Capitulo IX




A P R I L

EU PODERIA CONTAR NOS DEDOS todas as vezes em que estive em concertos de música. Naquela noite, em um barzinho mal frequentado no meio do nada, eu estava prestes a presenciar o meu quinto. Zack e meu irmão não queriam admitir, mas o ensaio aberto era um grande passo para a banda. Uma vez por mês a música deles saía de garagens e porões abafados para entreter uma plateia de pelo menos cinquenta pessoas. Seria uma experiência e tanto vê-los em cima de um palco. Eu mesma já havia escutado os garotos praticarem algumas vezes e, definitivamente, eles não recebiam nem metade do reconhecimento que mereciam.

O público reunido para assistir a The F Word consistia em uma massa homogênea de jovens da minha idade: todos estudantes de St Clair, mais precisamente da Thomas. Eles tinham sorrisos descontraídos em seus rostos, vestiam jaquetas pesadas sobre os ombros e pareciam se sentir à vontade em meio ao barulho e a sujeira. Eu imaginei que frequentar locais como esse fosse mais um dos compromissos que abri mão ao escolher não fazer parte da vida social da Thomas.

Enquanto o show não começava, nós decidimos procurar por diversão na pista de dança. Uma coletânea de músicas que ia do indie rock ao pop estourava nos alto falantes, aquecendo a plateia antes da banda subir ao palco. Não demorou muito para Zoe e Jackie descobrirem que partilhavam da mesma predileção por rock dos anos 90. Quanto a mim, eu rapidamente me dei conta de que os pesados coturnos que envolviam meus pés não foram feitos para dançar. Eram novos, de solado duro e bico reluzente. Assim que a quarta música terminou, Zoe e Jackie me acompanharam de volta ao balcão de madeira.

Uma camada fina de suor cobria a minha pele e minha garganta implorava por mais uma rodada. Eu estava pronta para virar meu segundo shot da noite quando uma movimentação nos fundos do bar nos chamou a atenção.

Finch e Cole entraram no palco primeiro, dispensando qualquer anúncio. Um coro de incentivos varreu os quatro cantos do pub e eu não resisti: comecei a bater palmas cheia de orgulho. Meu irmão se sentou atrás da bateria com uma expressão compenetrada no rosto, girando as baquetas entre os dedos; muito diferente de Finch, que se acabava de rir com as palhaçadas dos amigos misturados à plateia. O garoto desviou dos cabos espalhados pelo chão e conectou a guitarra ao equipamento de som. Hunter e Zack foram os últimos a surgir de trás da cortina, empurrados por Seth. Os dois ainda conversavam quando o ruivo desceu, se misturando à multidão.

— Não consigo ver nada daqui — Zoe gritou por cima do barulho.

Ela estava certa. Além da distância, um mar de adolescentes de todas as alturas nos separava dos meninos. Teríamos que fazer bem mais do que apenas esticar o pescoço se quiséssemos enxergar alguma coisa do show. Antes que eu pudesse concordar, Jackie bateu o copo de vidro na bancada e se voltou para nós duas:

— Tudo bem, eu estou indo para lá — a morena se pôs de pé, alinhando as roupas sobre os ombros — Quem vem comigo?

Zoe não precisou ouvir mais encorajamentos. Ela desceu do banco com um pulo e aterrissou no chão como um gato. Nós duas abrimos caminho pela multidão agitada, serpenteando pelos corpos suados sem nunca perder os cachos castanhos de Jackie de vista. A morena só parou quando alcançamos um lugar na platéia com vista privilegiada para o par de all stars sujos do vocalista. Zack não nos percebeu ali. Ele continuou distraído entre os equipamentos de som e a plateia barulhenta.

Em cima do palco, Finch testava algumas notas de guitarra, provocando o público. Ele se inclinava para ouvir a reação das meninas e se exibia, habilidoso. Estávamos tão próximas dos alto falantes que eu mal conseguia ouvir a minha própria risada. Enquanto a multidão urrava com o solo de guitarra, Zack se aproximou da beirada do palco. Ele arrastou o pedestal do microfone consigo, sem se preocupar com o emaranhado de cabos reunidos aos seus pés, e repousou as mãos ao redor da base. Para o vocalista, fazer música era coisa séria. Não havia distinção entre a plateia alcoolizada do pub e um estádio lotado cheio de fãs. Aquela era a única chance que ele tinha de provar para deus e o mundo que as horas que dedicou à banda não foram em vão.

— Boa noite — sua voz densa e charmosa atravessou as caixas de som — Esse que vocês acabaram de ouvir na guitarra foi Finch, Finch Abberley.

