Visita de um fantasma
Quando acordo o sol já está alto, fiquei acordada até tão tarde que acabei dormindo até a hora de almoço.
O cheiro vem acompanhado com o pensamento. A origem do cheiro a fritos está na cozinha, com um avental à volta da cintura, vestido confortavelmente. Parece que acordou há pouco.
Levanto-me lentamente, para que ele não repare que acordei e caminho silenciosamente até a cozinha. Espreito para a fritadeira enquanto ele vira uma tortilha com todo o jeitinho possível, o Bo disse que ele cozinhava bem, parece que devia ter acreditado nele.
— Qual é a ementa para hoje, chefe? — O pequeno saltinho que ele dá quando ouve a minha voz faz-me rir mais do que queria. Estou de bom humor, e se calhar não devia.
Ele estava muito perturbado ontem, berrou, mostrou-se nervoso e vulnerável. Estava tão mal, e eu pareço uma garotinha feliz só porque levei um beijo no momento em que ele estava sensível.
O que será que ele pensa do que fez? O que pensa de mim?
Posso ter sido apenas um escape para a dor que ele estava sentindo, ou talvez aquilo tenha sido um agradecimento porque não ter gritado de volta e o ter apoiado. Não quer dizer que envolva sentimentos.
Vejo um sorriso se formar nos seus lábios e me lembro novamente da noite passada, como ele teve coragem de me beijar, assim do nada? Quero falar disso, mas não sei o que dizer.
A ansiedade começa a crescer, tenho que me acalmar.
— Você está bem? — Ele pergunta quando nota que o estou fitando. Ainda bem que não consegue ler pensamentos porque acho que ficaria extremamente confuso. Abano com a cabeça e sinto as minhas bochechas queimarem. — Estava pensando convidar a sua amiga para vir comer connosco, ainda deve estar meia abalada depois do que aconteceu.
Quero estar com a Heli, quero falar com ela, explicar tudo. Mas como devo explicar tudo quando nem eu acredito, ainda nem consegui interiorizar que sou como o Arius. Na minha cabeça sou normal, um humano comum, que teve um pesadelo em que consumiu carne de alguém que morreu à sua frente.
Acho que isso me marcou tanto que o meu cérebro decidiu ignorar o trauma e seguiu em frente.
E o pior é que vou ter que falar com ela sobre isto, vou ter que explicar algo que ainda nem percebi. Mas eu devo-lhe isso, ela merece que não a ignore, e sinceramente... tenho feito isso.
Quero evitá-la ao máximo para não falar do evento daqueles monstros, não monstros pelo que são, mas pelo que praticam por diversão.
Coitada, ela devia ter estado tão assustada quanto eu, deve ter sentido muito medo, e eu não pude salvar como queria. O trauma deve ser tão grande para ela como para mim, e eu estou a obrigando a lidar com isso sozinha. Eles a sequestraram, e a mandaram correr pela vida, como eu.
Que rica amiga que eu sou.
Até o Arius me tem que dizer que tenho que estar com ela.
— Vou chamá-la. — Não quero desenvolver a conversa quando se trata do quão horrível estou a ser com a Heli.
Quando me viro para a porta, sou agarrada pelo pulso e chicoteada para trás. Bato contra o peito do Arius com a força do seu movimento. Ele o fez de propósito, porque num instante me agarra na cintura e me puxa para perto. A sua mão sobe apenas para atirar os meus braços à volta do seu pescoço.
E de repente estou tão perto dele.
O seu rosto está próximo, e eu não paro de me perguntar como alguém tão perfeito me quer tão perto. Sou petrificada pelos seus olhos azuis claros e permaneço quieta, surpresa, sem saber o que fazer. Quero tocar na sua cara, sentir as suas bochechas rosadas, os seus lábios, a linha do seu maxilar. Quero perceber como é que alguém pode ser assim tão bonito.
Quando ele aproxima os nossos rostos para me beijar, tenho que reservar uns segundos para processar que realmente está acontecendo.
Está acontecendo, de novo.
