara feia e voltou a apoiar a cabeça nos braços, agindo como se fosse possível se bronzear no final de setembro na terra da rainha.
Eu arrisquei mais um olhar para o lago. April de biquíni era uma visão de encher os olhos, mesmo a distância. Ela tinha nadado até o resto dos amigos, se juntando a alguma brincadeira estúpida que eles estavam organizando. Tomei um pouco mais da cerveja, aproveitando enquanto estava gelada, e tentei me concentrar em outra coisa: meus pés plantados na areia, o farfalhar das árvores... Talvez mais um cigarro.
— Hunter! — Lexie rosnou como se fosse a décima vez que chamava meu nome — Eu falei sério quando disse que você estava patético — ela me estendeu o protetor solar — Pelo menos finge que você tem alguma coisa para fazer além de ficar bêbado.
Segurei o frasco por reflexo, sem ter a certeza do que fazer, dividindo minha atenção entre a garota que parecia prestes a me matar e April seminua na água. Com algum esforço, tentei controlar minha respiração. Lexie torceu o cabelo escuro em um coque, deixando o caminho livre para suas costas.
— Não acho que a April vá se importar – ela suspirou, deitando-se na toalha – Ela parece estar se divertindo muito com o seu amigo.
Eu respirei fundo, deixando a provocação de lado. Se Lexie não tinha certeza até agora que eu estava interessado em April, eu tinha acabado de deixar bem claro. Estava vidrado nela, como um perfeito idiota.
E, então, aconteceu.
Por meio segundo, eu desaprendi a respirar. Nenhuma operação parecia simples o suficiente para meu cérebro. Meu queixo estava travado e minhas costas também. Eu mal piscava. O nó do biquíni de April se desfez junto com a minha sanidade, revelando uma boa porção de sua pele nua. Seus seios fartos perderam a sustentação do sutiã em câmera lenta e eu não conseguia parar de olhar. April segurou a parte de cima rente ao tronco com alguma dificuldade, gritando por Finch. O bastardo se aproximou na pretensão de ajudá-la com um sorriso enorme no rosto, deslocando água para todas as direções. As mãos dele percorreram os ombros de April em uma massagem demorada enquanto ela ria, deliciada.
Aquela visão era demais para mim.
Os gritos histéricos de Lexie me despertaram para a realidade. Minhas mãos estavam lambuzadas de protetor solar, assim como uma boa parte das costas dela. Eu larguei a embalagem destruída de lado, procurando o irmão da April com os olhos. Ele tinha que fazer alguma coisa antes que eu fizesse.
Uma menina brotou do meu lado com uma toalha, se atrapalhando toda para limpar as costas da Lexie. Eu tomei o copo da mão dela e virei o conteúdo.
Doce. Muito doce.
— Que porra é essa?
A menina recém chegada piscou várias vezes antes de me responder, atordoada com as ordens que Lexie gritava. Acho que ela estava espantada pela minha falta de educação também.
— É vodka com suco...
Eu não tive tempo de xingar as habilidades de barista de quem preparou a bebida — seria em vão porque nenhuma quantidade de álcool me deixaria calmo naquele momento. Finch estava saindo da água com uma camisa enfiada pela cabeça e andava rumo às máquinas de venda automática.
Não pensei muito antes de me levantar, espalhando areia para todas as direções – isso fez Lexie gritar comigo uma segunda vez debaixo do zunido no meu ouvido. Eu o segui aos tropeços, quase levando tudo que estava no meu caminho comigo, cego de ódio. Porra, eu não estava nem aí. Minhas mãos tremiam e as articulações doíam com o esforço que eu fazia para mantê-las fechadas em punhos. Os machucados de hoje mais cedo se esticavam na minha pele, mas eu não sentia nada além de raiva. Aquele filho da puta sabia muito bem que eu estava envolvido com a April e estava fazendo isso para me provocar.
— Hunter — ele abriu um sorriso ao ver que eu me aproximava — Que bom que a gente se encontrou, eu estava pensando em falar com você.
Eu não conseguia ouvir nada do que Finch dizia, muito menos retrucar a meia dúzia de bosta que tinha saído da boca dele. Minha cabeça doía pra caralho. Esse filho da puta tocou nela.
— Acho que está quebrada — o garoto indicou a máquina com o queixo, mas eu não me desviei dele nem por um segundo — Estou vendo que você está ocupado com a Lexie então vou direto ao ponto: Zack veio pedir minha opinião sobre as músicas que vão entrar para o nosso novo álbum. Ele me disse que você mostrou a ele uma música que eu compus quando estava bêbado...