Lindo! — eu entrei na brincadeira, arrancando risadas e assovios da multidão ao meu redor.

Aqueles meninos não eram tímidos. Eles pertenciam aos palcos e aos holofotes, aonde quer que os aplausos estivessem.

Reconhecendo minha voz, Finch sorriu moleque e deu de ombros graciosamente. Eu estava entre um sorriso e uma risada quando percebi que, a alguns metros dele, Hunter me encarava. Qualquer sinal de humor entalado em minha garganta morreu ali. Suas íris azuis se fixaram em mim como duas adagas, a ponto de me atravessarem com facilidade. Eu sabia que Hunter estaria no bar aquela noite, mas isso não diminuía minha surpresa.

Quando finalmente consegui desviar o olhar, o vocalista ainda conversava com a plateia. Sua risada era um som rouco, capaz de derreter corações. Em cima do palco, sob a luz cegante dos holofotes, Zack tinha a total atenção do público. A essa altura o pub estava cheio e até mesmo as pessoas sentadas no bar haviam virado para assistir a apresentação.

— Valeu, Zack — Finch se aproximou do microfone e puxou o amigo pelos ombros: — Esse é Zack Dempsey, caso vocês não saibam. Ele vai cantar umas músicas para vocês hoje — ele abanou a mão como se fizesse pouco caso para o vocalista e Zack deixou o rosto cair em surpresa, provocando algumas risadas — Na bateria, temos o ilustríssimo sir Cole Wright — Finch gesticulou para o garoto de cabelos loiros atrás da bateria. Meu irmão girou as baquetas entre os dedos e gritou algo nada educado para o amigo, que respondeu: — Ah. Vai tomar no cu, seu loiro oxigenado.

Finch manteve o rosto afastado do microfone, como se não tivesse a intenção de tornar público o que ele tinha para dizer. Os dois teriam continuado a discussão se não fosse por uma voz que irrompeu a alguns metros de mim:

— Acho que deu pra ouvir, hein — um dos garotos gritou da plateia. Ele pertencia a um grupo que sempre respondia a menor das movimentações no palco com uivos e palmas, provavelmente amigos dos meninos.

Finch deu alguns passos na direção do público, fazendo menção de respondê-lo, e o microfone voltou para a mão do Zack:

— Senhoras e senhores, essa noite nós damos boas vindas ao mais novo integrante da The F Word — o garoto fez uma pausa dramática — Com vocês, Hunter Campbell.

Um sorriso lento tomou os lábios de Hunter e se espalhou por seu rosto à medida que os gritos agudos femininos se tornavam mais altos. Ele puxou o cabelo enegrecido para trás e incitou o público. Seus olhos azuis pairando pela multidão afiados, transbordando confiança. Ótimo. Como se Campbell precisasse de mais um motivo para se gabar.

— Não o mal acostumem — Finch tomou o microfone de novo, soando sem fôlego — É o contra baixo. O famoso guitarrista mal sucedido — ele arqueou uma das sobrancelhas em desafio e o público vaiou, esperando uma reação à altura.

— Eu não deixava! — Jackie gritou, projetando as duas mãos na frente da boca como um megafone.

O baixista permaneceu em silêncio, ouvindo as exclamações da plateia com a sombra de um sorriso. Não tinha microfone algum perto dele, o que me fez supor que o garoto não cantava. Hunter moveu os dedos sobre as cordas do baixo e o som grave explodiu pelos alto falantes, reverberando por nossos corpos. Era um ruído intenso, que se tornava mais alto conforme ele tocava. Finch, o guitarrista, ergueu o queixo para meu irmão, indicando que aquela era a deixa deles. Assim que os primeiros acordes de guitarra preencheram o cômodo, o público saudou em reconhecimento. As batidas transformaram o solo do baixo em uma introdução de uma música agitada, que fazia a plateia pular acompanhando o ritmo.

— Obrigado a todos, nós somos o The F Word — Zack anunciou com um sorriso, dando início ao ensaio de verdade. Eles estavam tão compenetrados que provavelmente nem ouviram os aplausos que sucederam a pequena encenação.

Eu mesma ria, impressionada com os meninos. Eles eram jovens cheios de sonhos, tocando em um pub lotado de bêbados que provavelmente reagiriam a qualquer barulho com o mesmo entusiasmo, mas havia talento. Dava para entender porque estavam tão confortáveis ali em cima.

