Capítulo V
A P R I L
DEPOIS DE ARRASTAR UM Zack muito sem noção para longe do casal, eu tratei de achar um lugar livre de inspetores para conversarmos. Acabamos no mesmo lugar de sempre: sentados debaixo da árvore que virou referência no colégio por ser a mais antiga, enraizada no centro de um pátio pouco movimentado. O velho carvalho tinha o tronco retorcido coberto por musgo e por iniciais cravadas com a ajuda de canivetes. Em dias como aquele, em que a luz do sol rasgava o céu e atravessava as nuvens, a sombra daquela árvore era o abrigo favorito de fumantes que cabulavam aula. Eu e Zack não tínhamos o hábito de fumar nas dependências do colégio, mas definitivamente mataríamos aula ali.
Enquanto eu tinha minhas mãos apoiadas no chão atrás de mim, meu melhor amigo se concentrava em brincar com a grama. Ele destruía o caule da planta com a ponta dos dedos e sustentava um assunto banal para fugir das minhas possíveis perguntas.
Esse tempo todo Zack sabia da possível existência de um romance escondido envolvendo Indy e meu irmão. Eu me sentia deixada para trás na escala da inteligência. Minha cabeça trabalhava a todo vapor, rebobinando várias vezes cada momento em que Indy e Cole estiveram no mesmo cômodo nos últimos seis meses, tentando entender em que momento eles deixaram de ser estranhos e começaram a agir daquela forma perto do outro. Os sorrisinhos e os olhares... Simplesmente não entrava na minha cabeça a ideia de que uma das minhas melhores amigas estava aos amassos com meu irmão.
— Queria que você escutasse a nossa nova música.
O quê?
Zack Dempsey tinha as sobrancelhas franzidas pela claridade e observava meu rosto de forma cautelosa. Eu havia me distraído em algum momento da conversa e o deixei a falar com o vento, mas era importante que o garoto não soubesse disso. Em uma tentativa de confortá-lo, eu suavizei minha expressão.
Ele tinha uma banda com dois amigos, Finch e meu irmão. O nome era The F Word — os meninos ainda estavam em um período de adaptação ao mundo da música e não tiveram medo de abraçar a fase banda de garagem. Eu não tinha certeza do comprometimento do Cole, mas sabia que os garotos amavam a música e que Finch era tão devoto a banda quanto Zack.
— Tenho certeza que vocês vão arrasar.
— Sim. Por isso você vai no nosso ensaio aberto ao público na quinta.
Um sorriso ameaçou dar as caras.
— Eu?
— Você. Sem contar que uma mençãozinha poderia atrair uma galera para o nosso próximo show.
Os orbes castanhos da cor de chocolate carregavam a determinação de um cãozinho escoteiro. Eu sequer tinha visto um em toda minha vida, mas imaginava que fosse assim.
— Vocês são péssimos a ponto de precisarem pedir a minha ajuda? — eu provoquei, cutucando as costelas dele.
Zack revirou os olhos para a minha brincadeira. Ele ficava facilmente pilhado quando sob pressão. Depois de algumas experiências desagradáveis eu aprendi que, se não quisesse ser contaminada pelo nervosismo do garoto, era melhor evitá-lo na semana de provas.
— Eu estava brincando, Zack. Vocês são ótimos — em um impulso infantil estiquei minha mão livre e a embrenhei no cabelo dele, como se acariciasse um bicho de estimação — E mais... Você não me engana. Está na cara que só está me chamando porque quer que eu convide alguma garota bonitinha para você pegar.
O garoto permaneceu em silêncio por um tempo e eu senti meu sorriso diminuir enquanto esperava por uma reação. Era inquietante vê-lo apreensivo. Parecia fora do personagem que alguém tão alto astral como o Zack se sentisse assim.
— Espero que sejamos tão bons quanto você pensa — o garoto concluiu sério, ignorando minha tentativa de melhorar o clima.
Eu libertei os fios castanhos e bufei para o pessimismo dele:
— Te vejo no pub, quinta, então?
