Um Pequeno Assassino

Acordo com um barulho alto que me faz saltar, ainda não é de manhã, e não sinto que tenha dormido muito. O que aconteceu? A Heli está a fazer algo lá em cima?

O ruído repete-se e finalmente percebo o que é.

Isso só me deixa mais alerta. Alguém está a bater à porta. Não pode ser a Heli, ela tem a chave. É isso que me deixa assustada. Quem passou do portão para me bater à porta?

Levanto-me da cama lentamente mesmo que as batidas na porta sejam cada vez mais violentas. Tento espreitar pela janela, mas a pessoa deve estar colada à porta, não a consigo ver.

Colo o ouvido à madeira tentando ouvir o que for para além das batidas e de repente ouço.

"Lace... Lace..."

A voz é me familiar o suficiente para abrir a porta, mesmo que com cuidado.

— Bo...— Ele dá um passo em frente, entrando em minha casa, e só quando a luz o ilumina é que solto um grito. — Bo! O que se passa? — O pequeno está com as roupas todas sujas de sangue, as mãos e a cara. Está com a boca e os dentes vermelhos. O que aconteceu?

— Lace eu fiz uma coisa má. Eu só... eu tinha fome, me ajuda.

— O seu irmão? — Ele abana as mãos freneticamente de olhos arregalados.

— Ele não pode saber, não o quero meter em sarilhos.

— Então ele não sabe onde você está? Bo, isso não é bom, porque veio aqui? Esse sangue é seu? O que aconteceu? Você está bem?

— Vim porque você é como nós. Não tenho mais ninguém, e ele não pode saber! — O que esse garoto está falando? Porque um garoto de seis anos está coberto de sangue?

Não consigo perguntar o que eu quero, a boca parece ter secado de um momento para o outro. 

Ele começa a puxar-me pelo braço sujando-me a camisola de sangue. Paro-o por uns segundos para calçar umas sapatilhas e sigo a sua corrida para fora de casa e pelas ruas escuras e frias, devia ter pegado num casaco.

O que ele quer dizer que sou como ele?

— Bo, o que você fez? — Sussurro para não acordar ninguém ao passar pelas ruas, se alguém o vê nestas circunstâncias pode chamar a polícia. Ele não responde, está demasiado preocupado com as direções. De vez em quando vai olhando para a pele e bufa alto.

— Temos que ser mais rápidos! — Ele fala frustrado e começa a correr. Eu sigo-o sempre atenta para o caso de ver pessoas.

Ele leva-me a uma rua estreita sem saída e finalmente para. Posso finalmente desacelerar o passo para recuperar a respiração, aqueles olhinhos escuros fitam-me desesperados e eu não sei o que fazer. Sei que tenho contentores de lixo enormes ao meu lado, mas não vejo nada para além disso.

Pego no celular e ligo a lanterna.

E o meu corpo perde as forças.

Deixo-me cair de joelhos e sinto a bílis fazer o seu caminho para a minha boca quando vejo o corpo no meio do chão. A poça de sangue que o rodeia é gigante. Ele está coberto de sangue como o Bo, e eu percebo a quem pertence porque o cadáver não está inteiro, está cheio de buracos.

— O que você fez? — Tapo a boca e o nariz para fugir do cheiro a sangue e morte. Estou tremendo e mal aguento as lágrimas. O que está acontecendo? 

Como um garoto tão pequeno pode ter feito isto? 

Onde é que ele arranjou forças para isto?

— Eu comi demais, Lace, o mano vai ficar passado. — Ele diz com lágrimas nos olhos.

— Você... você... — Ele disse que o comeu? — O que você é, meu Deus. — Tenho um vômito forte, o líquido chega-me à boca e eu tenho que o engolir de novo.

Como ele pode ter comido carne desse homem? O corpo está completamente desfeito, vejo alguns ossos e as costelas do cadáver estão de fora. Mas como é que esse garoto conseguiu matá-lo e depois comê-lo?

Não consigo tirar os olhos do corpo morto à minha frente, até o miúdo começar a gemer de dor. 

Quando olho na sua direção vejo-o tocando no corpo, subindo a manga do casaco, as calças, tocando na cara e finalmente percebo o que ele tanto procurava. Manchas roxas como as que vi hoje de manhã no seu braço começam a espalhar-se pelo seu corpo, e a dor parece piorar.

— O que está acontecendo, Bo?

— Por favor fique comigo por uns dias, isto só dura uns tempos. Me leve ao mano quando estiver melhor por favor, ele não pode saber. — Ele implora como se a qualquer momento pudesse desaparecer, desesperado, agarrado às minhas roupas.

— Você quer ficar em minha casa? Depois de o matar?