Zack começou a cantar com os olhos na multidão, recebendo gritos de incentivo e assobios de volta. Enquanto alguns sabiam a letra e arriscaram acompanhá-lo, outros aproveitavam a música para dançar. De alguma forma, o vocalista nos achou no meio da plateia e mandou uma piscadela brincalhona para nós três, que reagimos pulando para cima e para baixo como fãs ensandecidas. Fazia calor em meio aos corpos adolescentes, mas por algum milagre — se tais eventos cósmicos atendessem pelo nome de Vodka — o cheiro de suor ainda não me incomodava.

Debaixo dos holofotes, Finch não conseguia parar em um lugar só. Ele passeava para cá e para lá, incitando a plateia como se tivesse nascido para ser astro de rock. Na pista de dança, nós acompanhamos o ritmo do guitarrista como podíamos. Eu havia perdido a conta de quantas músicas se passaram quando a lateral do palco pareceu ficar próxima demais. Tinha muita gente ali. Um movimento mal calculado e meu braço se chocou contra o de outra pessoa. Eu me virei, pronta para pedir desculpas, e dei de cara com Lexie Palmer. Uma jaqueta de couro substituía o uniforme de St Clair e grossas camadas de máscara para cílios destacavam os olhos verdes. Nenhuma de nós parecia particularmente feliz em ver a outra.

Voltei meu corpo para frente, bem a tempo de flagrar Hunter olhando em nossa direção. Rosto corado, respiração descompassada devido ao esforço e as raízes de seu cabelo escuras pelo suor. Aquela imagem que remetia puramente a sexo. Eu afastei os pensamentos da minha mente o mais rápido possível.

— Espero que estejam se divertindo hoje — novamente a voz do meu melhor amigo atravessou os alto-falantes. Dessa vez, ao invés de cantar, Zack interagia com a platéia, como fazia no curto intervalo entre as músicas — Se estamos aqui em cima hoje à noite, é porque o velho Athos acredita no The F Word. Agradeçam a esse bastardo!

Atrás do balcão de madeira, um homem de uns cinquenta e tantos anos sorria bêbado. Athos era o retrato do dono de bar moderno: barriga saliente, alguns dentes faltando na boca e cabelos ensebados no topo da cabeça. Ele tinha um pano de secar louças pendurado sobre o ombro e abastecia um copo na torneira de cerveja. A julgar pelo olhar orgulhoso em seu rosto, o velho Athos adorava os meninos.

Nós o aplaudimos por mais alguns segundos, até que Finch tomou o microfone.

— A próxima música... — em cima do palco os garotos pareciam ansiosos, prontos para armar algo — Para fechar, galera — ele repetiu, chamando a atenção do público — A próxima música é uma homenagem a uma pessoa muito especial para nós, da The F Word. Alguém além do Athos, é claro. É um cover. A versão original não sabemos tocar, então vamos fazer a nossa. Cole, faz um som pra gente.

O loiro sorriu atrás da bateria e as batidas iniciais da música vibraram pelo recinto. A guitarra de Finch passou para as mãos de Zack, indicando que eles trocariam de lugar. Um burburinho curioso tomou conta da plateia. Ao meu redor, ninguém fazia ideia do que estava acontecendo.

Friday night and the lights are low... — Finch puxou a canção timidamente, receoso em assumir os vocais. Eu não reconheci a música, mas aplaudi e gritei mesmo assim — Looking out for a place to go — ele se demorou no último "o" e olhou para os meninos pedindo por socorro. Todos se entreolharam confusos, mas continuaram a tocar — Foda-se, eu esqueci as letras. Pro refrão!

Uma explosão de gargalhadas tomou conta do pub e eu deixei minha cabeça cair para trás enquanto ria. Quando mirei o palco novamente, Hunter me encarava. Ele desviou as orbes azuis para longe, andando em direção ao antigo vocalista, que também se acabava de rir. A essa altura, a banda só se esforçava para seguir o ritmo do Finch.

— You are the dancing queen, young and sweet, only 18.

Finalmente, eu gritei junto com os outros, reconhecendo a canção. Era ABBA! Na versão dos meninos, todo traço de pop em Dancing Queen foi corrompido. As pessoas na plateia riam de maneira exagerada, afetadas pela bebida.

No outro lado do pub, um burburinho se espalhou como um enxame de abelhas. Aparentemente a música era para Seth, que bebia junto ao bar. Ele recebia palmas e tapinhas nas costas, quase se afogando em álcool.

Finch chegou a cantar o refrão mais uma vez antes de encerrarem a música. Pelo sorriso em seu rosto, ele quase não dava conta de segurar a vontade de rir.

