Capítulo VIII







A P R I L


NO MOMENTO EM QUE Jackie Foster apareceu na minha frente, eu soube que havia algo de errado. Eu não esperava encontrá-la perambulando pelos corredores de St Clair em suas sapatilhas de boneca antes da metade do bimestre, quando — segundo Jackie — os professores largavam a moleza das férias e começavam a dar matéria para valer. Apenas algo realmente interessante a faria pendurar as roupas de festa antes de outubro.

Jackie abriu um sorriso assim que nossos olhos se encontraram e gloss rosa claro cobria seus lábios cheios. Os cachos castanhos estavam mais definidos desde a última vez que nos vimos, presos em um rabo de cavalo feito às pressas. Senti falta dos brincos de argola que sempre enfeitavam suas orelhas.

— Então, April — ela me saudou assim que pisei para dentro da escola — Você sabe que dia é hoje?

Eu a conhecia bem o suficiente para saber que havia algo subentendido naquela pergunta. Cansada de procurar por significados obscuros, eu me rendi a uma resposta segura:

— Quinta.

Jackie não se contentava com obviedades. Ela moveu a mão no ar, como se me estimulasse a desenvolver o assunto, e as correntinhas em volta de seu pulso fino acompanharam o movimento suave. Para a menina, o código de vestimenta de St Clair era mera convenção social. Ela transbordava individualidade em forma de pulseiras, unhas pintadas em cores desbotadas e tudo mais que conseguisse pensar.

— Isso mesmo — ela me parabenizou. Estava claro que não tínhamos o mesmo ânimo para charadas — O que acontece às quintas-feiras?

— Jackie — eu procurava meu armário pela numeração enquanto a menina me seguia — Você está me fazendo pensar e ainda não são nove da manhã.

Ela deveria saber que eu não era ninguém sem minha dose matinal de cafeína.

— É o ensaio da banda do Zack! Dessa vez você vai?

Eu nem lembrava disso. A banda do Zack também contava com outros membros ilustres como: Cole Wright, Finch Abberley e, recentemente, Hunter Campbell. Esse último dispensava comentários. Minha cara provavelmente deve ter denunciado minha falta de ânimo.

— Prometi ao Zack, então eu vou.

— Só assim mesmo. Você é boa demais para aparecer em um bar daquele lado da cidade — a morena revirou os olhos castanhos para mim — Deus nos livre se você for vista saindo com outros Thomas.

Jackie cruzou os braços, esperando uma resposta a altura, e nós paramos em frente ao meu armário.

— Mas é claro — eu franzi o cenho. — Em circunstâncias normais, eu precisaria de mais do que alguns copos de álcool para ser vista do seu lado.

O comentário arrancou uma risada debochada da minha melhor amiga. Eu pesquei meu chaveiro dentro da mochila, mas antes que conseguisse abrir o cadeado, fui surpreendida por uma aproximação repentina.

— Bom dia, March.

Aquela voz.

Eu reconheci quando era tarde demais.

O par de íris azuis veio antes, de modo que eu estava atordoada demais para dar conta do conjunto inteiro. Hunter estava muito próximo. Ele sussurrava ao pé do meu ouvido quando eu me virei assustada. O canto de sua boca sempre inclinado para cima, cheio de más intenções, me recepcionou de tão perto que nossos narizes quase se tocaram. O garoto me lançou um último olhar antes de se afastar e eu segurei meu chaveiro com força, sentindo o metal da chave pressionado contra a minha mão.

Hunter Campbell tomava a liberdade de me cumprimentar no meio de um corredor lotado de alunos, com direito ao sorriso de assinatura e tudo. Ele ousava errar meu nome. Quase desfiz minha expressão descontente para liberar uma risada obscura: se ele estava sorrindo, com certeza não sabia que estava para ficar sem nota em biologia. O garoto não perdia por esperar. Quando eu acabasse com ele, Hunter descobriria que eu não recebi o nome do mais cruel dos meses à toa.

— Quem era aquele? — Jackie tinha os olhos castanhos fincados nas costas do garoto que se misturava na multidão. Eu saí do meu transe assassino como se nada tivesse acontecido.

— Só mais um idiota — escolhi as palavras com muito cuidado, consciente de que qualquer detalhe instigaria a garota ao meu lado.