Ele permaneceu em silêncio como se esperasse que eu falasse alguma coisa, mas esse assunto me deixou mais puto ainda. Foi assim que a Lexie conseguiu bisbilhotar as minhas coisas. O tapado do Zack podia não reconhecer a minha letra, mas Lexie conseguia me rastrear com a precisão de um cão farejador. Quanto ao Finch... Ele podia ter algum atraso mental, mas não era burro.
– Eu não me lembro bem – o guitarrista passou a mão pelo rosto – Você sabe, eu tenho esse probleminha com o álcool e minha memória não ajuda, mas... Aparentemente eu sou a porra de um poeta!
Finch segurou meu ombro como se fossemos grandes camaradas e seus olhos vasculharam meu rosto em busca de alguma parabenização. Eu tinha mais do que certeza que ele não havia encontrado nenhum traço de humor na minha expressão.
— Enfim, eu só queria te agradecer por ter mostrado ao Zack. Você sabe o quanto ele tem trabalhado duro para a banda dar certo.
Depositou dois tapinhas no meu peito, dando o assunto por encerrado, e eu ainda não tinha conseguido destravar meu maxilar.
— Ei. Antes que eu me esqueça – Finch enfiou a mão no bolso do calção e retirou um colar que eu conhecia bem – Sua cinderela esqueceu isso na minha casa.
Eu havia oficialmente perdido a cabeça. Antes que ele conseguisse terminar a próxima frase eu já tinha o arremessado contra a maldita máquina automática. Finch desviou do meu punho e a vitrine atrás dele estremeceu.
— Onde você conseguiu isso? – eu o segurei pelas golas da camiseta, seriamente considerando arrebentar a cara dele.
Era o colar da April. Ela sempre usava. Como diabos foi parar na mão do Finch? Na casa dele?
— Que porra... ME SOLTA.
— Onde? — rosnei entre dentes — Diz onde você pegou isso.
— Seu merda. Na minha casa, eu já disse.
Eu o joguei contra a máquina uma segunda vez e minha cabeça estava girando.
Mas que merda. Que merda, April.
— Eu sou teu amigo, porra – Finch praticamente cuspiu no meu rosto ao ver meu punho no ar – Tenta fazer isso pra tu ver o que acontece. Se me bater por causa de mulher, então é mais burro do que eu pensei.
Errei o primeiro soco. Ele não hesitou em me bater também. Não sei quanto tempo durou, eu só sabia que precisava bater em alguém. Finch não tinha culpa de porra nenhuma, mas estava ali. Eu não entendia o que eu tinha na cabeça.
— Para! – uma voz feminina grasnou atrás de mim, me segurando pelo braço – Para com isso agora!
Minhas mãos o soltaram, mas parecia um comando automático. Eu não conseguia pensar em nada. A essa altura eu estava coberto de poeira e Finch tinha sangue na boca. Nenhum de nós conseguia respirar. Eu me afastei dele e Zoe rapidamente se pôs entre nós dois, tremendo um pouco. Ela parecia ridiculamente miúda no moletom do Zack.
— Vejo que você encontrou algo maior do que porta toalhas pra bater – os olhos de Bambi escondiam o medo entre as nuances castanhas. Havia toda uma valentia na postura dela, como se protegesse Finch, que jazia sentado no chão.
— Sai daqui – eu ralhei quase sem ar.
— É sério, Zoe – meu amigo a advertiu, mas a morena não desviava a atenção de mim nem por um segundo – Pode ir.
Aos poucos Zoe desmontou a bravura e nos encarou, um por vez. Um gosto acobreado invadia minha boca e eu quis xingar Finch. O idiota tinha conseguido acertar um soco na minha orelha.
O barulho de moedas vindo de algum lugar atrás de nós quebrou o silêncio desconfortável. Eu virei para trás e encontrei Seth. O ruivo depositou alguns trocados na máquina de serviço automático, completamente alheio a nossa presença, e selecionou um pacote de biscoitos. Segundos se passaram, nada aconteceu. Estava quebrado. Meu amigo olhou para os lados rapidamente antes de desferir um golpe contra a vitrine e depois mais outro — só no terceiro soco Seth percebeu que estávamos ali.
— E AÍ? — ele berrou. Dessa vez, Seth segurava a máquina pelos dois lados, como se pretende-se balançá-la.
— Está quebrada — Finch ainda estava sentado no chão com os pés descalços — Você não vai conseguir seu dinheiro de volta.
Seth não deu sinais de ter ouvido o comentário do guitarrista.
— MEU OUVIDO ESTÁ CHEIO DE ÁGUA – mais um soco – ACHO QUE A MÁQUINA ESTÁ QUEBRADA.
Zoe deu um longo suspiro e caminhou até meu amigo, cochichando para ele algo que não consegui ouvir. Seth ainda berrou um pouco antes de seguir a menina, mas acabou deixando a máquina para trás.