Quinta era o dia dos ensaios da The F Word. Eles geralmente ensaiavam, tomavam um porre e depois continuavam a tocar para quem quer que aparecesse. O dono do pub não se importava — primeiro porque o valor do cachê por ensaio era quase insignificante e, segundo, porque o velho Athos era um bêbado que se dizia acima de tudo "um grande financiador das artes e do rock and roll". Ele prometeu que ainda chegaria o dia em que os meninos ocupariam o palco em uma sexta-feira, quando o bar alcançava seu pico de movimento, mas eu duvidava disso.
— Antes você precisa saber de uma coisa, April — dessa vez ele refreava um sorriso — Nós arranjamos um novo baixista.
— Isso não é problema algum, Zack! Na verdade, isso é ótimo — eu quase pulei no meu lugar. O antigo baixista havia se mudado da cidade e por isso eles estavam fazendo progressos lentos com a banda.
— Você não vai ficar tão feliz quando descobrir quem é.
Zack vivia me tratando como se eu fosse a mesma menina que ele conheceu anos atrás: a irmã mais nova do Cole, que corria solta por aí pronta para arranjar problemas. Às vezes a preocupação dele era aceitável, nas outras só servia para me irritar. Eu endireitei a barra da saia, me sentando novamente em cima das pernas, e esperei pela revelação.
— O Hunter.
Contei até cinco mentalmente e revirei os olhos para a previsibilidade do meu melhor amigo.
— É a sua banda, Zack — bufei impaciente. — Eu não tenho o menor direito de ficar chateada. Pelo contrário, estou feliz que você tenha conseguido um baixista a tempo do festival — ele estava prestes a rir da minha cara quando eu levantei um dedo indicador no ar: —, mas isso não significa que o Campbell deixou de ser um babaca.
— Pestinha, você é demais — Zack tentou bagunçar meu cabelo e eu fugi de seu toque. — Agora vamos para a aula. Não quero perder a chamada dessa vez.
— Repetir de ano por faltas? Você acredita nessa lenda urbana? — eu debochei, esperando a represália. Nunca em meus oito anos de colégio levei esse lugar a sério.
— Existem teorias que nem eu estou interessado em botar a prova, April Wright.
Ele piscou para mim e eu suspirei, aliviada por tê-lo de volta ao seu estado normal.
Desde o episódio no estacionamento da escola eu não tinha mais visto o Campbell. Fazia menos de quatro horas desde que eu havia revidado fogo com fogo e eu já sentia que as forças do destino tinham voltado a conspirar ao meu favor, colocando tudo de volta em seu devido lugar.
Eu e Zack estávamos no fundo do laboratório, esperando a aula de biologia começar. As bancadas espalhadas pela sala tinham a superfície feita de mármore, cada uma munida de duas pias. Ocasionalmente algum professor usava o espaço e esquecia frascos com elementos químicos em cima do balcão ou vidros de alimento em conserva com animais mortos preservados em formol. Nojento, mas legal.
Naquele momento, eu e meu amigo com uma quantidade avantajada de criancice examinávamos a grande estante no fim da sala. Dentre os potes com rótulos gastos nós tentávamos achar o cadáver mais parecido com nosso velho camarada, o diretor. Nós estávamos quase chegando a um consenso quando um homem razoavelmente jovem entrou no laboratório, segurando uma caneca de café como um típico professor.
— Bom dia, classe — ele dispôs o material em cima da mesa e se voltou para o quadro negro, preenchendo-o com uma caligrafia elegante — Sou Jacob LeBeau, e irei substituir a senhora Hall esse semestre.
Ele finalmente se virou para a turma e pudemos ver seu nome escrito em giz no quadro.
— O quê? — Zack estava em choque.
O anúncio gerou grande comoção entre os alunos. Alguns comemoravam o professor substituto e outros lamentavam. A senhora Hall era nosso passaporte para a aprovação, mas ao mesmo tempo em que as pessoas a odiavam pela metodologia, eu e Zack a amávamos por distribuir folhas de estudo dirigido para cada tópico da prova.
— Por quanto tempo a senhora Hall vai ficar de fora? — um garoto que dormia durante todas as aulas de biologia perguntou. Aquela devia ser a primeira vez que eu via o rosto dele fora dos livros.
— Ela estará de licença nos próximos seis meses.