Nós ficamos em silêncio enquanto Jackie pensava. Eu praticamente conseguia ouvir as engrenagens trabalhando dentro da cabeça dela. Para ocupar as mãos, abri meu novo armário. Era um espaço retangular oco e metálico, sem nenhum toque pessoal além dos livros que pus ali no início da semana. Aquele seria meu último armário em St Clair. Eu precisava lembrar de trazer alguma coisa para decorá-lo na próxima semana, deixar a minha marca ou algo assim.

— Percebi. Qual é o nome dele? — ela pressionou os lábios em uma linha reta, tentando esconder as reais intenções.

Jackie sempre soube usar minha previsibilidade a seu favor. Se eu não falasse logo, a garota saberia que havia mais nessa história e não me deixaria em paz até que eu contasse tudo. Um sorriso diabólico tomou conta do rosto da minha amiga e eu suspirei em rendição.

— Hunter.

Era melhor que ninguém estivesse escutando a nossa conversa. A última coisa que eu precisava era manchar meu nome com boatos envolvendo Hunter Campbell. Os alunos de St Clair tinham uma imaginação fértil, capaz de maquinar as histórias mais elaboradas e escandalosas, repletas de detalhes sórdidos. Se eu conhecia bem o Hunter, ele não negaria os rumores — pelo contrário, os comentários serviriam apenas para inflamar seu ego. Deus, não seria ruim se esse garoto aprendesse um pouco de humildade. A escolha mais prudente seria evitar falar sobre ele a todo custo, mas ficava difícil impor uma mudança de assunto quando a amiga em questão era Jackie Foster.

— Você precisa admitir. Seu amigo Hunter é charmoso — ela estava jogando verde.

Por mais que doesse fisicamente ouvir uma coisa dessas, eu permaneci quieta. Que Deus nunca mais permitisse Jackie usar "seu amigo" e "Hunter" na mesma frase novamente. A garota estava tão desorientada que, se nós estivéssemos em uma série de televisão, aquele com certeza seria o momento em que ela abriria um sorriso e diria: "Cara, ele está tão na sua".

— Ele é um imbecil — puxei o livro de trigonometria da pilha mal arrumada e fechei o armário, passando o cadeado pelo aro metálico — Se precisa elogiá-lo, não fale tão alto.

Minha amiga podia faltar mais aulas do que qualquer um de nós e insistir em não dar importância para coisas tão triviais como popularidade e status, mas isso não apagava o fato de Hunter Campbell ser um nome relevante no nosso colégio. Não tão conhecido quanto meu irmão ou Josh, mas o suficiente para se sobressair entre os outros trezentos alunos do nosso ano. Cedo ou tarde, a fama dele alcançaria Jackie e ela se arrependeria das próprias palavras.

— Por quê? A não ser que as paredes de St Clair tenham criado ouvidos, acho que nós estamos seguras.

Eu olhei para os lados. Jackie estava certa. O corredor estava completamente vazio. Todas as salas estavam fechadas e nenhum aluno ficou para fora, apenas nós duas. O sinal devia ter tocado minutos atrás e eu sequer escutei.

— Vamos — ela interrompeu meus devaneios, ajeitando as alças da mochila de lona nos ombros — Eu ainda quero passar na lanchonete para comprar um café.

— Eles não vão vender um café para você em horário de aula, Jackie.

O vislumbre de um sorriso atravessou o rosto da minha amiga. Ela me deu as costas e adentrou no labirinto de corredores, sem esperar para ver se eu a seguia e falou por cima do ombro:

— Espere e verá, April Wright.





Quatro tempos depois do nosso encontro com Hunter Campbell, Jackie e eu ocupamos uma mesa vazia no refeitório. Alunos iam e vinham pelo salão de pedra, cada um carregando sua própria bandeja com pequenas porções do cardápio do dia. Estávamos sentadas a uma distância confortável do fluxo desgovernado de estudantes, próximas à uma janela ampla que iluminava boa parte do local. A claridade atravessava os pequenos detalhes do vitral e projetava sombras coloridas na minha mão e no rosto de Jackie.

— Quem é essa completa estranha que você acabou de chamar para sentar com a gente? — o olhar avaliativo de Jackie chegava a ser cruel.

