Traição

Lace

— No final desta noite estarei em casa, contigo.— Suspiro, não me parece verdade.

Passaram dias, não muitos, mas os suficientes para me mudar a cabeça, para me ferver a raiva, para fazer com que tudo pareça suspeito, pareça mentira.

Será que o meu pai abrirá mesmo não de mim agora que tem quem fique com o seu dinheiro? Vai me deixar viver a minha vida como eu quero?

É um bocado difícil acreditar nisso.

Tenho o Arius ao meu lado, vestindo apenas os boxers, virado para cima, na minha cama, fumando vidrado no teto, pensando em algo que o leva para longe, bem longe.

Me pergunto o que está pensando, no mesmo que eu? Que tudo parece demasiado fácil e bom para ser verdade? Ou há algo diferente e pior que lhe está passando pela cabeça?

Se calhar pode estar pensando no que eu temo, no casamento.

Pode não me querer agora que não há casamento para existir, que estou prometida a outro, que estou legalmente casada e ligada a outro. E esse outro é o Kaydon.

Estou fazendo isto para poder estar sozinha finalmente, sem o pai para me perseguir, para não ter que lidar com as conversas de heranças e dinheiro.

Quero viver a minha vida, e quero que seja com o Arius ao meu lado. Aproximo-me dele na cama e me deito no seu peito, afasto a mão das cicatrizes quando ele faz uma cara de desconforto.

Algo o está atormentando aí dentro, e isso está me assustando. Mesmo com os pensamentos a mil ele me abraça com força contra si.

A necessidade que ele mostra em me ter por perto faz-me sentir a pessoa mais feliz do mundo, mesmo inseridos nesta situação, dentro da casa do meu pai, no quarto onde passei por tanto e fiquei fechada durante dias.

— Vamos sair daqui nem que tenha que verter todo o sangue dos que estão nesta casa. — Ele diz aquilo com tanta convicção e raiva que por momentos me dá medo. Está revoltado com tudo isto, assim como eu, mas está violento, está assustador.

— Então é melhor descermos para jantar, para acelerar o processo.

Visto algo mais confortável e observo o Arius fazer o mesmo, mas voltando a vestir aquele fato maravilhoso, o simples apertar dos botões da camisa branca torna-o tão atraente, acho que estou perdendo a sanidade com aquele cabelo preto. Pego no vestido de noiva que foi atirado para o chão e o coloco em cima da cama, espalmando os vincos que se criaram no tule.

O Arius aparece atrás de mim, pegando no vestido, e num único movimento o rasga ao meio. Ele não está em si, não parece o calmo e sério Arius, parece apenas agressivo, descontrolado.

— Não quero que tenha nada que a faça lembrar de hoje. — Abano com a cabeça, ainda perplexa, percebendo mas ao mesmo tempo não entendendo o porquê de ele ter feito isso.

O vestido não quer dizer nada, não precisava que o ter rasgado.

Em vez de discutir pego na sua mão e conduzo-o até a sala de jantar, onde todos se estão a juntar à volta da mesa. Noto imediatamente no número de homens que rondam pela casa, aumentou consideravelmente.

O Kaydon trouxe mais dos seus amigos, ou são os homens do meu pai?

Sento-me ao lado do Arius, e ninguém parece se abster, incluindo o Kaydon que se senta numa ponta da mesa, e o meu pai na outra.

Como se ambos estivessem se mostrando superiores.

Acho que estão tentando se ameaçar um ao outro, o que é engraçado, visto que o meu pai está lhe dando tudo de bandeja.

Foi a sua escolha, porque estão agindo como animais protegendo o seu território?

Decido olhar para este jantar como algo nostálgico, a última vez que vou estar nesta casa, no meu quarto, nesta sala de jantar onde muitas vezes comi apenas com os meus pais.

Nessa altura a sala parecia a coisa mais vazia do mundo, um jantar com um homem que se acha melhor que todos, a sua mulher calada e cega quanto as ações do marido, e a filha aterrorizada dos próprios pais.

Agora parece algo completamente diferente, mesmo que saiba que estou aqui contra a minha vontade, os outros não se parecem lembrar disso. Com exceção do meu pai, os homens do Kaydon estão se divertindo à grande, fazendo um grande festim quando a comida finalmente chega a mesa, cantando músicas altas enquanto agitam os copos cheios de cerveja.

Vejo o Sin pelo canto do olho, com o sorriso enorme torcido para mostrar diversão genuína e não falsa e sarcástica.

Por muito que me custe, vejo isto como a última vez que vou ver o meu pai.

Fiz esta promessa há muitos anos, quando fugi, tive aquela despedida no meio da relva, olhando para a janela do seu quarto, prometi que nunca mais voltaria. E olha como voltei.

Então renovo a promessa, desta vez olhando diretamente para ele.