Jacob era loiro, alto e arrogante. O resto da turma poderia adorar professores indiferentes que adoravam pisar nos alunos, mas eu não era muito fã.
— Turma. Vou ditar algumas regras para facilitar nossa convivência — o canto dos lábios dele se repuxou sem humor algum — Deixo bem claro que, por mais que eu pareça jovem, isso não nos torna iguais. Nós não somos coleguinhas — contornou a mesa de madeira e se postou na frente da classe, onde todos poderiam vê-lo — Existem vários fatores que me diferem de vocês. É por isso que eu sou doutor em bioquímica e vocês são alunos — o professor fez uma pausa, analisando os rostos, procurando alguma objeção. Quando os olhos dele pousaram em mim, pelo sorrisinho idiota, pude ter certeza que eu estava com uma bela cara de bosta — Então, vamos começar esse semestre estudando os aspectos microscópicos da célula.
— Perdemos a senhora Hall e ganhamos o substituto do capeta — Zack murmurou por baixo da respiração — É como se fosse a vingança de todos os professores substitutos que nós aterrorizamos.
— Chama-se karma.
Aquele era o retrato da minha vida escolar: a gente se fode, mas não perde a piada.
Enquanto Jacob listava todas as quatro fases da divisão celular, a tensão dentro do laboratório de biologia não deu trégua. Os alunos permaneceram calados, tão quietos em seus assentos que seria possível ouvir o som de uma agulha caindo no chão. Era revoltante. Na aula de professores melhores esses pestes quase ateavam fogo na sala, mas quando um substituto os humilhava, eles viravam santos. Não fazia sentido pra mim.
Antes que eu conseguisse concluir meu manifesto diabólico, a porta se abriu em um rompante. Uma leva de alunos passou por ela como uma manada, destruindo qualquer paz que tivesse sido instaurada antes.
— O que é isso? — a irritação na voz do professor fez todos pararem imediatamente.
Seth, que estava na frente do grupo, apontou para si mesmo como se perguntasse se o professor falava com ele. Mesmo sem pronunciar uma palavra, o olhar de Jacob continuou a inquirir uma resposta.
— Nós chegamos atrasados — o ruivo franziu o cenho em desconfiança — E você, quem é?
— Eu sou o professor dessa aula. Você se reporta a mim para entrar — o homem cruzou os braços como se esperasse respeito.
Mal sabia ele que de Seth Montgomery ele não teria nada.
— A gente pode entrar, então? — o garoto arqueou uma sobrancelha com indiferença.
Uma coisa sobre os professores e demais autoridades dessa escola é que, para não instigá-los, você não deve dar ouvidos a eles. Se fosse alguém com menos lábia, com certeza já teria ganhado uma advertência. Acho que eles sentem o cheiro do medo exalar dos aluno mais fracos.
— Agora já entraram — Jacob limpou as mãos de giz enquanto esperava o grupo se acomodar.
Seth caminhou na nossa direção sem mochila ou material que indicasse que ele estudava naquele colégio. Atrás do ruivo, o relâmpago Indy adentrou na sala e fez seu caminho para as bancadas da frente, sem nem olhar para nós. Ela se sentou em uma fileira ocupada inteiramente por garotas da Rosseau.
— Quem é esse maluco? — Seth perguntou ao puxar um dos bancos para se sentar conosco.
— A senhora Hall está de licença e mandaram esse cara.
— Ela está morrendo?
Zack hesitou em responder.
— Não.
— Então estão de putaria com a gente — o ruivo concluiu.
O garoto parecia genuinamente perturbado com o assunto. Ele franziu a testa e o resto do rosto coberto por sardas sustentou a mesma expressão revoltada.
— Olha a boca, Seth. Estamos na companhia de uma dama — meu amigo fez uma reverência exagerada para mim e eu os estendi o dedo médio.
— Ah, verdade — Seth sorriu se inclinando para mim. — E você como vai, gata?
Eu ainda escolhia uma resposta quando o ruivo se desequilibrou em cima do assento, quase caindo para trás. Zack havia chutado a perna do seu banco, e foi xingado algumas vezes por isso.