— Bom, agora vocês descobriram por que o Finch não pode ser o vocalista... — Zack sorriu para o público e recebeu o dedo médio do vocalista temporário — Seth! O debutante da noite — a voz dele já estava rouca quando apontou o amigo — Esse filho da puta fez aniversário durante as férias e deu a melhor festa que qualquer um de nós poderia desejar — as felicitações ao meu redor não paravam e eu cogitei tapar os ouvidos. O ruivo estava sentando em um bancos altos, agora com uma coroa de plástico na cabeça — Hoje à noite nós vamos beber em homenagem a esse cara — Zack retirou o suporte da guitarra do pescoço e se aproximou do microfone uma última vez — Obrigado, boa noite!





Depois de dois copos cheios, April se deu conta de que havia perdido as amigas para a conversa afiada de rapazes mal intencionados. Um dos responsáveis por tirar suas amigas de vista fora Zack Dempsey. Aparentemente, ele e Zoe tinham um compromisso inadiável na pista de dança, envolvendo conversas ao pé do ouvido e sorrisinhos insinuantes. Se os dois continuassem juntos até o fim da noite, sem dúvidas a menina estaria em boas mãos. Quanto a Jackie, o caso era diferente. April não soube dizer o momento em que começou a procurar por ela e nem quando localizou a morena do outro lado do bar, chamando por seu nome. As duas seguiram para a porta de saída depois de um diálogo abafado pela música, cheio de mímicas.

Assim que a menina plantou o primeiro pé na calçada, um vento gelado se arrastou para debaixo de sua pele e enviou arrepios para seu corpo inteiro. O quarteirão estaria deserto se não fosse por um grupo de amigos reunido sob a luz amarelada de um poste. April encontrou vários rostos familiares entre eles: Zack, por exemplo, estava apoiado no capô de um carro e envolvia Zoe pela cintura. Zoe se abraçava com frio e ouvia uma história que Finch e Lexie contavam animados, mas Zack insistia em tentar encaixar a cabeça entre o ombro e o pescoço dela — que o afastava, dizendo sentir cócegas.

April estava prestes a se arrastar para os amigos de má vontade quando uma silhueta masculina tomou forma debaixo de um poste próximo a esquina. Era Hunter. O garoto havia tomado distância do grupo para fumar um cigarro. Dessa vez, ele não desviou o olhar quando foi pego.

— April — Jackie chamou atenção da menina — Você vai esperar o Cole ou vai comigo?

— Vou esperá-lo.

— Tudo bem — ela se espichou para um abraço — Te vejo por aí.

— Te vejo amanhã — April frisou — Na aula.

A menina se afastou rindo, sem conseguir manter a seriedade para passar um sermão. Era difícil brigar quando se sentia tão leve por dentro.

— Isso eu não posso prometer.

Antes que April percebesse, estava sozinha novamente. Em pé no meio da rua, não lhe restava outra opção senão se juntar aos seus amigos. Por sorte, alguns deles estavam de saída e vieram se despedir dela. April descobriu em uma breve conversa que não tinha mais que se preocupar com o irmão: o loiro havia partido em segurança com uma conhecida na hora anterior. Se Cole foi embora, então significava que a menina teria que pedir carona a Zoe. Na melhor das hipóteses, ela estragaria a noite do casal recém formado.

Mudando o rumo de seu passeio, April deu meia volta e passou a acompanhar as motos estacionadas em frente ao bar. Seus coturnos negros arrastavam as pedrinhas soltas na calçada e o barulho áspero que as solas faziam contra o chão era sua trilha sonora. Não demorou muito para que uma sombra se juntasse a dela.

— Campbell.

— Esperando por mais alguém?

Eles estavam separados por uma fileira de motos, andando lado a lado. April sorriu e continuou a seguir em frente. Seus olhos vagaram pelos cantos escuros da rua e caíram sobre algo brilhante que despertou seu interesse. Havia uma Harley Davidson estacionada a poucos metros dali. Ela conhecia pouco sobre as máquinas, mas aquela era deslumbrante.

— Nunca tomei você como uma apreciadora dos clássicos. Está mesmo interessada nela?

— Você tem uma imagem muito errada de mim, Campbell — a garota se aproximou da moto — Acha que eu fico armando planos malignos contra você vinte e quatro horas por dia?

— Vinte e quatro horas por dia não, mas eu com certeza sou relevante — ele exibiu uma fileira de dentes perfeitamente brancos — Devo estar pelo menos na pauta da semana ou algo assim.

Deixando uma risada curta escapar pelos lábios, April se permitiu encarar o rosto do baixista uma última vez antes de partir. Um carro cruzou a esquina em alta velocidade e as íris azuis refletiram a luz dos faróis momentaneamente como dois diamantes.

— Prove-me.

— Perdão? — a garota franziu o cenho.