A alguns metros de mim, Finch começava a se recompor. Ele fez menção de ir embora e me deixar sozinho, mas parou para pegar uma coisa no chão.
— Eu achei no quarto de hóspedes, depois daquela festa quete rendeu a melhor foda da tua vida – o guitarrista me estendeu a corrente dourada coberta de terra, resgatando meu comentário mais estúpido sobre aquela noite – Devolva para ela e dá um fim naquela merda doentia.
Por merda doentia ele quis dizer o caso com a Lexie.
— Não é tão simples.
Finch me olhou como se quisesse me dar uns vinte pescotapas.
— Eu já te falei o que fazer. Se mesmo depois disso a April não te quiser, então a deixe em paz. Você claramente não tem maturidade para continuar seja lá o que for.
Uma risada com gosto de sangue escapou pelos meus lábios.
— Você não sabe o que é melhor pra mim.
Foda-se. Eu estava transando com a April. E daí? Eu não via como aquele assunto poderia ser da conta dele.
— Faça o que você quiser, Hunter.
A P R I L
Nunca em toda minha vida eu estive tão próxima de esganar alguém. Minha cabeça fervilhava em pensamentos, um mais acusatório que o outro. Eu desviei da grama alta e marchei pelo caminho de terra batida como um trem bala. O sol começava a desaparecer no horizonte, chamando todo tipo de bicho para fora de suas tocas e eu amaldiçoava em voz alta os insetos que passavam zunindo por mim.
Finalmente, eu havia encontrado o desgraçado. Hunter estava escondido em um espaço de piquenique esquecido pelo tempo. A vegetação seca invadia o local e tudo ali começava a feder a fumaça graças à fogueira acesa na beira do lago. Ele estava sentado em cima de uma mesa de madeira deteriorada, coberta por lascas de tinta verde, e dividia uma cerveja com Lexie. Os dois conversavam alto, sem esconderem os sorrisinhos.
As íris azuis caíram em mim assim que eu terminei de atravessar a trilha. O par tremeluzia com satisfação, como se Hunter tivesse esperando por mim. Lexie precisou virar o rosto para descobrir o que estava acontecendo. A morena escondeu o sorriso atrás do copo quando me viu e se afastou do baixista, como se eu estivesse interrompendo algo.
— Campbell – eu rosnei – Para o carro. Agora.
— Ok – ele despencou da mesa, fincando os pés na grama – Não precisa falar duas vezes.
Não olhei para trás para confirmar se ele me seguia, apenas adentrei a trilha novamente, fazendo o caminho reverso até o lago. O silêncio da noite era interrompido pelo barulho de grilos e das folhas secas se quebrando debaixo dos meus pés — poucos minutos depois som de passos atrás de mim não me surpreendeu.
Nós estávamos quase chegando ao estacionamento improvisado quando Campbell tentou me segurar pelo braço. Eu fugi de seu toque, me prevenindo de cair em qualquer truque e me virei na direção do baixista.
— O que foi dessa vez? – a voz dele soava áspera, cheia de ironia – Finch foi chorar as mágoas para você?
— Ele não precisou me dizer nada – eu rebati, tentando enxergar a expressão dele.
Ali, na semi escuridão, era muito mais fácil acreditar que aquele era o cara que tinha batido no melhor amigo a troco de nada.
— Então... Qual das madames? – o baixista apontou com o dedo para Zack e Seth, que fingiam conversar a uns metros dali. Os garotos tinham percebido nossa aproximação e disfarçavam a curiosidade quebrando alguns galhos secos para alimentar fogo mais tarde.
— Nenhum deles me falou nada, Campbell – tomei dois passos bem calculados na direção dele – Eu não sou estúpida. Olha para o seu estado.
A risada do baixista invadiu meus ouvidos como uma melodia escarnecedora. Hunter me contornou para seguir até o lugar em que os carros estavam estacionados e eu fui atrás. Eu precisava de uma explicação para esse comportamento estúpido.
— Por que você fez aquilo com o Finch? – praticamente me joguei no caminho dele para fazê-lo parar. E funcionou.
Ele não escondeu a surpresa ao topar comigo. Seus olhos azuis me acompanharam em silêncio, cautelosos. Eu também não dei muito espaço para que Hunter se sentisse confortável: nós estávamos tão próximos que sua respiração irregular chegou a atingir meu rosto.
— Só fale.
Aos poucos Hunter recobrou a postura, me dando a chance de analisá-lo de perto. O cheiro de álcool só não me incomodava tanto quanto o do cigarro. Ele estava péssimo.