O som de um pigarro nos fez virar para frente da sala. Jacob tentava explicar o que era divisão celular para a turma e parecia particularmente insatisfeito com a nossa falta de interesse no novo tópico. Ele conseguiu chegar na primeira fase da mitose antes de ser interrompido pela terceira vez. A porta se abriu e o professor fez uma pausa incomodada, mas o aluno continuou seu caminho até o fim da sala sem hesitar. O moletom gasto não tinha a mesma presença de espírito da jaqueta de couro preta, mas era um substituto à altura. Hunter Campbell andava em passos confiantes na direção da nossa bancada e não dava sinal algum de ter reconhecido minha presença.
— Bom dia — o garoto murmurou ao tomar o assento do lado do Zack. Ele parecia bem, até que finalmente me viu — Você — os olhos azuis se estreitaram quando pararam em mim, e eu sorri satisfeita por fazer o dia dele mais miserável.
— Eu.
Campbell disparou um olhar para o meu melhor amigo, esperando alguma explicação.
— Desculpa, cara — Zack sorriu. — A gente sempre fica no mesmo grupo na aula de biologia.
— Mas que merda, Dempsey — Hunter o fuzilou com o olhar, como um pirralho de oito anos ao descobrir que quebraram seu brinquedo favorito.
— É, que péssimo. Eu não poderia me lamentar mais! — Seth bufou irônico — Campbell, pelo menos ela vai servir para aumentar nossa nota.
Zack balançou a cabeça negativamente para os amigos, e eu ri.
— Pessoal, atenção aqui na frente. Eu quero que vocês se dividam em duplas — o som de bancos sendo arrastados contra o piso quase abafou a voz do professor — O nosso experimento de hoje é muito simples. Quero que identifiquem as fases da divisão celular nessas lâminas que distribuirei e respondam o relatório. Vocês terão esses dois tempos para concluir isso.
— Vai valer nota? — alguém tomou coragem para perguntar e o resto da classe esperou em expectativa.
— Sim, portanto não estraguem a folha — Jacob retrucou, já compenetrado na próxima tarefa.
Durante as instruções do professor, os garotos aproveitaram para mexer nos tubos de ensaio da pequena estante. Era como se eu estivesse na aula de química básica com Jackie novamente. A morena examinava todos os objetos que sua mão podia alcançar, levando uma versão mais nova e controladora de mim a loucura — ela fazia todo tipo de mistura quando a professora não estava olhando.
Eu tinha que admitir que era um pouco fofo ver os meninos fascinados por tudo.
— Me dá isso aqui — Seth puxou um tubo da mão de Hunter — Como que você fez ficar azul?
— Isso é sulfato de cobre anidro, gênio. Quando se coloca água, fica azul. Antes era branco.
Levantei uma sobrancelha em silêncio, esperando pela próxima sabedoria.
— Já está impressionada? — Hunter sorriu ao perceber minha surpresa, e eu fechei a cara imediatamente — É um dos meus vários talentos. Se eu soubesse que você fazia mau juízo da minha inteligência já teria mostrado esse meu lado antes — ele piscou para mim com o famoso sorriso torto nos lábios.
— Impressionada, não: mortificada. Você deve ser a prova viva de que prestando atenção qualquer um consegue — eu sorri complacente — Deve ser uma inspiração para tantos outros palermas.
Hunter não se deixou atingir pelo meu comentário. Pelo contrário, as orbes cor de safira não conseguiam esconder o prazer que sentia ao ser desafiado por mim. Ele estava prestes a responder quando Zack se pronunciou:
— Eu estou me sentindo desconfortável sentado entre você e o Hunter. Parece que a qualquer momento vocês dois vão se agarrar ou cair no soco.
O garoto encolheu os ombros para mim, o que era no mínimo engraçado já que Zack era ridiculamente alto.
— Algum problema nessa bancada? — Jacob se aproximou — Bancada número... Seis — ele olhou para a etiqueta que indicava o número da nossa mesa e distribuiu duas caixinhas contendo as lâminas.
— Só o de sempre — Seth resmungou enquanto colocava água nos tubos de ensaio, sem se incomodar em fitá-lo. O professor nem tentou advertir o ruivo a largar os vidrinhos porque sabia que era uma causa inútil.