O sorriso deliciosamente malicioso de Hunter estava de volta. Ele parecia pronto para propor um desafio, procurando algo na garupa da moto que April presumiu ser dele.

— Se você não é tão careta assim — o baixista estendeu um capacete extra, que ela aceitou mesmo confusa — Venha comigo.

O olhar dele carregava tanta intensidade que April se perguntou duas vezes o que Campbell realmente estava pedindo. Quando terminou de processar a situação por inteiro, ela riu, seus dedos tateando a superfície gelada do capacete.

— Não tenho que provar nada para você.

— Você também não tem carona.

April piscou, se dando conta de que era verdade. Ela era a única sem carona. Tinha algum dinheiro guardado em seu bolso para emergências, mas demoraria horas para conseguir um táxi.

— Olha, eu prefiro não arriscar...

O garoto bufou sem humor.

— Você não tem nada a perder, April.

— Eu nunca andei de moto antes — ela admitiu. Seus argumentos acabavam ali. Não queria dizer que o pai a mataria se fosse pega em uma moto.

O silêncio perdurou entre os dois enquanto Hunter escolhia o que dizer. Por fim, o baixista abriu um sorriso lento, as íris azuis ardendo em sua pele:

— Você está a salvo comigo.

O baixista esperou por uma negativa cruel, mas durante vários segundos tudo que ouviu foi o som da rodovia movimentada a quadras dali. Na ausência de uma resposta, ele contornou a moto e tomou o capacete das mãos dela. Hunter o ajustou devidamente à cabeça da menina — que contorceu o rosto em uma caretinha rebelde — e abriu um sorriso capaz de enfraquecer joelhos.

Naquele instante, inspirando o perfume amadeirado que emanava da pele masculina, April absolveu cada uma das garotas que havia julgado por cair nos charmes de Campbell. O cretino realmente sabia usar o charme a seu favor.

Hunter terminou de ajustar a correia de couro ao queixo da menina e arrastou um polegar pelo rosto feminino, contornando uma das bochechas avermelhadas de frio. As íris azuis examinaram cada traço, desde as sardas quase imperceptíveis até os lábios carnudos. Elas estacionaram em sua boca por vários segundos e, quando miraram seus olhos novamente, um brilho lascivo havia tomado conta das pupilas escuras. April não conseguiu achar forças para desviar o olhar.

— Prometo pegar leve.

Sem dizer mais nenhuma palavra, o baixista a tomou pela mão e a guiou até a moto. Hunter se acomodou primeiro e a menina subiu na garupa logo em seguida, envolvendo o banco de couro com as pernas. A culpa era toda do álcool. Em qualquer outra situação, April tomaria o controle com facilidade ao invés de se sentar na Harley. Porém, ali estava ela: pegando uma carona com Hunter Campbell.

A moto parecia pronta para partir e April se tornou consciente de que deveria segurar em algo. Firmar-se na traseira parecia ser muito profissional para a garota. Ao primeiro tranco ela conseguia visualizar a própria bunda indo direto de encontro ao chão. Ela olhou para Hunter, que checava algo no painel, as costas se mexendo por baixo do tecido negro do casaco. Sem dar tempo a si mesma para desistir, a menina deslizou as mãos pela jaqueta de couro do baixista, posicionando-as o mais leve possível no abdômen. Passada a vergonha inicial, ela quase resmungou por não conseguir sentir nada através das camadas de roupa. Tecnicamente, April não estava se aproveitando dele.

Campbell enrijeceu sob toque e parou durante alguns segundos, tomado pela surpresa. O baixista fez algum esforço para continuar agindo normalmente, sentindo o par quente segurá-lo contra si.

— Melhor assim — ele segurou as mãos de April e as guiou para debaixo da jaqueta — Para não restringir meus movimentos.

Ela ouviu o tilintar de chaves e gelo se espalhou por seu estômago. Era tarde demais para amarelar.

— Pense que é como andar de bicicleta — Hunter girou a chave na ignição e o ronco das engrenagens se tornou audível — Só que com motor.

April gargalhou da comparação fajuta. Se a intenção era fazê-la relaxar, Campbell teria que se esforçar um pouco mais.

— Eu não sei andar de bicicleta — a menina confessou, se inclinando para alcançar o ouvido dele — Como confiar em uma coisa que não consegue se sustentar sozinha?

O barulho do motor serviu de resposta. Hunter retirou o engate do chão, dando a partida no veículo e ela segurou mais forte no torso masculino. Quando a moto ultrapassou a esquina eles tomaram velocidade e a paisagem noturna se transformou em um borrão de cor e luz. O concreto desaparecia a centímetros abaixo de seus pés e o ruído metálico dos cilindros preenchia seus ouvidos. April percebeu que guiar a Harley era como dirigir um carro antigo: cada curva era uma coleção de ângulos abertos e difíceis. Felizmente, Campbell parecia saber o que estava fazendo, voando pelas ruas desertas.