Zoe mal tinha se afastado para ir atrás de seu almoço e nós já tínhamos começado a sussurrar. Eu girei meu garfo no prato de espaguete, ciente das intenções da minha amiga.

— Zoe Summers. Ela é nova no colégio e na cidade também. Está na minha aula de literatura. Rosseau.

Levantar informações sobre pessoas que mal conheço precisava entrar para a minha lista de habilidades ocultas.

— Carne nova — ela ruminou — Logo vi.

Jackie conseguia ser mais desconfiada do que eu quando se tratava de conhecer pessoas novas. Perguntar à menina o que ela quis dizer significaria dar corda para uma série de comentários maldosos e precipitados. Continuei a comer meu espaguete em um protesto silencioso e ela bufou, recomeçando as acusações.

— April, nós já temos a Indy no nosso grupo. Atingimos nossa cota de boas ações e olha no que deu: ela arranjou um namorado e sumiu da face da terra. Agora você está adotando uma novata para compensar sua falta de amigos. Que deprimente.

Uma risada escapou por meus lábios. Precisava dar pontos à Jackie por sua criatividade. Se eu era boa em organizar relatórios sobre desconhecidos, ela era mestre em arquitetar teorias. Eu furei minha caixa de suco com um canudinho e a encarei.

— Você poderia parar de ser tão dramática? Não é como se eu estivesse tentando substituir alguém. Zoe ainda não fez amigos no colégio e eu não posso simplesmente enxotá-la.

— Ah, mas você pode sim.

— Posso nada.

— Pode.

Qualquer possibilidade de dar continuidade ao debate mais infantil do século foi exterminada quando o objeto da nossa discussão chegou. Zoe depositou sua bandeja sobre a mesa retangular e se sentou do meu lado. Ela olhou de mim para Jackie com curiosidade.

— O que a April pode?

— É, Jackie — uma voz masculina, bastante familiar, se juntou ao nosso interrogatório — O que a April pode?

Zack Dempsey virou uma cadeira contra a mesa e se sentou do lado da minha melhor amiga. Ele cruzou os braços por cima das costas do assento, esperando por uma resposta, e a essa altura Zoe não sabia para quem olhar.

— Ir no ensaio da sua banda — Jackie disparou. Foi como se ela tivesse se livrado de uma bomba, jogando-a no meu colo.

O garoto arqueou as sobrancelhas, surpreso por se tornar o assunto da rodinha.

— Achei que você tivesse dito que podia ir.

— Eu vou. Só estava implicando com a Jackie.

Zack assentiu sem muita convicção e o peso da culpa caiu sobre meus ombros. A última coisa que eu queria era falhar com meu melhor amigo. Lancei um olhar mortal para a Jackie, que me mostrou a língua vencedora.

— Você é nova — Zack examinou a mais nova adição ao grupo. Seus olhos castanhos estavam acesos com interesse, como se tivessem reparado em Zoe pela primeira vez desde sua chegada. Pela expressão em seu rosto, ele parecia ter gostado do que viu.

Na mesma hora a menina endireitou a postura e estendeu a mão:

— Zoe. Zoe Summers.

Jackie sugou furiosamente seu suco de laranja e eu segurei uma risada ao ver a mão da menina suspensa no ar. Por um breve momento, todos da mesa ficaram em silêncio. A situação estava prestes a ficar constrangedora quando Zack finalmente reagiu. Ele tomou a mão de Zoe com delicadeza e levou aos lábios como um verdadeiro cavalheiro faria.

— Encantado — o garoto murmurou. — Ou melhor, Zack Dempsey.

A menina riu baixo, seu rosto tomado por admiração, e Zack deixou um sorriso lento tomar conta de seus lábios. Ele não conseguia desviar os olhos do rosto dela. Meu melhor amigo havia ativado o modo sedutor bem ali, no meio do refeitório, para que qualquer um visse.

Jackie limpou a garganta, trazendo a atenção de todos de volta para si.

— Então, Zack. Onde estão os outros?

— Hm?

Havia confusão genuína no rosto do garoto quando ele se virou para fitar Jackie. Os olhos castanhos sustentavam uma interrogação invisível, como se Zack não tivesse escutado uma palavra sequer.

— Os outros — Jackie repetiu impaciente.

— Ah, também não sei. É por isso que eu estou aqui.