— Você não se importa com o Finch, April – Campbell me segurou pelo queixo e se moveu na minha direção, me obrigando a andar para trás – Você só estava louca para me tirar de perto da Lexie.
Minhas costas encontraram a lateral de um carro e nós dois paramos. Meu coração batia acelerado, em alerta para as próximas palavras.
— O que você quer dizer com isso?
Ele se inclinou, mirando a minha boca e parou a centímetros de distância:
— Você está com ciúmes.
O calor se espalhou pelo meu rosto como um tapa. Poderia estar escuro ali, mas uma mancha havia tomado conta da minha visão transformando tudo que eu via em vermelho. Hunter achou que eu estava com ciúmes — ele bateu no Finch e eu estava com ciúmes. Ele podia estar bêbado ou delirando, mas eu não me importava. Simplesmente não tinha como conter aquilo para mim. Eu agarrei o moletom negro que ele vestia em dois punhados, o segurando perto.
— Ciúmes — ri, saboreando cada sílaba — Eu estou com ciúmes. Me diga, então, Hunter: quantas vezes eu corri atrás de você? Por acaso alguma vez eu te procurei? — em questão de segundos, o desejo nas íris azuis se dissipou e ele buscou meus olhos em confusão — Foi sempre você. Você que me procurou. Você foi atrás de mim. Você me quis.
A fúria ruía dentro de mim com a força de um terremoto. Hunter, por outro lado, permanecia impassível. Os músculos de seu rosto pareciam ter sido substituídos por mármore rígido e impenetrável. Antes que ele pudesse falar qualquer coisa, eu o interrompi:
— Coloque-se no seu lugar – eu sibilei – Você é um cafajeste – a memória de Lexie o beijando voltou com toda força. Campbell estava a centímetros de mim e tudo que eu conseguia sentir era nojo daquela boca – Para ter ciúmes eu teria que me importar com você. E isso está fora de cogitação.
Eu me importo somente comigo mesma, completei mentalmente.
Eu me soltei dele, imediatamente colocando o máximo de distância possível entre nós dois. Não consegui ir muito longe antes que Hunter surgisse na minha frente, segurando meu rosto entre as mãos. Eu me desvencilhei com alguma raiva, jogando os braços dele para longe.
— Eu não te quero, Hunter — minha voz rasgou por minha garganta — Não vou mais querer. Fica longe de mim.
Seu pomo de adão desceu em silêncio. Ele disparou os olhos azuis pelo meu rosto, como se procurasse por uma confirmação de que eu falava sério. Só pelo som de sua respiração, eu sabia que o havia machucado.
Mas Hunter era como eu.
Ele não dava espaço para dor.
O baixista tentou me segurar de novo e, dessa vez, eu não tive forças para afastá-lo. Suas mãos envolveram meus pulsos e os seguraram como uma barreira entre nós. Minhas costas foram de encontro ao carro e a respiração dele, fedida a álcool, fez meu estômago revirar.
— Eu não sou as sobras de ninguém, April — as palavras dele eram ásperas e transmitiam decisão — Nem suas, nem da Lexie.
Seu aperto era firme o suficiente para não me deixar escapar. Não me machucava, sequer chegava a fazer pressão sobre minha pele. Seu toque não tinha outra finalidade senão me manter perto. Éramos apenas eu e Hunter, sozinhos no escuro.
Céus. Doía toda vez que olhava para o rosto dele e eu nem sabia o porquê.
Patética, patética, patética.
Hunter ainda sustentava meu olhar. Sua expressão dura aos poucos desmoronava, dando lugar a algo suave e dolorido. Seus dedos desceram por meus pulsos, percorrendo o interior dos meus antebraços como um carinho.
Quando achei que nenhum de nós aguentaria mais um segundo daquilo, Hunter me soltou. Ou eu o empurrei. No final, não fazia diferença. A única coisa que sabia era que eu não voltaria atrás.
N/A: Mil forninhos cairão ao teu lado e dez mil forninhos cairão a sua direita, mas tu permanecerá de pé. Amém, irmãos? Vamos precisar de um bocado de fé pra conseguir aguentar até o próximo capítulo.
GOSTARAM? ODIARAM? QUEREM MAIS?
Confesso que fiquei com um pouquinho de dó do Hunter nessa parte final. Vocês estão do lado de quem?
Aliás, alguém imaginava que seria um capítulo tão recheado de emoções?
Obrigada a todo mundo que comentou e votou nos últimos capítulos. Especialmente a todo mundo que me chama pra conversar. Vocês são meus xodós. Qualquer erro ou problema no decorrer da história, só chamar!
P.s.: Estou pensando em voltar com o curiouscat dos meninos, agora que estamos mais atualizados, rsrs.
Beijos,
Babi
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