Um Momento de Distração
Acordo na cama onde adormeci, na sala, com uma perna fora da cama, consequência do pouco espaço.
Como passamos a noite inteira sem um cair da cama não entendo.
Quando olho para trás, onde eles estão, reparo que ainda dormem. O Bo, que tem a maior área do colchão, um braço em cima das costas do Arius, faz muito barulho enquanto dorme, também o vejo dar alguns pontapés de vez em quando.
O Arius, deitado de barriga para baixo, tem o cabelo azul lhe cobrindo metade da cara, mas não parece estar a incomodá-lo, dorme pacificamente. Acho que nada o iria realmente chatear, ao cansaço que tinha, podiam tocar sirenes e mesmo assim não acordaria.
Acho que o cabelo lhe faz demasiadas cócegas e ele tem que se mexer, atira uma perna para cima da minha e sobe mais para cima da almofada. O movimento faz com que as calças subam e mostrem a sua perna.
E aí reparo na cicatriz enorme que tem na barriga da perna. É muito grande e feia. Como será que fez aquela ferida, como alguém o magoou assim? Deve ter doído muito, é como uma linha enorme e grossa, deve ter demorado muito para curar. Uma ferida assim deve tê-lo feito perder muito sangue.
Me pergunto o quanto não sei sobre ele, conheço-o há tão pouco tempo, e umas vezes sinto que sei o suficiente, noutras nem tanto. O mesmo acontece com o Bo.
Como é que me sinto tão próxima deles, deixando-os ficar em minha casa, sabendo que não os conheço?
Acho que já passamos por tanto que a proximidade veio rapidamente. Sinto que os defenderia até ao fim.
E eu não sinto isso por muita gente.
Aquele aperto que senti do Arius na noite passada, aquela proximidade foi tão estranha, mas num sentido positivo.
Ele está à vontade comigo, e sentir o seu toque deu-me algo que não sentia há muito tempo.
O que pensa de mim? Será que sente alguma coisa? O que lhe passou pela cabeça para me puxar daquela maneira, para me manter tão perto?
Não posso dizer que ele me passou despercebido, desde a primeira vez que o vi que me chama a atenção, me deixa curiosa. Mas acho que ele chamaria a atenção de qualquer garota, é um rapaz atraente. Mas vai além disso, eu quero conhecê-lo, quero saber mais sobre a sua vida e sobre a sua personalidade, só sei que o quero perto, e não é só para me proteger. Será que ele sente o mesmo?
Mesmo agora que está dormindo não consigo de parar de olhar para ele, em como parece tão relaxado, em como parece tão mais novo.
Quando está acordado, maior parte das vezes está sério e nervoso com tudo o que o rodeia, como se qualquer coisa o fosse atacar, ver o seu sorriso é como ver um raio de luz na escuridão, é tão raro.
Assim de olhos fechados, noutro mundo que não este, parece um garoto normal, na casa dos vinte e muitos, podia estar agora na faculdade ou trabalhando, parece um humano normal, e eu sei que não o é. Ele tem outras preocupações, vive num mundo em que monstros existem e ele é um deles, e agora eu vivo nesse mundo.
Há pouco tempo pensava que não existiam essas coisas, e agora sei que sim e que sou uma delas.
Estou à espera que a fase do choque chegue, mas acho que já está aqui há tanto tempo que me habituei a ela.
Passei de normal a em perigo.
Será que os meus pais sabem o que eu sou, por isso me trataram tão mal? Queriam que sofresse? Serei mesmo filha deles? Se fosse eles teriam me contado, certo? Durante a minha vida nunca houve nenhuma evidência que pudesse ser uma Bruisan?
Bruisan...
A palavra soa tão estranha na minha mente, algo que nunca ouvi. Li sobre vampiros, lobisomens, demónios, anjos e agora sei que não sou nenhum deles, mas uma coisa nova. O que isso quer dizer? Não tenho informações suficientes, mas espero tê-las no futuro. Quero poder finalmente conhecer-me.
Levanto-me lentamente para não os acordar, pego em algumas roupas e vou tomar um banho.
— Pronta? — Quando saio do banheiro já vestida vejo que o Arius já se levantou, vestiu, arrumou a sala inteira e está preparando o pequeno-almoço.