— Quer dizer que nós somos a sua última opção? — ergui meu suco de caixinha para ele — Vou beber a isso.

— Deixe para beber essa noite, April — Zack deu um tapinha na mesa e se levantou, retornando a cadeira a posição original — Espero ver vocês no ensaio. Todas vocês.

O olhar em seu rosto não deixavam espaço para dúvida: ele falava diretamente com Zoe.

— Tchau, Zack — Jackie jogou uma batata frita na direção dele, arremesso do qual o garoto desviou com agilidade. Ele voltou rindo para apontar a batata esparramada no chão e em resposta recebeu um gesto vulgar da parte da minha amiga.

O sinal que anunciava o fim do almoço tocou pouco depois que Zack deixou nossa mesa. Cada uma partiu para sua respectiva aula e não voltamos a nos esbarrar pelos corredores até a saída, hora em que combinamos de nos encontrar.

Meus pais ficariam orgulhosos. Eu consegui durar um dia inteiro em St Clair sem desencadear desastres de proporção bíblica e livre de me envolver em disputas de ego com professores novos. Aos poucos eu estava voltando para a segurança da rotina, me misturando à multidão como outra aluna qualquer. A sensação era reconfortante, mas eu estaria mentindo se dissesse que o tempo até a hora da saída passou em um piscar de olhos. Durou no mínimo o suficiente para tirar uma boa soneca graças a apresentação de slides na aula de geopolítica.

No momento em que nossos pés tocaram o chão do estacionamento, Jackie anunciou em alto e bom tom:

— Não se esqueça de me ligar quando estiver pronta. Nós vamos juntas.

Enquanto Zoe e Jackie seguiam em direção aos portões de St Clair, eu procurava pelo carro do meu irmão entre as intermináveis fileiras de automóveis. Aparentemente, eu não fui a única Wright a completar um dia longe de problemas. Cole me daria carona para casa hoje ao invés de passar a tarde apodrecendo na detenção. Eu chamava isso de progresso.

— Certo. O que eu devo vestir?

— O que você sempre veste, piranha. Você arrasa.

Ela falou com tanta convicção que eu não tive outra opção senão rir.

Nós seguíamos pela grama, já que andar no meio dos carros se mostrou uma tarefa impossível. Tente caminhar em uma área escolar na hora mais movimentada do dia e não ser surpreendida pelos avanços desenfreados de um motorista recém habilitado.

— Zoe — eu me voltei para a mais nova integrante do nosso grupo — Você vem, não é? Não me deixe ficar sozinha quando a Jackie sumir.

Surpresa genuína atravessou o rosto da menina.

— Não achei que seu amigo estivesse falando sério quando me convidou.

Meus pés se fincaram na grama verde e as duas quase tropeçaram em mim. Uma brisa quente varreu as folhas do chão e espalhou nossos cabelos para todas as direções, mas o assunto era urgente a ponto de não nos importarmos.

— Óbvio que ele estava falando sério — foi a vez de Jackie intervir. Ela decidiu que a recém chegada era digna de sua aprovação depois de passarem o último período juntas. Imagine minha surpresa ao encontrar as duas conversando no corredor principal como velhas amigas.

— Não sei se é uma boa ideia.

— Pense com carinho. Se você não for, estará perdendo uma chance única de ver a melhor banda de garagem que já existiu — eu fingi examinar minhas unhas — Não estou falando isso só porque meu irmão e meu melhor amigo estão na banda.

— Não, mas é claro que não — Zoe assentiu, falhando em conter um sorriso.

Pela expressão no rosto da menina, até a hora do ensaio ela já teria cedido à minha proposta. Além de ser uma ótima oportunidade para apresentá-la ao resto do grupo, eu precisava ter mais alguém do meu lado caso acontecesse de Jackie me jogar aos lobos. A noite prometia ser longa e eu não gostaria de ser surpreendida.

— Tenho que ir, minha carona chegou — Jackie interrompeu nossa conversa para indicar uma minivan vermelho cereja parada a alguns metros de nós — Pense nisso, Zoe — ela gritou por cima do ombro — A gente te envia o endereço por mensagem.