— Senhor Dempsey, certo? — Jacob apontou para o Zack e eu me preparei para entrar na defensiva — Quero que você faça dupla com o garoto dos vidros. A senhora Hall falou bem de você, ajude o seu amigo a... — ele olhou com certo desdém para Seth — Bom, qualquer ajuda seria boa. Você deve ter alguma noção da matéria.
Isso só podia significar uma coisa. Olhei assustada para Hunter, que permaneceu em silêncio.
— Espera! — a palavra saiu dos meus lábios antes que pudesse pensar direito, e Jacob se voltou para mim como se eu fosse uma criança muito burra — Eu... Ia fazer dupla com o Zack.
— Agora não vai mais — ele explicou lentamente, olhando nos meus olhos. Uma ignorância desnecessária que me fez fechar o rosto.
— Não tem como eu formar uma dupla com o Campbell, professor.
— Eu não ligo — o loiro sorriu desgraçado e minha mente travou durante uns segundos. Ouvi os garotos rirem, mas não me importei. Eu só conseguia encarar Jacob pensando no meu próximo argumento — Troquei todas as duplas convencionais da sala, senhorita Wright. Não leve isso no pessoal — ele usou um tom mais baixo para completar a resposta inicial, como se não tivesse a intenção de ser grosseiro. Isso só me fez querer socá-lo.
Que filho da mãe!
— Suponho que não deva se explicar para mim, então — eu vi um princípio de sorriso surgir no rosto dele, como se achasse engraçado estar discutindo comigo.
— Garoto, não trocou de lugar ainda por quê? Anda — o professor gesticulou para Hunter se mover, quebrando o contato visual.
— Acho que ele gostou de você — Zack riu enquanto pegava a mochila, deixando a cadeira ao meu lado vaga.
Pude ver pelo canto da minha visão que o espaço foi preguiçosamente preenchido por Campbell. Ele tinha os vestígios de uma risada silenciosa no rosto. Puxei o material, furiosamente escrevendo meu nome no cabeçalho, e deslizei a folha para o lado. Hunter arregaçou as mangas do moletom preto e assinou em uma caligrafia feita sem capricho algum.
— April. Eu tento, mas acho que o destino continua me puxando na sua direção — Campbell sorriu galanteador, apoiando o antebraço na bancada, e eu o olhei com desgosto.
Isso arruinaria meu plano. Eu ainda não estava pronta para ficar lado a lado com o inimigo.
Continuei a evitá-lo com todas as minhas forças, desejando que Hunter pudesse sentir as ondas de ódio que emanavam do meu âmago. Ao invés disso, eu senti o corpo masculino se inclinar suavemente sobre o meu, a boca dele na altura do meu ouvido.
— Sabe, April, para alguém que estava tão feliz em me ver, você está bem calada agora. Eu esperava por uma recepção um pouco mais... Calorosa — minha nuca se arrepiou com a respiração quente e ele riu — Como aquela que você deu para o Josh na hora da entrada.
A voz dele se tornou cada vez mais baixa até não passar de um sussurro. Eu senti seu olhar queimando o meu rosto e não pude fazer nada. Engoli em seco, me odiando por ser tão vulnerável às investidas dele. Como eu conseguiria pensar em alguma coisa com Hunter Campbell a centímetros de mim?
Ele procurava por meus olhos com uma intensidade incisiva, congelando seu estômago. Hunter não podia me humilhar mais uma vez. Eu precisava me recompor.
Meus lábios se repuxaram em malícia e Hunter imitou o gesto, arregaçando um sorriso igualmente sujo.
— O dia em que eu beijar Josh Halden pensando em você será o mesmo dia em que a Thomas vencerá o campeonato de futebol — seus olhos escurecidos me devoravam viva — Acho que além de equilíbrio químico você também deve saber um pouco de probabilidade, não é, Campbell?
Eu imaginei que ele me responderia a altura ou soltaria algum comentário engraçadinho que me faria revirar os olhos, mas ao invés disso o que recebi do garoto foi silêncio. Seus olhos cor de safira tinham ido do inferno ao gelo glacial. A linha de sua mandíbula enrijeceu deliciosa por debaixo da pele. Hunter parecia pronto para sustentar meu olhar para sempre e eu tentava superá-lo, mas aos poucos meu sorriso de vitória fraquejou.