O rapaz cai de joelhos no chão, se queixando das dores no corpo e acaba deslizando deitando-se, sem forças.

Ele repete "por favor", múltiplas vezes, enquanto o seu corpinho vai ficando cada vez mais roxo, enquanto os hematomas se espalham pela sua pele. A certo ponto os seus olhinhos enchem-se de sangue e finalmente apaga.

Tenho que verificar o seu pulso algumas vezes para sentir alguma coisa, não está morto, felizmente, senão teria que lidar com dois corpos.

Como um ser tão pequeno conseguiu matar um homem adulto, correr até a minha casa e pedir-me para que fique com ele? E ainda me disse que sou como ele? O que ele é? E será que o Arius sabe? 

Para ele estar com medo da sua reação é óbvio que sabe.

Paro por uns segundos, desligo a lanterna e respiro fundo. Tenho que pensar no que fazer.

Não posso ficar com o rapaz em minha casa, ele matou alguém, por muito que ele peça não posso não falar com o Arius, ele não deve saber que o miúdo está aqui comigo. Tenho que falar com ele. Talvez me consiga explicar que merda é que se está a passar.

Tenho que esperar por essa conversa para saber o que fazer com o cadáver que tenho à frente.

Pronto, tenho o primeiro passo delineado.

Pego o Bo ao colo e espreito para as ruas procurando por pessoas, felizmente a esta hora da madrugada está deserta. Começo a correr com ele fazendo o caminho para casa do Arius, não é muito longe daqui. Quando lá chego estou mais que exausta, a casa dele está iluminada, vejo-o ao longe andando de um lado para o outro, tem as mãos no cabelo, parece chateado. Deve ter notado na ausência do Bo.

— Arius! — Chamo por ele o mais baixo que consigo, mas alto o suficiente para que me ouça ao longe. — Arius! — Ele corre para mim quando me vê com o menino ao colo. — Eu não sei o que está acontecendo. Ele veio a minha casa e levou-me a um homem... ele disse que tinha comido demasiado. — O Arius tira-o dos meus braços e corre de novo para a casa dele, não preciso que mo diga porque já o estou seguindo. Não estou com paciência para pedidos ou etiqueta, entro pela casa a dentro enquanto ele o pousa no sofá da sala minúscula. — O homem estava morto, Arius, ele disse que o matou. — A única coisa que ouço é a respiração acelerada dele, que passa as mãos pelos cabelos azuis de um lado para o outro, acho que está tentando pensar. — Ele não vai morrer, pois não? — Ele põe-se de joelhos em frente ao irmão e pressiona o dedo no pescoço.

— Não. — Sussurra.

Tento dar um passo em frente e o meu joelho fraqueja e cai no chão, quando ergo as mãos é que percebo que estou tremendo. Os soluços de estar chorando também não estão ajudando. Sinto que a qualquer momento vou colapsar. Foi demasiado para uma só noite.

O corpinho encolhido de Bo tem pequenos espasmos, como é possível estar completamente roxo? É como se tivesse levado a surra da sua vida e no entanto, ninguém lhe tocou, apareceram de repente.

— Ele está doente? Porque fez aquilo? — E os olhos claros como água caem em mim, o meu corpo congela. Sei exatamente o que ele está pensando, o que vou fazer com ela? Porque ela está aqui?

— Se está pensando ligar para a polícia é melhor repensar a ideia.

— Se estivesse pensando em ligar para a polícia não estaria aqui. — Respondo com mesmo ácido na voz. — Ele pediu-me ajuda, disse que você ia ficar chateado. Mas eu não ia chamar a polícia para o levarem. Ele estava desesperado.

— Com razão, acabou de estragar a vida. — Arius fala desiludido. Senta-se no chão e olha para o pequeno com pena. Um suspiro atrás do outro e a atenção é virada para mim novamente. — Obrigada. — Murmura baixinho. 

Ele parece completamente perdido, vejo o quão desesperado está pelo pequeno, em como o cabelo está completamente bagunçado pelas vezes que passou os dedos por ele pensativo, em como as mãos estão apertando as calças cinzentas. Em como as bochechas estão vermelhas e o suor se acumula na testa. Está no seu limite, não estava esperando isto do Bo.

Tenho as perguntas entaladas na garganta, sentada no chão com ele, olhando para o miúdo que parece pior cada vez que se mexe, sinto que estou num sonho, que não acabei de ser acordada por um garoto coberto em sangue que me leva a um corpo e diz que o comeu. É material perfeito para um pesadelo, no entanto, tenho a certeza de que estou acordada.

Depois de um suspiro grande o Arius se levanta, estica o braço para mim e, quando apanho a sua mão, ele puxa-me para cima.