Não é tão demorado como o da noite passada, mas sinto o mesmo desejo, a mesma necessidade, como se me quisesse dizer que se não me beijasse naquele momento cairia.
Aqueles dedos apertando a minha cintura puxando me para si, os seus lábios contra os meus, me beijando com vontade, fazem me sentir que estou perto de um desmaio, como se estivesse num palco em frente de milhares de pessoas. O meu coração vai rebentar, tenho quase a certeza disso.
— Só queria ter a certeza que não me tinha beijado só porque estava sem camisa. — A sua piada, em vez de me fazer rir, põe-me triste. Porque sinto muita insegurança nas suas palavras, foi como se me tivesse perguntado "você não me beijou porque estava com pena, pois não?"
É essa a tradução, não é?
Poderia estar tudo bem, e ele não ter tido aquele episódio e eu teria aceitado o seu beijo na mesma. O que está em causa não é a sua vulnerabilidade nem as suas cicatrizes, e sim quem ele é.
A pessoa que sempre esteve lá, que sempre me protegeu, que sempre põe os desejos e necessidades dos outros à frente.
— Embora tenha sido um incentivo, não foi a razão principal. — Dou um pequeno selinho antes de me afastar e sair pela porta. Tenho medo que me pergunte a razão, e eu não vou dizer que correspondi ao seu beijo porque que gosto dele. Não estou preparada para que essas palavras me saiam da boca.
Saio para subir para a casa da Heli, no andar de cima. E quando vou a meio da escadaria é que o ouço.
— Garota! — Ele chama o mais baixo que consegue, provavelmente para que o Arius não note na sua presença. Ao seu chamamento segue-lhe um "psst" para chamar a minha atenção.
Do outro lado do portão está o homem de ontem, o ruivo que o Arius ameaçou e eu suspeito ser seu parente. Mas porque é que ele voltou depois do Arius claramente avisar que se devia manter longe? O que ele quer?
Ele faz um gesto com a mão que me diz para me aproximar e eu obedeço, coisa que se calhar não devia, mas a curiosidade é mais forte.
Abro a porta e dou de caras com o homem, com um sorriso enorme, barba crescida e calças rotas e gastas.
— Mas que boa menina, obrigada por abrir a porta. — Acho que tenta me tocar no ombro, mas o meu corpo recua antes que o consiga fazer.
— O Arius disse que não o queria ver, porque voltou?
— Ele só não se lembra do que acordamos, por isso preciso de falar com ele. Não pode convencê-lo, querida? — O uso do adjetivo enoja-me, nota-se que o homem está atuando, que não é uma boa pessoa. Pela maneira como o Arius reagiu ontem é obvio.
— Acho que ele está decidido, sugiro que vá embora, ele pode ficar chateado. — Quando meto a mão ao portão para o fechar ele me para.
— Você sabe o que ele é certo?
— Do que está falando? — Estará a tocar no facto de que o Arius é um Bruisan? Ele também é um? — Do monstro que ele é, você sabe? — Acho que ele tira as conclusões que quer com o meu silêncio. O homem agarra-me o pulso e me puxa para a frente. — Fuja garota, ele não é flor que se cheire, você não sabe o que ele já fez.
— Se ele é um monstro assim tão grande porque está aqui para falar com ele? Não devia ter medo? — Afasto-o, mesmo quando os seus olhos azuis, tão parecidos com os do Arius, me mostram uma preocupação genuína. Ele sabe muito bem o que ele é.
— Nós temos... acordos. E ele não está cumprindo a sua parte. — O homem aproxima-se novamente, levando a mão ao portão.— É bom que o convença a me contactar, ou isto vai dar para o torto.
Ele fecha o portão por mim, e eu só posso ouvi-lo se afastando aos poucos. O que é ele pode fazer contra o Arius? E o que ele não está cumprindo?
Devo falar com ele sobre isso? Não o quero deixar perturbado novamente, não o quero mal, mas tenho que falar sobre isto com ele.
Faço o caminho anterior para a casa da Heli, entrando para a sala vazia, ela ainda está dormindo?