— Para?
— Vamos dar um passeio! E vamos apanhar um trem! — O Bo passa por mim correndo, com um pão na boca e aos saltinhos, tentando calçar os sapatos. Ele está mais que feliz, está super entusiasmado, mal pode esperar por sair pela porta.
— Vamos sair de casa, Lace. Apanhar ar, estou farto de ter medo. Se ele fizer alguma coisa o Bo vai senti-lo. — O Arius parece decidido, também parece farto.
Estes dias devem ter tirado muito dele, agora que teve uma noite bem dormida acho que está pensando melhor. Também deve estar enfurecido com o Kaydon, o sair é como lhe fazer frente.
Parece completamente diferente, já não está cansado, está radiante, as horas de sono fizeram toda a diferença. Com os seus típicos jeans largos e uma camisa comprida, o cabelo bagunçado combinando com os olhos tão claros. Está simplesmente perfeito.
Ele só me deixa sair depois de comer alguma coisa e de colocar a pomada nas áreas com as manchas, não sei se é verdade ou apenas desejo que as dores acabem, mas acho que elas estão um pouco mais pequenas.
Apanhamos o trem para o centro da cidade, o Bo trouxe a sua carruagem na mochila, só não o trouxe na mão porque eu lhe disse que alguém o podia roubar, está tão feliz.
Quando chegamos ao centro da cidade, a parte antiga cheia de vida, o pobre Bo já não aguenta o seu entusiasmo.
As casas construídas há muitos, muitos anos ainda se mantêm em pé, algumas ainda na sua forma original, outras restauradas. Linhas e linhas de casas estreitas, mas altas, criam estas ruas de pedra cheias de gente. Tenho que andar de mãos dadas com o Bo porque este quer correr para toda a loja que vê. Acabo por lhe comprar uns livros para ler e umas roupas que ele diz precisar, no final, só o quero ver sorrir.
O Arius parece uma pessoa completamente diferente, oferece-nos o almoço, faz uma piada aqui e ali e parece tão relaxado. Apanho-o a sorrir algumas vezes, mas acho que o faz só porque vê que o Bo está tão feliz. Devem ser poucos os momentos em que eles se sentem normais e passam um dia inteiro apenas passeando.
— Mano, posso ir? — O pequeno não tão pequeno pergunta com os olhos a brilhar.
Aquele palco com a cadeira preta que se move com uso dos óculos de realidade virtual chamou a sua atenção desde que entramos no shopping minúsculo numa das ruas principais.
Mal viu um garoto gritando quando, através dos óculos e dos monitores gigantes que nos deixam ver o que ele vê, desceu pela montanha-russa ingreme entrando na boca de um dinossauro, o Bo entrou em êxtase.
Quando o Arius abana a cabeça, permitindo, ele corre para o empregado e paga para ter a mesma experiência que os outros meninos. Acho que não faz diferença se ele parece ter 20 ou 6 anos, qualquer um gostaria.
— É tão estranho. — O Arius começa, de olhos postos no Bo, que coloca os óculos e se senta na cadeira. — Nunca quis ser pai, e acabei sendo um.
Estou tentando interpretar as suas palavras, mas é um pouco difícil, está falando de uma maneira positiva por não querer, mas o facto de ter acontecido mostrou que está gostando de ser como um pai para o Bo ou está dizendo que é como um fardo que ele não quer ter?
Me pergunto o que aconteceu para ele ser deixado a tomar conta do Bo, onde estão os pais deles? Porque os deixaram sozinhos?
— Isso é uma coisa má? — E a sua reação é imediata, nega com a cabeça.
— É o único filho que vou ter.— Confessa. Ele tem uma ideia fixa sobre isto, parece ter pensado e decidido há muito tempo.
— Você não quer ter filhos?
— E fazê-los passar pelo que passei? Não.— Faz uma pausa, cruza os braços e pensa mais um bocado. — Não quero trazer alguém para este mundo para sentir a nossa fome e para sofrer.
— Se os pais forem bons para a criança, não vejo o mal. Você não deixaria o seu filho sofrer.