Jackie não nos deu tempo para despedidas. Assim que ela fechou a porta atrás de si, a minivan arrancou com tudo, levantando uma nuvem de poeira no ar. Eu e Zoe permanecemos estáticas enquanto a lataria vermelho cereja diminuía à distância. Havia rastros de pneus onde o carro havia acelerado, deixando marcas no asfalto como uma trilha. Suponho que esse seja o mal caminho que todos tanto falam.

— Isso foi impressionante — a menina tossiu em meio a poeira. — Ela é sempre assim?

— Você ficaria surpresa — respondi de imediato.





H U N T E R


— Tente mudar de tom.

Eu movi minhas mãos sobre o baixo mais uma vez e música fluiu com facilidade por meus dedos, preenchendo o cômodo. Depois de treinar por semanas até a exaustão, eu me sentia pronto para subir no palco ao lado da banda e enfrentar qualquer multidão. Zack, no entanto, ainda precisaria de um pouco mais de convencimento para acreditar nisso.

Nós havíamos chegado no bar mais cedo para fazer a prova de som e tudo corria dentro do planejado, até que o guitarrista descobriu uma nova maneira de tornar a minha vida insuportável. Zack Dempsey era a morte da espontaneidade. Esmiuçando a melodia em pequenas frações de som, ele encontrou um trecho do meu solo que não o agradava. Isso abriu caminho para uma coleção de críticas intermináveis e repetições obsessivas, que nunca nos levavam a lugar algum. A situação servia apenas para me lembrar que eu poderia ter passado na audição para baixista, mas ainda continuava sob julgamento e constante avaliação do líder da banda.

— Tem certeza que você afinou direito?

Eu levantei os olhos das cordas e encarei o guitarrista sem acreditar. Aquele arranjo de acordes graves complementava a melodia como uma ponte entre a guitarra psicodélica e a atmosfera sexual do rock and roll. Era a alma da música. Se Zack não conseguia enxergar isso, então não havia nada mais que pudesse ser feito.

— Vai se foder, Dempsey. O problema está nos seus ouvidos.

A banda quase não fazia ensaios abertos, mas quando essas raras ocasiões aconteciam era sempre assim: Cole cem por cento foda-se, Finch bêbado antes mesmo de chegar perto dos instrumentos e Zack consumido pela insegurança. A ansiedade que irradiava do guitarrista era tamanha que eu quase me esquecia que a plateia reunida lá fora consistia em alguns dos nossos amigos e mais meia dúzia de alcoólatras.

— Eu já tinha mandado se foder há muito tempo — Seth murmurou distraído.

Como não fazia parte da banda, o ruivo se deitou em um sofá velho no canto do cômodo e ficou ali pelos últimos quarenta minutos, plantando sementes da discórdia sempre que surgia a oportunidade.

— Você está jogando snake? — Cole Wright, irmão da April e baterista, perguntou intrigado — Ainda fabricam essa geringonça? — dessa vez ele se referia ao celular.

Eu respirei fundo, me preparando para ouvir o piti do meu melhor amigo. Cole não fazia a ideia do erro que havia cometido ao falar do celular.

— Mais respeito para falar do meu Nokia. Isso aqui é uma relíquia — Seth se endireitou contra as almofadas — Resistente, praticamente inquebrável. Entretenimento para as crianças e item de luxo no apocalipse zumbi. Quer ouvir mais? Quando vocês, seus otários, estiverem sem bateria no fim do mundo, vocês vão ver só. Smartphone é o caralho. Com essa porra aqui eu vou me comunicar até via satélite — meu melhor amigo continuou a enumerar as qualidades do celular e Cole ria, sem se incomodar com o jeito aloprado do ruivo.

Antes de ser baterista da The F Word, Cole Wright era representante da Thomas. Eu o conhecia tão bem quanto todo mundo, o que não queria dizer muita coisa. O loiro sabia se comunicar, se vestia bem e era uma praticamente uma estrela nos corredores de St Clair. Ele mantinha equilíbrio entre os ensaios da banda e seus deveres como líder da fraternidade com maestria, sempre arrebatando uma legião de seguidores aonde quer que fosse. Sem dúvidas, a presença dele teve impacto na imagem da The F Word. Para o resto do colégio, nós provavelmente éramos conhecidos como a banda em que Cole Wright toca (ou até mesmo a banda do Zack).