Enquanto tudo ao redor deles parecia estar indo rápido, ela se sentia desacelerando. As unhas que antes estavam fincadas na camisa de Hunter, folgaram vagarosamente até não existir aperto algum. Ela estendeu os braços o máximo que pode e inspirou fundo, preenchendo os pulmões. Havia uma sensação estranhamente agradável na ponta de seus dedos, como se estivesse cortando o ar, o vento escapando pelas frestas entre eles.

Ao alcançarem as ruas do centro, a velocidade em que eles se moviam se quebrou pela metade. Hunter aproveitou um dos sinais vermelhos para checar a menina e recebeu um tapa violento nas costas.

— Você me disse que ia devagar!

Ele gargalhou com gosto e April sentiu sua desconfiança ceder aos poucos. Não podia negar que estava adorando o passeio. O baixista aproveitou a distração para repousar uma mão no joelho dela, mas a carícia terminou assim que o sinal abriu.

— Estamos dentro do limite, princesa.

E ali estava o apelido irritante de novo.

— Segure-se.





Hunter estava a alguns quarteirões da casa dos Wright quando sentiu uma leve pressão nas costelas. A princípio ele ignorou, concluindo que a menina provavelmente estava usando seu corpo para apoio. Porém, no momento seguinte, April pressionou as coxas ao redor dele. Prestando atenção redobrada na pista, ele a encarou de perfil, curioso de um modo quase suspeito.

— Pare aqui — ela murmurou.

O garoto guiou a moto até o acostamento sem questionar o pedido de April. Ela passou a perna por detrás da garupa e desceu, fazendo menção de tirar o capacete.

— Eu vou andando a partir daqui — a menina insistiu quando não obteve nenhuma reação — Meu pai não pode ouvir o barulho da moto dobrando a esquina.

Bastou um único comentário para que a Harley arrancasse subitamente. April chegou a pensar que ele estivesse partindo, mas a moto estacionou alguns metros depois, debaixo de uma árvore. O baixista girou a chave na ignição e fincou os pés na grama, checando os arredores com cautela.

— Não precisa, Campbell — ela murmurou enquanto o outro se aproximava, seus dedos lutando contra a correia do capacete — Acho que está preso.

— É claro que precisa — Hunter a segurou pelo queixo e afrouxou o aperto com facilidade — Pronto.

A respiração dele batia em seu rosto. O baixista continuou a centímetros dela, sem mover um músculo, os olhos cravados nos seus. April não se deixou abalar dessa vez. Lançando um último olhar indecifrável, ela se afastou, arrumando os cabelos sobre os ombros. Hunter pagaria qualquer coisa para saber o que se passava na cabeça dela naqueles instantes. Ele voltou à garupa para guardar o capacete e fez uma pequena corrida para alcançar a menina.

Os dois não se preocuparam em andar pela calçada. Caminharam em silêncio madrugada adentro, ouvindo nada além do som das solas gastas de seus sapatos contra o asfalto. A casa dos Wright se erguia imponente no fim do quarteirão, tornando-se maior a cada segundo.

— O que é isso? — April perguntou quando sentiu a jaqueta preta e quentinha envolver seus ombros. Hunter a acompanhava quieto demais desde que se distanciaram da moto. O único sinal indicava a presença dele era a sensação de um par de olhos perfurando sua nuca.

— Você está congelando.

Campbell levantou uma das sobrancelhas espessas, seu queixo ligeiramente inclinado na direção dela na espera de uma resposta. April o encarou por um breve segundo, lutando contra o repuxar de lábios que ameaçava aparecer no canto de sua boca. Ela passou os braços pela jaqueta, sentindo o calor conservado no interior do casaco se espalhar por seu corpo.

— Melhor? — a voz dele era macia como veludo.

— Isso aqui cheira como cigarros, hortelã e... — a menina inspirou fundo, escondendo o sorriso de pura satisfação atrás da gola. Fazia tudo isso sob o olhar atento de Hunter, que absorvia até o menor de seus movimentos — Doritos sabor chilli? — uma careta acompanhou a constatação e ela afundou o nariz no casaco novamente, levando a brincadeira adiante — Deus. Campbell, você por acaso toma banho?

April girou sobre os próprios pés, esperando uma resposta. Ela parecia terrivelmente satisfeita consigo mesma abraçada à jaqueta masculina.