— O Arius vai cozinhar, quer almoçar connosco? — A loira já está acordada, então não a assusto tanto quanto queria quando entro de rompante no seu quarto. Ainda se encontra debaixo da coberta com a cara colada no celular.
— Você realmente tem o namorado perfeito. —Ela fala sonhadora.
— Não é meu namorado.
— Vocês moram juntos. — Riposta.
— Porque ele não tem para onde ir.
— Estou a ver que vai ser teimosa quanto a esse assunto. — A Heli se senta na cama e pega nas roupas que tem na cadeira ao seu lado. — Você está bem? — Pergunta usando um tom sério, raro na Heli.
— Não devia ser eu a perguntar isso? Você passou por tudo isso e eu não te consegui salvar.
— O Arius disse que você fugiu para a casa do Kaydon para me ir buscar.
— Mas não consegui.
— Mas foi burra o suficiente para tentar, e por isso sofreu. — Ela baixa a cabeça e brinca com os dedos, parece se sentir culpada. — Por falar nisso, não volte a fazê-lo.
— Não sofri como você. — Não consigo imaginar o medo que ela sentiu.
— Por amor de deus, Lace, eu te vi repleta de hematomas e desacordada, eu tive medo de te...— Ela interrompe-me para explodir para cima de mim, o seu tom sofrido causa-me dor, as lágrimas que ameaçam rolar-lhe pelas bochechas abrem-me um buraco no coração.
"Perder"
Ela teve medo de me perder.
Pensou que podia morrer, depois de o Kaydon ter pegado nela e a ter obrigado a correr para sobreviver, ainda teve que se preocupar com a minha saúde.
— Desculpa. — Não sei o que mais dizer se não isso. Porque se disser mais sei que vou desabar.
— Não importa quantas vezes o Arius me explicou que era normal, ou que você não era humana, eu só queria que acordasse.
— Não ficou assustada? — Como ela consegue pensar apenas na minha saúde depois do que passou, viu e descobriu?
— Claro que fiquei, eu nunca pensei que você fosse... como aqueles monstros. Você não é assim.
Algo aqui dentro parte ao ouvir as suas palavras, ela foi sequestrada, e descobriu que essas pessoas não eram humanas, que conseguiam fazer coisas terríveis. Ela viu morte? Será que viu algum deles se alimentar? Foi perseguida?
Não importa o que sabe ou não ao certo. Depois do que ela disse eu não quero contar-lhe mais nada.
Ela pensa que não fiz nada, apenas me viu ferida, mas não estava lá quando eu... me alimentei do garoto de cabelo verde.
Eu não sabia que era capaz disso, até acontecer. Até sentir o seu sangue nos meus lábios.
Ele correu até mim, morreu e eu aproveitei-me do seu corpo, mordi-o como se fosse comida e para mim foi a melhor coisa do mundo.
Lembro-me tão bem da sua cara, do seu cabelo e pulseira verde, mas o mais especial foi o seu sabor. E é por isso que não lhe posso dizer.
Porque não quero que ela me ache um monstro, mesmo que eu seja um. Ela é a pessoa que me apoia, que gosta realmente de mim e da minha personalidade, como é que lhe vou dizer que comi carne humana, que tive um corpo morto e me alimentei dele e a única coisa que senti foi satisfação?
Só eu sei os sentimentos positivos que tive, e ela é a última pessoa com quem quero partilhar.
Não quero que a sua imagem de mim mude, nunca.
— Eu nunca te faria mal, Heli.
— Eu sei que não.— E eu sinto que está a ser honesta, que realmente me vê como uma boa pessoa, como alguém inofensivo. Mas eu não sei do que sou capaz, tudo o que pensava que era está distorcido.
Uma situação que devia ter sido assustadora é estranhamente simples porque as memórias que deviam ser mórbidas, sangrentas e horríveis são as melhores da minha vida. E é terrível admitir que quero repetir, que quero sentir aquilo de novo, aquela adrenalina, aquele sabor maravilhoso, aquele sentimento de encontro com o meu próprio ser.