Eles continuaram a discutir sobre banalidades e eu fui até a cortina que separava o ambiente do resto do bar. Não existia um camarim onde pudéssemos relaxar antes nos apresentarmos. Nós estávamos confinados em um espaço de doze metros quadrados sem janelas, uma espécie de antessala atrás do palco, que dispunha de uma poltrona de couro caindo aos pedaços, dois sofás encardidos que não combinavam entre si e um tapete persa desgastado. A parede era coberta por uma camada de pôsteres e grafites, e no único espaço em branco havia uma marca de sujeira retangular onde alguém um dia pendurou um espelho.

O palco também não era grande coisa. Consistia em uma plataforma de madeira que fora fixada ao chão bem antes de nascermos, um conjunto de holofotes ainda mais antigos e caixas de alto falantes dispostas nas laterais. A bateria já estava posicionada no fundo, de forma que nós deveríamos entrar primeiro para conectar nossos instrumentos ao equipamento de som. Eu não me dei ao trabalho de me preocupar com essa parte. Zack passou a última meia hora verificando cada centímetro do palco. Por mais irritante que fosse, o cara sabia o que estava fazendo.

Eu olhei para baixo, onde o público começava a se reunir. Para uma quinta-feira, o movimento no bar conseguia ser impressionante, superando dias de sexta. Estava escuro, mas eu consegui reconhecer alguns rostos perdidos na plateia próxima ao palco. Meus olhos vagaram pelas meninas de costas no bar, todas elas em roupas escuras e decotadas, segurando suas próprias bebidas. Nenhuma tinha os cabelos castanhos, o sorriso presunçoso ou nariz empinado característico de April Wright. Talvez a garota nem viesse. Eu não deveria ficar procurando por ela.

— April, onde você está? — uma voz se distinguiu dentre as conversas abafadas atrás de mim. De volta aos bastidores, Cole estava junto a porta. Ele tinha seu celular colado ao ouvido e parecia se esforçar para ouvir a pessoa do outro lado da linha — Por que você é tão teimosa? Finch ainda te ofereceu carona.

Seth conseguia ser uma velha fofoqueira quando queria. Assim que eu me virei para espionar meu colega de banda, encontrei os olhos do ruivo atentos a mim. Ele estava escutando a conversa e o nome de April não escapou de seus ouvidos. O ruivo se aconchegou a poltrona depois de um breve gesto de desaprovação misturado com zombaria e voltou a se concentrar no celular. Parecia um pirralho de oito anos.

Quando procurei por Cole novamente, ele já tinha atravessado a porta que dava acesso a rua de trás.





A P R I L


— Você perdeu a cabeça? — meu irmão indagou assim que nos viu. Ele tinha o celular em uma mão e um par de baquetas na outra. Pela expressão em seu rosto, o garoto deveria estar aguardando nossa chegada há um bom tempo.

Depois de andarmos por cada rua suja e mal iluminada daquele bairro, eu tive que dar o braço a torcer e ligar para Cole pedindo orientações. Já que meu senso de direção provou não ser dos melhores, o garoto se ofereceu para sair do pub e nos recepcionar. Eu, Zoe e Jackie estávamos descendo o quarteirão à procura do bendito bar quando finalmente o encontramos.

— Pode-se dizer que sim — eu ri acompanhada das meninas. Nós havíamos feito uma pequena parada em uma loja de bebidas no caminho para o ensaio dos garotos. Pareceu uma boa ideia na hora.

Encurtando a distância entre nós, eu tive a impressão que Cole se acalmou um pouco uma vez que viu meu rosto. Eu estava inteira, nenhuma parte faltando, e o garoto detestava ser um estraga prazeres. Não havia motivo para estresse.

— Esse bairro é perigoso. E se eu não atendesse o celular?

— Por favor — eu bufei — Sou sua irmã. É claro que você me atenderia.

Minha melhor amiga se posicionou ao meu lado, passando um braço por cima do meu ombro.

— Cole — Jackie fez menção de cumprimentá-lo, mas a fachada insatisfeita do garoto desencorajava qualquer tipo de aproximação — Saudades.

— Você tinha que estar envolvida.

— Seja legal, Cole. Nós estamos indo para um bar! — ela pôs um braço por cima do meu ombro e não consegui ignorar o falso tom de entusiasmo em sua voz — April quis sair, você está ensaiando. Por que o incômodo?