— Então, eu tenho cheiro de doritos? — o sorriso sombrio que seguiu a pergunta foi suficiente para deixá-la em estado de alerta. Hunter tinha os olhos estreitos brilhando em maldade pura. Avançou duas passadas largas na direção da menina e ela quase tropeçou nos próprios pés.

— Hunter, não — April advertiu em tom de ameaça, mas ele sequer hesitou.

— Melhor correr!

Vendo que o baixista falava sério, uma risada nervosa escapou de sua garganta. Ela gargalhava com a mera possibilidade de ser pega. Aquela tinha que ser fraqueza mortal mais patética de todas: cócegas estavam para April assim como o calcanhar estava para Aquiles. Pensando nisso, a menina colocou o máximo de distância entre seu corpo e as mãos dele. Ela avisou sem fôlego que ele não devia se aproximar, mas de nada adiantava: Hunter continuava seguindo a menina de perto, sem dificuldades para acompanhar seu ritmo. Os dois corriam pelo asfalto, presos em uma coreografia sem ensaios. Era como mais um jogo de gato e rato, ambos familiares demais com seus respectivos papéis.

A menina o ultrapassou com um sorriso radiante no rosto, o cabelo castanho solto ao vento e olhos brilhando travessos, livres de frieza e indiferença. Nenhuma máscara. Era uma visão e tanto.

— Hunter! — ela se esquivou mais uma vez, ao tentar fugir, e a façanha exigiu demais de sua coordenação motora. Seus pés perderam o equilíbrio e seus joelhos quase encontraram o chão.

Felizmente, o baixista agiu mais rápido. Ele quebrou a distância entre os dois e mãos fortes se afundaram na cintura dela, puxando a menina para si. Por pouco seus narizes não se tocavam.

— Eu disse que você podia confiar em mim.

Uma pergunta silenciosa pairava no ar, mas April não tinha a capacidade de ouvir a voz da razão naquele momento. Seu juízo foi embora no segundo em que sentiu seu quadril firme contra o de Hunter. Aqueles olhos cor de safira a devoravam. A respiração dele era pesada, cheia de desejo. Tinha uma cadência deliciosa, que enchia sua cabeça de ideias. O hálito morno abandonava os lábios dele e batia na pele nua de seu colo, arrepiando o corpo inteiro. Hunter tinha se espalhado por cada uma de suas terminações nervosas. Era uma sensação inebriante.

April subiu as mãos pelas laterais do pescoço dele, arrastando as unhas por todo caminho até a nuca e se pôs na ponta dos pés. Hunter respondeu a carícia intensificando o aperto em sua cintura, testando a pele dela sobre seus dedos. Aquilo só podia ser tortura. Ele não resistiria nem por mais um segundo. Seus lábios encontraram com os de April em um suspiro e suas mãos desceram até alcançar a bunda dela. Foi um beijo quente e lento. Consumiu os dois até deixá-los completamente sem ar.

Quando ele fez menção de se afastar, April o trouxe para perto novamente, afundando seus dedos nos cabelos curtos. Ela puxou o lábio inferior de Hunter entre os dentes enquanto recuperava o fôlego e um sorriso provocante se espalhou pelas feições do garoto. O bastardo estava se divertindo com isso. April roçou o quadril contra o do baixista e todo traço de humor no rosto dele foi substituído por luxúria. Os dentes dele percorreram seu pescoço, raspando a pele sensível. Ele subiu beijos famintos até o pé de seu ouvido e April arfou, sentindo as pernas fraquejarem. Por sorte, as mãos de Hunter estavam firmes em sua cintura, sustentando seu corpo contra o dele.

Puxando os cabelos escuros da nuca do baixista, ela o tomou pelos lábios. Queria tudo para si. Percorrer cada medida de seu corpo com as mãos, língua e boca. Era um beijo de enlouquecer. Hunter interpretou a urgência como um convite. Eles deslizou as mãos pelo corpo dela, agarrando o quadril possessivamente e ajustando sobre o seu. Um gemido sôfrego escapou pelos lábios da menina e ele o abafou com um beijo.

Assim que pressionar o corpo dela contra uma superfície vertical começou a parecer uma ideia plausível, Hunter se interrompeu. Ele estava atacando a menina no meio da rua como um adolescente cheio de hormônios. Todo seu autocontrole fora para o espaço sob os dedos habilidosas de April Wright. Estava completamente intoxicado pela presença dela.

O baixista relutantemente largou a bunda da menina e April se firmou no chão. Ele segurou os cabelos castanhos com delicadeza e quebrou o beijo, lutando por ar.