De repente, como se concluísse um pensamento, Campbell desviou os olhos. Ele se voltou para a bancada e começou a ler as questões do relatório. Diferente das outras vezes, Hunter não se rebaixou e nem usou o charme arrogante de garoto problema. Ele me ignorou.
Eu fiz o mesmo, tentando afastar os pensamentos que cercavam a minha mente. Frustrar Hunter do jeito que nenhuma outra garota conseguia era meu jogo favorito. O que me perturbava era não saber desde quando não me render às provocações passou a soar como uma desvantagem.
— Atenção aqui na frente, classe — Jacob nos chamou — Recebi várias reclamações sobre as duplas formadas, mas não se preocupem. Os outros relatórios serão individuais. Esse será o único trabalho em dupla do bimestre se, apenas se, não houver alteração no nosso plano de aula.
— Esse cara não pode ficar muito tempo — Zack resmungou — Não é possível! Ano retrasado nós ficamos sem professor fixo de química durante o ano inteiro.
Ele ainda estava inconformado pela perda da senhora Hall. Se a ocasião fosse outra, eu teria rido. Enquanto meu amigo reclamava, Jacob continuava discursando na frente da turma, focado nos alunos que disparavam perguntas que ele não tinha a menor paciência para responder.
— Substitutos não deveriam ser tipo... Professores recém-formados? — Seth divagou, enquanto brincava com a folha de questões — Tipo aquela que deu aula para gente no nono ano? — ele suspirou — Que mulher maravilhosa. Aquele corpo...
Eu franzi o nariz. O comentário soaria repugnante vindo de qualquer outra pessoa, mas o jeito desinibido do ruivo de falar sobre qualquer coisa com todo mundo o tornava uma figura.
— Ela mal passava cinco minutos inteiros na sala sem sair para mexer no celular — eu argumentei. Pelo menos com professores grosseiros como o Jacob a gente aprendia alguma coisa.
— Essa é a definição de substituto. Eles fingem substituir e a gente finge que acredita neles — Seth retrucou, se debruçando na mesa como se preparasse para tirar uma soneca.
— Ele pode estar sendo um babaca para intimidar a turma.
— Como assim? — dessa vez foi Zack quem perguntou. Enquanto tomava notas em seu caderno, o garoto não mostrava sinais de estar realmente interessado no que eu tinha para dizer.
Ao que parecia, Zack havia ficado com a tarefa de classificar os frascos. No início Seth parecia animado para fazer o dever. Ele agarrou o microscópio como se fosse um brinquedo assim que o viu, mas depois de examinar algumas lâminas o ruivo perdeu o interesse e o entregou para o seu mais novo parceiro de laboratório.
— Os alunos dessa escola não tem uma reputação muito boa com os professores — dei de ombros — A melhor primeira impressão seria uma que deixasse todos com medo de confrontá-lo.
— Um megalomaníaco reconhece outro — Hunter se afastou do microscópio e o empurrou para mim, fazendo uma anotação na folha sem me olhar nos olhos. A voz dele soava carregada de ironia — Sua vez.
— Estava demorando para se manisfestar — eu sorri de mal grado, puxando as lentes para mim.
Inclinei meu rosto na direção da bancada, interessada em analisar o conteúdo. Eu estava alheia a tudo, menos a uma voz que fazia questão de sobrepor todas as outras. Nikki Thibault entrava na sala, seguida de suas discípulas. Era impossível ignorar aquelas risadinhas.
— Olha, quem está ali... A próxima Marie Curie¹.
Meu rosto enrubesceu, tomado pela certeza de que ela falava de mim. Eu continuei a fitar a pequena lente, sentindo Nikki passar atrás de mim. Pela visão periférica pude vê-la desfilar com um sorriso maldoso até a própria bancada, onde mais algumas a aguardavam.