Eu pisquei surpresa. Os dois estavam prestes a entrar em uma discussão sobre o que eu podia ou não fazer. Meu irmão de um lado, bancando o super protetor, e Jackie do outro, provavelmente interessada em vê-lo irritado. O esforço dela chegava a ser um insulto para mim — eu conseguia me defender sozinha muito bem.

— Vocês podem ficar aqui discutindo mais um pouco. Se precisarem de mim, estarei lá dentro. Vem, Zoe — eu chamei a menina que havia ficado para trás.

Antes que eu desse as costas, Cole abriu a boca na intenção de dizer algo. Eu esperei, mas, pelo silêncio, as palavras pareciam ter morrido na garganta do garoto. Talvez fosse melhor assim. Ele, mais do que ninguém, deveria saber o quanto eu detestava ser controlada.

À medida que nos aproximávamos do bar, o letreiro acima de nossas cabeças tomou forma. As letras de neon apagadas combinavam com o quê de abandono do lugar, uma espelunca espremida entre dois outros estabelecimentos caindo aos pedaços. Junto à porta havia uma fileira de motos e dois homens conversavam fumando seus cigarros, ambos com toucas protegendo-os do frio.

— Pssst — ouvi um dos homens nos chamando aos risos.

Zoe empurrou a pesada porta de aço e eu a acompanhei de perto com os dentes cerrados. Era muito azul lá dentro. O pequeno corredor da entrada tinha luzes neon no teto e paredes revestidas por ladrilhos brancos cheios de rabiscos. A primeira coisa que reparei foi que não estávamos sozinhas. Havia um casal aos amassos no canto, sem dar a mínima para os recém chegados. No fim da passagem estreita, uma cortina negra separava o ambiente do bar. Eu conseguia ouvir o som de música e conversa abafada vindo do outro lado. Nós arrastamos a cortina e eu quase soltei um suspiro aliviado ao espiar o interior do estabelecimento.

O bar parecia ter saído da imaginação de um amante da cultura boêmia. Vigas de madeira sustentavam o teto enquanto paredes de tijolo se erguiam em cada canto do estabelecimento, tão antigas quanto as outras construções do bairro. Havia música tocando em uma jukebox não muito distante de nós e o barulho de um jogo de sinuca em andamento interrompia o som de vez em quando. As mesas próximas ao balcão estavam abarrotadas de clientes, todos envolvidos em conversas animadas, próximos de pelo menos um copo cheio de Guiness. Um arco de pedra separava o bar de um espaço sem mesas ou cadeiras, onde pessoas se reuniam de pé, aguardando a The F Word. O palco em que os garotos se apresentariam ficava ali, no fundo do estabelecimento.

— April — Jackie nos alcançou assim que nos aproximamos dos bancos altos — Relaxa. Cole vai esquecer tudo quando começar o show.

Eu concordei sem vontade enquanto Zoe pedia nossos shots. A bartender tinha os braços cobertos de tatuagens e olhos delineados em gatinho, como uma pin-up dos anos 50 — ela não se preocupou em checar nossas identidades, apenas pediu para aguardarmos. Quando as bebidas chegaram, nós erguemos os pequenos copos em um brinde descoordenado. Talvez ainda restasse resquícios de embriaguez no meu corpo de hoje mais cedo. Eu virei o conteúdo de uma vez só e o álcool desceu por minha garganta como fogo. Tive que me controlar para não fazer uma careta.

Mesmo na semi escuridão, eu consegui ver Jackie sorrir:

— Esse é o espírito.





Quando Hunter Campbell aceitou fazer parte da banda, ele sabia que seria questão de tempo até que seus caminhos se cruzassem com os de April Wright novamente. A menina era melhor amiga do vocalista e irmã do baterista. Cedo ou tarde, ela apareceria em algum ensaio para apoiá-los e Hunter não deveria ficar surpreso, muito menos interessado na presença da garota. Porém, por mais que tentasse tirá-la da cabeça, não era a razão que guiava o rumo de seus pensamentos.

O garoto bufou insatisfeito e retornou o baixo ao suporte. Estava quente demais atrás do palco. Os outros integrantes da banda bebiam cerveja gelada para amenizar o calor, mas Hunter deixou essa rodada passar. Fazer música era uma das poucas coisas que ele gostava na sobriedade e não estragaria essa oportunidade entornando vários copos compulsivamente.