Prometo nunca mais o vê-lo, a não ser no dia do seu funeral. Prometo viver a minha vida com felicidade, sem me preocupar com ele, o perdoando pelo o que me fez.

Digo-lhe adeus, mesmo sem que ele me ouça, e continuo a comer a minha comida.

— Bem vindo à família.— O meu pai levanta-se com um copo de vinho nas mãos, pondo fim à festa que os homens do Kaydon faziam. Todos esperam as suas palavras, contentes com o que o chefe conseguiu ganhar. Será que algum desse dinheiro irá para os seus bolsos? — Hoje acrescento um filho. — O Arius mexe-se desconfortavelmente na cadeira, imagino como se deve sentir, mas deixo-o falar, porque hoje poderá dizer o que quiser, daqui a umas horas não estarei aqui.

— Pai! — O Kaydon responde, rindo, se calhar com um copo a mais no corpo.

— Trata a minha filha bem.— O meu pai continua, com um sorriso que parece tudo menos verdadeiro.

— O vosso conceito de bem deve ser diferente do meu.— Sai me pela boca, fico tão surpresa que antes de perceber que fui eu que falei procuro pela voz que falou. O seu olhar no meu causa faíscas, a raiva está vindo ao de cima de novo. Quando noto já estou de pé.— Enquanto você me perseguia com seringas na praia, ele estava tentando me matar! — Grito, apontando para o Kaydon, os dois parecem estupefatos pela minha explosão, até eu estou sinceramente.

Estava contando com controlo até ao fim do jantar para fugir daqui, ao que parece ainda tenho palavras por dizer.

— Pela praia? — O meu pai pergunta, parecendo confuso.

— Quando a mãe morreu.— Ele abana com a cabeça negativamente e de repente percebo.

— Foi você também, não foi? — Pergunto a Kaydon, que já tem um sorriso brincalhão na cara. Foi ele que mandou aquelas pessoas atrás de mim quando fui andar para praia, depois de ver a minha mãe, foi ele que tentou me fazer apagar para me levarem. Pensei que tivesse sido o meu pai, afinal tinha sido ele. Ele já está me tentando pegar desde essa altura! — Parece que você não sabe muito sobre o seu genro.

Só aí me decido sentar, tanto porque as minhas pernas já estavam ficando sem força, como pelos puxões que o Arius me estava dando.

Ouvi as suas palavras que me tentavam acalmar o tempo todo que estive a falar mas as ignorei com sucesso, a raiva por estes homens é imensa.

O meu pai parece arrebatado, não sei se o que disse fez alguma diferença. A sua cabeça baixa, como se estivesse pensando.

Pousa o seu corpo de vinho e, de mãos espalmadas na mesa, sobe a cabeça num momento repentino, direcionando o seu olhar a Kaydon. Ouço barulhos atrás de mim, como se a casa se estivesse movendo, quase que a sinto tremer.

— Não preciso.— O meu pai começa, nem me dando tempo para olhar à volta, a única coisa que sinto é o aperto do Arius no meu braço, como se ele sentisse que algo não está bem.

Os homens que reparei estarem a mais andando pela casa há umas horas, aparecem todos de uma vez, no rodeando, nos cercando. São muitos mais dos que estão sentados à mesa, já não estão vestido casualmente, usam uniformes verdes, com proteções para o corpo e para a cara, têm armas nas mãos, prontos a disparar. Parecem autênticos militares, treinados para nos matar.

— O que vem a ser isto, Tiego? — O Kaydon levanta-se, bate com as mãos na mesa, a sua cara fica completamente vermelha, não sabia que isto estava planeado. Um homem ao seu lado dá-lhe com a arma no ombro e o obriga a sentar de novo.

— A esta hora já deve saber o que a minha filha é. — Ele circunda a mesa para chegar a mim.— Suspeito que não conheça mais ninguém como ela.

— É uma flor.— O Kaydon responde, passando a mão pelo cabelo, exasperado.

— A única flor, trazida da extinção. Eu sou humano, a minha mulher era Bruisan. Não havia chance para uma flor nascer. Eu a fiz o que ela é. — Ele faz uma pausa para pousar as mãos na cabeça da minha cadeira, sinto o meu coração aumentar as batidas, estou quase vomitando a pouca comida que ingeri. — E agora farei o mesmo com vocês.

As armas apontam para cada um deles sentados à mesa, o Arius incluído. Se não fossem as armas eu teria mesmo vontade de rir, os dois animais se virando um contra o outro, um traindo o outro. Depois do que me fizeram merecem se matar.

O braço de Arius me agarra com muita força, me pergunto o que está pensando, estará com medo do que ele pode fazer?

— Porquê fazer tudo isto, Tiego? Porquê me enganar? Pensava que éramos família.— Perco todo o respeito que tinha pelo Kaydon, parece um cãozinho implorando por ajuda, pedindo explicações, se sentindo traído.