Sempre me perguntei qual era a atitude mais adequada nessas ocasiões. Eu devia ignorar o comentário passivo-agressivo e revirar os olhos por ser mais madura? Ou eu deveria levantar o rosto, porque uma resposta desafiadora abriria caminho pela minha boca no último segundo? Nenhuma das duas opções parecia suficientemente satisfatória naquele momento.
Fui trazida de volta para a realidade com um toque suave, demorado demais para não ser proposital. Com a ponta dos dedos, Hunter levou a mecha que cobria meu rosto para trás do meu pescoço, deixando uma trilha quente pela minha pele. Eu levantei o rosto lentamente, presa às íris azuis. A minha respiração havia sido sugada para fora dos pulmões em um sopro. Era por isso que sermos parceiros de laboratório era uma ideia tão ruim.
— Estou quase com ciúmes, amor — ele sibilou as palavras para que só eu pudesse ouvi-las, saboreando cada segundo. Eu senti meu corpo estremecer em resposta ao novo apelido — Achei que era um dom exclusivamente meu te deixar assim, vermelha.
Ele encerrou o comentário em tom de zombaria, provavelmente orgulhoso por me deixar atordoada e terminar o trabalho da Nikki. Meus pensamentos estavam nublados pela vergonha. Um gosto desagradável inundava meu paladar aos poucos, enquanto o céu da boca era áspero contra minha língua. Eu estava impossibilitada de falar, hipnotizada ora pelas orbes azuis, ora por seus lábios.
— O que foi, April? — ele soprou. Seus olhos estreitos examinavam meu rosto em um misto de crueldade e satisfação — Josh Halden comeu a sua língua?
Meu coração batia forte contra minhas costelas, tão forte que eu achei que perderia o compasso caótico. O que era aquilo? No próximo segundo eu já tinha pego meu material e saído da sala, sem conseguir levantar o olhar nenhuma vez.
Hunter estava tendo um dia de merda antes mesmo de colocar o pé para dentro do laboratório de biologia. Encontrar com April só havia terminado de estragá-lo. Depois de prestar uma visita à sala da coordenadora e ganhar uma coleção inteira de novos problemas, sentar ao lado de April deveria ser moleza. Porém, o garoto já deveria saber que nada que os envolvia seria simples e descomplicado.
Os dois estavam em rota de colisão desde o episódio daquela manhã. Uma vez estabelecido o contato inicial, tudo foi ladeira abaixo e a culpa não era só dele. April sabia exatamente o que dizer para fazê-lo perder a calma. Logo Hunter, o menor de seus problemas.
"Foda-se April" ele pensou enquanto guardava o material na mochila. Se ela se sentia melhor ao lado do Josh, tendo que aturar todos os amigos babacas por pura vaidade, azar o dela. Hunter não tinha interesse em salvar ninguém.
O garoto estava convicto de que April merecia tudo que acontecia com ela, até que viu o rosto da menina. Era uma imagem que ele não conseguiria esquecer com facilidade. Imediatamente uma pontada de arrependimento surgiu em seu peito. Hunter não era nenhum monstro. Ele sabia que tinha exagerado com April e que provavelmente ele não era melhor companhia que os amigos falsos que a menina mantinha no bolso. Mesmo assim foi tomado pela necessidade de vê-la. Não para se desculpar, porque isso seria ridículo, mas por toda a educação que havia recebido, Hunter precisava saber se a menina estava bem.
Ele se convenceu de que foi por isso que deixou a sala para ir atrás de April.
N/A: Finalmente! Compensei aquele atraso na postagem. Agora estamos em dia com o calendário BS.
Gostaram do capítulo? Da trocas de farpas? Da saída dramática? Acho que essa foi a atitude menos April Wright que a April já tomou. Querem descobrir o que está rolando? Fiquem de olho nos próximos capítulos.
Hehehe Já sei de um pessoal que está contando os segundos por certas cenas (mas não vale espalhar spoiler).
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Enfim, vou me despedir aqui. Qualquer erro ou crítica construtiva não hesitem em me notificar.
Bjinhos,
B.
GLOSSÁRIO
¹ Marie Curie - A primeira mulher do mundo a ganhar um prêmio Nobel e a primeira pessoa a ser laureada duas vezes com um desses. Foi ela quem descobriu os elementos químicos Polônio e Rádio.
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