— Você precisa parar de se afastar de mim — a voz dele era áspera. Sua testa contra a dela, narizes se tocando. Campbell se inclinou na intenção de roubar mais um beijo e depois outro, até que April se rendeu. Os dedos dele voltaram a afagar pele nua da cintura dela, brincando por debaixo da blusa em uma carícia demorada.

— Hunter — ela pressionou a mão contra o peito dele, o afastando gentilmente — Nós não podemos...

As três palavras foram suficientes para fazer os músculos do baixista se enrijecerem sob suas mãos. April sentiu falta do calor no segundo em que os braços dele a soltaram. Quando mirou as íris azuis novamente a névoa do beijo parecia ter se dissipado por completo. A expressão dura no rosto do baixista demandava uma explicação, mas April não conseguia juntar palavras. Seu coração ainda batia rápido, pulsando adrenalina em suas veias e confundindo seus pensamentos. Foi então que Hunter abriu um sorriso canalha, daqueles que faziam mão dela pinicar:

— Vai dizer que não gostou?

April o afastou com um empurrão, surpresa demais com a mudança de comportamento repentina. A falta de resposta pareceu despertar o pior nele.

— Qual é a dificuldade em admitir que você me quer? — Hunter parecia pronto para discutir, como se esperasse por esse momento há muito tempo — O quê? Por acaso eu não sou bom o suficiente para você?

— É você quem está dizendo isso, não eu — a menina rebateu no mesmo segundo. Mais um pouco e um sorriso arrogante se formaria em seus lábios. Não era culpa dela se ele tinha um ego ridiculamente sensível.

As palavras tiveram o efeito desejado: elas atingiram Campbell certeiras como um tapa. Hunter piscou duas vezes antes de voltar a si, seu maxilar tenso sob a pele.

A luz da varanda da frente acendeu em um clarão, iluminando a rua inteira. April agarrou o baixista pela camisa e o arrastou para dentro do jardim escuro. Eles procuraram por abrigo atrás de uma árvore e a menina espiou a casa sem dar sinais de se importar com a figura enfezada parada atrás de si.

— Você não disse isso — a voz dele era um rosnado.

— Adeus, Campbell — ela enterrou a jaqueta contra o peito do baixista e deu as costas, saindo do esconderijo.

— Que diabos? — Hunter deixou o casaco cair na grama, observando a garota se afastar com passos decididos. Estava prestes a sair das sombras quando algo no horizonte o fez hesitar.

A porta da casa dos Wright se abriu, revelando uma silhueta masculina. Era o pai de April. A claridade forte atingia seus olhos, impossibilitando Hunter de enxergar qualquer outro detalhe e ele agradeceu mentalmente por estar escondido. Não estava interessado em descobrir o que aconteceria se fosse pego aos amassos com a caçula dos Wright.

A jaqueta preta ainda jazia a seus pés, caída na grama úmida. Depois de limpar o tecido de couro com o máximo de dignidade possível, ele vestiu o casaco e o ajustou ao próprio corpo. Mal podia esperar pelo dia seguinte.




N/A: *Música romântica e brega começa a tocar* Finalmente, aconteceu o que esperamos tanto: a primeira pegação do casal mais teimoso do Wattpad. E aí, gostaram? Querem mais?

Curiosidade: Wribell é o nome do shipp (Wright + Campbell). Usem e abusem!

Storytime: Quando eu postei esse capítulo pela primeira vez, em fevereiro de 2016, eu sem querer postei o rascunho quando fui salvar. O tal rascunho não estava terminado e eu NEM VI que tinha postado acidentalmente. Corri pra tirar (umas três horas depois, laudo médico: doida) e escrevi o que faltava kkkkk Era literalmente um documento de frases soltas. Top.

Para ser leitor e leitora de BULLSHIT precisa ser guerreiro mesmo. Obrigada pela paciência e pelo carinho. Vocês (e meus personagens) são meus xodós.

Não se esqueçam de deixar a estrelinha e comentar, isso me motiva muito. Caso algum bug aconteça, por favor, retire o livro da biblioteca e o adicione novamente.

NO PRÓXIMO CAPÍTULO DE BULLSHIT...

Nosso grupo de baderneiros favorito está de volta às aulas. Como será que April e Hunter vão lidar com o que aconteceu entre eles????

Seus problemas não param por aí: o professor de biologia mais temido de todos fará uma aparição especial no décimo capítulo da história. Será que a reprovação vem???? Ou April e Hunter vão se safar?

Descubra tudo isso e muito mais semana que vem em BULLSHIT, uma história original do Wattpad.

Beijos calientes,

Babi

leiam bad karma.. abaixo o boliliro.... estudem e bebam agua..

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