— Preciso de saber onde está o corpo. — Abano com a cabeça, me sentindo em modo automático, como se falar de um homem morto fosse um assunto normal. O pensamento faz todo eu desistir, as pernas querem ceder.

O coração quase que me bate fora do peito, é como se quisesse fugir, como se estivesse cansado de trabalhar tão rápido. As pernas dobram sem que eu lhes diga, estou sem forças para me suportar.

Espero cair no chão, mas o Arius é mais rápido que eu, mete os dois braços debaixo dos meus e me puxa para cima. Bato com o rosto no seu peito e tento me levantar de novo fazendo força com as mãos nos seus ombros.

— Você não quer que ele se meta em mais merda do que já está metido certo? — Pergunta por cima de mim, sinto o meu rosto tremer quando ele fala. Abano a cabeça negativamente. — Então por favor, vamos fazer um esforço e tratar disto. — Com outro abanar de cabeça confirmo que tentarei, o Bo estava tão assustado, é impossível ele ter matado aquele homem com a idade que tem, pode ter sido um acidente, ou o homem podia ter tentado magoá-lo, eu preciso de mais informações antes de acusar um pequeno por matar um homem adulto. 

Lentamente, o Arius baixa os braços para verificar se me consigo pôr de pé e eu faço de tudo para me equilibrar e ganhar força. 

Quando as suas mãos deslizam para a minha cintura para endireitar o meu corpo decido que já foi demasiado contacto. 

Dou um passo atrás e quando olho para cima, para ele, é que percebo que estava demasiado perto. Ele não parece ter notado no avanço que fez, ou sou eu que não estou acostumada a que me toquem, mas ele está sério, não o fez de propósito, acho que só estava ajudando.

Saímos de casa, o Arius me assegurou que ele ficaria bem, e andamos até à rua sem saída que o Bo me levou. Não ouso dizer uma palavra mesmo que elas queiram saltar da minha boca, o que devo perguntar? Será que ele o matou mesmo? Será que o comeu? Porque ele disse que era como eu?

— Foi ali. — Paro antes de virar a esquina, não quero ver o corpo novamente, já vi o suficiente e simplesmente não quero deitar o que tenho no estômago para fora. Ele vira para a rua e se aproxima, o som que faz quando vê o corpo é baixo, mas mesmo assim ouço a sua surpresa. Acho que não estava à espera que o homem estivesse completamente desfeito.

Ele aparece de novo na rua, espreitando para os dois lados.

— Merda! — Diz entredentes, e depois de uns segundos a olhar para todos os lados é que começo a ouvir barulhos na rua atrás de nós. Há medida que se aproximam percebo que são várias pessoas rindo e falando alto. O Arius me puxa para a rua onde estive antes com pressa. Quando vejo que me está levando para onde está o corpo começo a puxar na outra direção. — Acredite que prefere estar aqui do que ali fora. Senta. — Ele aponta para o lado do grande contentor do lixo verde, qualquer pessoa que venha de fora não me vai ver, ele quer que me esconda? 

 Hesito, o corpo do homem ainda está ali, está muito perto de onde ele quer que me sente.

O seu olhar está desesperado, de olhos arregalados, à espera que reaja, mas eu não consigo. 

Então ele fá-lo por mim, pega-me pelo braço e roda-me para que me sente. Sinto imediatamente as calças a ficarem molhadas do sangue do homem e não consigo conter um gemido de medo e nojo.

— Não me obrigue a ficar aqui. — Peço baixinho, soluçando com as lágrimas desfocando a minha visão. Ele curva-se na minha direção, mal vejo o seu rosto, mas sei que está me olhando nos olhos.

— Boca fechada, se abrir a boca eles vão fazer pior do que isso aí. — E eu sei que ele está a falar do corpo no meio do chão. — Por favor. — A voz é mais suave, ele também está com medo, consigo senti-lo.

O que vem aí de tão mau que ele esteja com medo?

Antes que as vozes fiquem mais perto ele aninha-se perto do corpo, ouço-o mexer no sangue e o corpo se movendo. O que ele está fazendo? Porque está a incomodar o homem? Estará a escondê-lo?

Estou prestes a perguntar quando a luz lhe bate na cara, as vozes chegaram.  


Estavam à espera dessa? Kkk
Eu simplesmente adoro o Bo. E mal posso esperar por vos mostrar o desenvolvimento do Bo... digo isto porque já vou a meio do livro e quero vos contar tudo kkkk
Acham que ele o matou mesmo?
O que vocês faziam na situação da Lace?

Espero sinceramente que tenham gostado!

Deixe um voto ou comentário ! Não sabem o quanto me incentiva, não têm ideia da motivação que me dão.

Até sexta !

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top