— Precisava das suas informações, e agora que é casado com a minha filha poderei ficar tudo o que é seu, quando morrer.— A arma do homem raspa na têmpora de Kaydon e por momentos vejo medo nos seus olhos, ele não sabe o que fazer, o homem de sorrisos, todo cheio de controlo e maldade, com medo. — Todo o seu exército de bestas passa a ser meu. — O meu pai fala orgulhoso, tão feliz por ter executado o seu plano na perfeição.

— O que pretende fazer com todos eles? E quem lhe garante que conseguirá fazer o mesmo que fez com ela? — Acho que a este ponto o Kaydon só está tentando arrastar a conversa o mais que pode.

— Você ainda não viu do que ela é capaz.

E depois aparece.

A seringa. A mesma de sempre.

Igual àquelas que me magoaram durante anos, igual àquelas que me perseguem nos meus pesadelos.

Ele aproxima a ponta do meu pescoço e eu tento fugir, o Arius me puxa para si, tapando o tudo o que vê de pele de fora. Só me larga porque o homem de verde lhe ataca a cabeça com o cano da arma enorme.

Ele começa imediatamente a sangrar com o impacto forte.

Mãos me agarram apenas os segundos suficientes para me manter quieta e me administrar o que quer que aquela seringa tenha.

A mesma sensação de antes, de há tanto tempo, aparece. A ardência, o medo, os tremores.

De repente, tudo se desenrola lentamente, com pequenos cristais flutuando no ar.

Será que sou só eu que vejo isto?

Agarro-me à camisa do Arius, como se ele me conseguisse tirar deste estado drogado, espero que ele me salve, que me tire daqui mas nada acontece, em vez disso vejo a sua expressão, completamente aterrorizada, pálido de choque.

Quando olho novamente para o Kaydon, ele está de boca aberta, provavelmente gritando.

O guarda que tinha a arma apontada à sua cabeça está no chão, morto.

E o seu braço já não se estende para ele, mas sim para o homem ao meu lado, o meu pai.

O meu pescoço gira, tão devagar que fico frustrada com os meus movimentos, quero me mover, quero me mexer, mas não consigo, o que ele colocou no meu corpo? O que me está fazendo?

Os olhos chegam ao meu pai, as suas mãos que tremem mais que tudo, ao seu fato preto tão bem engomado, à sua camisa vermelha.

Camisa vermelha?

A visão sobe para o seu pescoço dilacerado, buraco foi feito por um dos ossos do Kaydon.

Ele jorra sangue por todo lado, escorre pelo seu fato e para mim, suja-me as roupas.

Tem um cheiro horrível, é quente e espirra-me para a cara.

Ele cospe, tenta respirar, agarra-se à ferida na esperança que ela pare de sangrar.

Mas é em vão, o seu pescoço está demasiado aberto, vai sufocar no próprio sangue em minutos.

Ele cai para cima de mim. E os sons deixam de existir.

Apenas há imagens em câmera lenta.

As pessoas se escondendo debaixo da mesa para não levar com os tiros dos homens, alguns ripostando, atirando espinhos e matando os guardas. Mas eu só tenho olhos para o Kaydon. E ele para mim.

Estou de pé, os olhos colados nele, as mãos pararam de tremer, o coração bate rápido, mas não de medo, de adrenalina.

Estou perto da loucura, sinto-o em mim, toda a minha pele vibra, sinto os meus ossos da ponta dos pés ate ao crânio.

Consigo sentir-me por completa.
Toda eu.

É como se tivesse vivido com uma venda toda a vida e de repente abrisse os olhos. Já não estou cega.

Eu vejo.

Eu vejo-o.

E quero-o morto.

Ele sente o que eu estou querendo dizer, apenas pelo meu olhar.

Começa a fugir de mim, não sei porque tem medo, nunca teve até agora.

Me tentou matar tantas vezes, e agora matou o meu pai. Que não era dele para matar.

Passo os olhos pelo Arius que já está no chão, rastejando para longe de mim, assim como muitos outros.

O que será que vêem? Ele sabe que não precisa de ter medo de mim.

Quando vejo o Kaydon correr pela relva, lá fora, faço o mesmo, e corro até ele.

Um grito sai pela minha garganta, como um monstro, um grito grave que percorre o meu corpo inteiro e se prolonga para longe de mim.

Ele para no caminho, todo o corpo tremendo.

Só me sinto sorrindo.

Até ver tudo negro.


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E começa gente... Estão ansiosos ou assustados? kkk
Estavam à espera desta espetada nas costas da parte do pai da Lace? Cada um sendo egoísta, enquanto o Kaydon pensava que estava ganhando uma fortuna, e que o único sacrifício seria casar, afinal o que o pai dela queria era raptar todos aqueles Bruisan. 
Para quê? 
Para fazerem exatamente o que ela vai fazer...

No próximo capitulo! kkk
Que vai ser narrado pelo nosso Arius, para vermos todos os detalhes. 

Espero que tenham gostado. 

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