— E mesmo assim ele está ali, com mais 15 anos que não deixam de estar lá, por minha causa.
— Os humanos também cometem erros, e não quer dizer que sejam maus pais.
Ele não tem resposta para me dar, não sei se porque o que eu disse o deixou a pensar, se porque não quer discutir. As crianças são imprevisíveis, num momento estão lá e no outro já não, se se disser que não podem fazer alguma coisa eles só vão querer fazê-lo ainda mais.
Por mais que tentemos controlar, erros vão acontecer, isso é certo.
Ele sente-se culpado pelo Bo ter fugido e se alimentado, mas foi um azar. Um azar que teve as suas consequências. Isso não quer dizer que o Bo não seja amado ou maltratado, eu consigo ver o quanto ele o ama e o quanto o quer proteger. O Bo é um garoto feliz, e a sua família o ama, isso sim é importante.
Acho que não me importaria de ter um filho, gostava de ter alguém para amar e cuidar.
Mesmo assim não o culpo, só ele sabe o que passou e o que ser como somos envolve, talvez com o tempo eu acabe por pensar da mesma maneira.
O tempo passa tão rápido que quando chegamos a casa já o sol se está a pôr. Felizmente nada de mau aconteceu, tenho que admitir que estava um pouco preocupada que o Kaydon aparecesse, mas também duvido que ele atacasse no meio de tanta gente.
Estamos a andar carregados de sacas com um Bo saltitante à nossa frente quando reparo no homem parado no portão da minha casa. Nunca o vi antes, mas ele está encostado ao portão como se soubesse quem lá vive e estivesse à espera de algo.
Deve estar na casa dos 50 anos, é magro, alto e ruivo.
Tem a pele branca e a barba por fazer, noto também que tem os olhos muito claros, como os do Arius.
A maneira como cada um repara na sua presença me diz que as semelhanças de aparência não são coincidência. O Arius para por uns segundos, como se a imagem do homem o impactasse, e o homem se endireita e forma um sorriso.
Um arrepio percorre-me a espinha, o mau pressentimento aparece instantaneamente.
O Bo não o reconhece, mas lê bem o ambiente porque para de saltar e vem para a minha beira. Ele observa o Arius, sabe que algo está mal e está à espera que o irmão reaja para saber o que fazer.
Nem o homem, nem o Arius falam durante o caminho em que a distância se encurta. Ele só para quando o homem se põe entre ele e o portão de minha casa.
— Tem a certeza que me quer ignorar? — O homem ruivo pergunta num tom de brincadeira falsa, ele fala como se fossem bons amigos, coisa que pela expressão na cara do Arius, claramente não o são.
— Porque está aqui? — O Arius faz a pergunta com nojo na sua voz.
— A sua casa já não está em pé.
— Como sabia que estava aqui?
— Tenho as minhas maneiras. — Quando o sorriso nojento e provocativo lhe aparece de novo nos lábios parece ser o momento em que o Arius perde a paciência. Apenas pelo seu rosto e postura já consigo ver que mudou por completo. Está irritado, muito irritado.
Ele dá um passo em frente, e o homem recua assustado batendo com as costas no portão.
Aquele sorriso some num instante, tem medo do Arius, isso vê-se de longe. O sorriso era só uma farsa, para parecer mais forte e confiante. Bastou-lhe um passo para ir por água abaixo.
Os peitos quase que se tocam, o Arius tem que olhar para baixo para poder ver o homem apavorado.
— Esta não é a minha casa, então não te quero ver mais aqui. Percebido? — A voz que ele usa é aquela que ouvi antes, quando ele feriu o homem que me atacou, parece uma pessoa completamente diferente. Quem é aquela pessoa para o deixar assim?
O Arius leva a mão à maçaneta, e o homem desliza para o lado para o deixar passar. Preciso de um toque do Bo para me fazer voltar à realidade e os acompanhar para dentro de casa. Fecho o portão, depois de receber um último olhar daquele homem. O que fez para o Arius reagir dessa maneira? Fê-lo sofrer? Feriu-o?
Aqueles olhos azuis parecem idênticos aos dele, e o cabelo também. Só podem ser parentes. O que ele está a fazer aqui e como sabe onde fica a minha casa?
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