Tento me afastar dos pensamentos gritantes que me lembram daquela noite me abraçando à Heli. Para pedir que ela me traga de volta à realidade e na tentativa que ela não pergunte o que aconteceu lá. Não quero que troquemos mais palavras no caso de ouvir algo que não quero, então deixo que ela se levante e acabe de se arranjar.
Noto que vai fazendo alguns sorrisos pequenos, como se estivesse satisfeita por termos falado. Parece ser algo que está esperando há algum tempo, deve ter ficado tão preocupada todo este tempo, mas não queria pressionar-me a falar. Acho que falamos o suficiente para ela não fazer mais perguntas.
Quando descemos as escadas e entramos na minha casa o ambiente mudou por completo, o sorriso falso que o Arius me dá quando abro a porta é arrepiante, algo se passa. No sofá o Bo está deitado, no início penso que está dormindo, mas enquanto está de olhos fechados vai se contorcendo. Como se estivesse a ter um pesadelo, mas depois abre os olhos. Parece estar sofrendo.
— Está tudo bem, Bo? — A Heli pergunta, chegando perto dele, dando-lhe um beijo na testa. Por uns segundos me pergunto quando ficaram tão próximos para ela querer beijá-lo com tanto carinho, e depois me lembro que ele a ajudou a sair daquela floresta terrível. Tudo enquanto eu comia pela primeira vez e perdia todas as preocupações que tinha com ela. Ela deve estar muito grata ao Arius e ao pequeno Bo.
— Dói-me a cabeça. — Ele explica com uma carinha triste. A Heli faz-lhe algumas carícias no cabelo e os olhos do Bo brilham.
Enquanto isso, do outro lado, na cozinha, o Arius põe a mesa suspirando pesadamente. Estava tão animado há uns minutos atrás, agora parece tenso. O que pode ter acontecido? Será que ele viu que falei com aquele homem? Será que ouviu a nossa conversa? Está chateado comigo, mas não quer mostrar isso à Heli por isso esboça aquele sorriso cada vez que nos apanhamos a olhar um para outro?
Tento não pensar muito isso durante o almoço, algumas cócegas e palavras queridas convenceram o Bo a sair do sofá para vir comer connosco, mas cada vez que aquela cara mostra dor o meu coração parte. O Arius está mais calado que o habitual, o Bo esforça-se para responder às perguntas animadas da Heli mas nota-se que também não quer falar.
O almoço acaba por ser apenas uma conversa amigável entre nós duas e, quando esta vai embora, o silêncio instala-se.
Durante este intervalo de tempo já perguntei o que se passa ao Arius umas três vezes, e não vou perguntar uma quarta porque tenho medo de me tornar chata. Se ele não quer dizer, então esperarei pela resposta mais tarde.
Ajudo o Bo a sentar-se no sofá novamente, tenho de fazer força para que ele se mantenha de pé até chegar a sala, mas até o seu equilíbrio está descontrolado. Felizmente a distância não é muito grande, ele é demasiado alto e pesado para eu o carregar sozinha.
Deixo que deite a sua cabeça no meu colo e espero que feche os olhos e adormeça.
— Mano! — Nem cinco minutos se passam e o miúdo que não se conseguia mexer se levanta num pulo com uma energia nunca antes vista. O rapaz de cabelo azul que já estava a limpar a cozinha há mais tempo que devia se vira para trás assustado. Aquele balcão já estava a brilhar há uns minutos mas parece que tem sempre uma nova nódoa que o meu olho não consegue ver, mas o dele consegue. A este ponto acho que ele só está procurando trabalho onde não há para não parar de se mexer. — Já não o sinto.
O Arius pousa as mãos no balcão e baixa a cabeça bufando alto, como se um peso tivesse voado para longe de si.
— O que se passa? — Pergunto pela quarta vez, vendo o Bo que conheço, cheio de energia, voltar em tão pouco tempo. Ainda há pouco mal se levantava.
— O Kaydon esteve aqui.
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