A banda entraria no palco em poucos minutos. Todas as pessoas que tinham alguma importância naquele colégio estavam ali, poucos metros atrás daquela cortina, esperando os meninos aparecerem. A energia que corria por suas veias era indescritível. Sem dúvidas entrar para a The F Word foi a melhor escolha que ele tomou em seus poucos anos de vida.

O baixista ainda espiava o público por uma fresta quando algo interessante capturou sua atenção. Os cabelos longos e castanhos caíam sobre as costas nuas e seus quadris se moviam no ritmo da música que pulsava nos alto falantes. Era April. Só podia ser ela.

— Sério, Campbell? Ela?

Hunter praguejou ao se dar conta da aproximação de Seth. O intruso olhava na mesma direção que ele, avaliando o corpo da garota com uma expressão tão suja que o fez querer dar um murro na cara do ruivo.

— Acredite em mim quando eu digo que não te julgo — sua voz era como um murmúrio contemplativo. Um som áspero e calculado — Não tenho problemas com isso, mas conheço alguém que pode ter. Campbell, nós mal fizemos amizade com o cara e você já quer levar a irmã dele pra cama.

Além do ruivo, restava apenas Finch na pequena sala. Por sorte, Cole Wright havia sumido depois da ligação misteriosa.

— Nós estamos falando da April? — Finch deixou o instrumento de lado com um sorriso besta no rosto. Algo naquele gesto incomodou Hunter de um jeito quase infantil.

— Não estamos — ele rosnou de volta, ainda que suas orbes azuis queimassem sobre ela.

April dançava com duas garotas que Hunter não reconheceu. Ela estava mais bonita do que na noite em que invadiu a casa dos Halden.

— Pode ficar tranquilo, Hunter — Finch bateu em suas costas — Não temos código para isso na The F Word.

— Não estou pedindo permissão a vocês.

O que acontecia entre ele e April definitivamente não era da conta daqueles enxeridos. Hunter estava convencido de que, se fosse para rolar alguma coisa, seria somente por iniciativa da menina. Desde o início ele deixou suas intenções claras e avanços vindos da parte dele eram o que não faltava. Bastava uma palavra de April para que tudo isso mudasse.

Por que diabos estava pensando sobre isso?

— Temos cinco minutos — Zack entrou no camarim segurando um engradado de cerveja entre as mãos. A bebida era parte fundamental de um ritual tosco que eles faziam antes de entrar no palco, com direito a música e tudo. Começou como uma brincadeira e agora nenhum deles tinha coragem de quebrar o costume — Vamos lá, Hunter. Uma pra tomar coragem — o garoto estendeu uma das latas.

— É, Hunter — o ruivo se aproximou com um sorriso diabólico no rosto — Para tomar coragem.

Hunter tomou a bebida da mão do amigo.

— Só me dá isso.





N/A: Boa noite às corujinhas da madrugada!!!!! Autora insone é foda!!!!1!

No próximo capítulo teremos a primeira apresentação da The F Word aqui em BS. Queria saber se vocês estão sentindo o mesmo que eu, porque eu tô muitíssimo orgulhosa dessa cambada de doidos.

Só tô decepcionada com a mídia desse capítulo (os pés em um palco) porque eu queria uma imagem com mais qualidade, mas não achei.

Vocês podem falar comigo nas redes (twitter e instagram @barbaratempest) e aqui no Wattpad @ btempest (o bônus de me seguir é que você tem contato com conteúdos exclusivos das minhas historias UHAUHAU). Não esqueça de deixar sua estrelinha no capítulo, pois como todos já sabem sou uma cadelinha carente que precisa de retorno.

ATENÇÃO! Queria que vocês soubessem que eu e a AndresaRios estamos escrevendo uma história JUNTAS e está maravilhosa (imagina o PODER dessa parceria). Chama-se BAD KARMA. Isso mesmo que você leu: BAD KARMA. Você foi hipopotizado. Você só sabe que precisa ler BAD KARMA no Wattpad. Pode procurar agorinha mesmo, no perfil da Andy. Está uma verdadeira belezinha. Usarei esse último espacinho para fazer propaganda da nossa história, hehehe.

Beijos,

B.

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