Solidão do pequeno ruivo
O ruivo sente que cada parte do seu corpo está eletrificada, não consegue encontrar saliva na boca ou controlar a sua respiração.
A barriga ronca pela última vez antes de decidir agir.
O homem à sua frente, no meio do beco sem saída, escuro e sujo, fumando despreocupadamente, nunca pareceu tão apetecível.
O Arius seguiu-o até aqui desde o clube de striptease, notou o cheiro a bebida e fumo impregnado nas suas roupas e no andar desajeitado que eles lhe proporcionam.
A presa perfeita, bêbada, desatenta e frágil.
Ele não fez esta escolha e perseguição de repente, ficou a marinar durantes dias e dias até a ideia lhe parecer a única coisa que pode executar para sobreviver.
Arranjar comida para um pequeno monstrinho que ainda nem chegou à puberdade e ainda por cima sozinho é uma tarefa difícil, não tem ninguém que o ajude a se alimentar, ninguém que o apoie ou tome conta dele.
O pequeno é dono do seu nariz, se ninguém o ajuda então tem que chegar à frente e fazê-lo ele mesmo.
A sua barriga já ronca há muito tempo, e nenhuma comida a faz acalmar, o corpo pede por carne humana e só vai sossegar quando a tiver.
Conforme os dias vão passando, a dor de barriga aumenta, a força torna-se escassa, as noites são mal dormidas e só há um pensamento: carne.
É essa necessidade que o traz aqui nesta noite terrivelmente fria, tentando se preparar mentalmente para atacar um homem para poder sobreviver. Enquanto o seu pai era vivo, ele o manteve alimentado, eram ambos da mesma espécie, e saber que alguém experienciava da mesma forma, a mesma ânsia, fazia o sentir menos uma aberração.
Foi quando ele morreu que as coisas pioraram, a sua única família era o irmão do seu pai, um homem solitário oportunista que desprezava o sobrinho.
Durante anos foi oprimido, agredido, chamado pelos piores nomes por ter herdado uma fome incontrolável que ele não tinha.
O Arius sempre se perguntou se o maltrata porque quer ser como ele, se porque tinha nojo de alguém como ele.
O pequeno deseja todos os dias que Deus lhe tire esta fome horrível, não teria problemas em passar este fardo para o seu tio se ele realmente o quisesse. Mas a vida não funciona assim, e pelo menos, este homem deu-lhe um teto para viver.
Quando a dor é demasiada e ele precisa de se curar, passa as noites noutro sítio, pedindo ajuda a quem oferece ou dormindo debaixo da ponte. Mas sempre volta, afinal, ele é a sua única família.
Atacar pessoas é a última coisa que quer fazer, já tentou provar todo o tipo de animal na esperança de se ver livre da fome, também já recorreu a uma morgue, com o intuito de criar uma alternativa a magoar alguém, mas uma pessoa morta há muitas horas não sacia o estômago, no entanto, atrasa um pouco a fome, é o que o tem mantido de pé.
O menino de olhos azuis prepara-se, é agora ou nunca, na sua cabeça faz os cálculos de quanto deve levar para casa para poder congelar e durar alguns meses, por isso trouxe o machado do tio e um saco grande. Esta caçada vai dar frutos que irão durar muito tempo.
Quando ele se vira de costas, o miúdo sabe que está na altura de avançar. A passos leves faz o seu caminho para o homem e, aproveitando o seu momento de distração espeta-lhe o machado na perna. O homem cai de joelhos gritando de dor, mas o garoto não para, sobe-lhe para as costas e morde-lhe o pescoço puxando a carne suave com os dentes que a cada segundo aumentam de tamanho e afiam. O sangue espirra para cima dele, mas a preocupação é mínima, o controlo desapareceu há muito.
A energia volta no instante em que sente o sangue na língua, e minutos depois, enquanto mastiga os pedaços que arrancou, o seu estômago finalmente acalma.
Tudo isto pelo custo de um grande bocado da sua alma, algo em si morreu naquele dia com a morte do homem.
Quando sente que comeu o suficiente começa a pensar no futuro, pegando no machado. Ele corta o corpo aos pedaços o mais rápido que consegue e atira-os para o saco que trouxe.
— A fome deve ser muita, para ser tão descuidado.
A voz atrás de si petrifica-o, ele sabia que podia ser apanhado, mas ao mesmo tempo não está esperando. Não há razão para esconder, a pessoa já viu, nem para negar, quando está coberto de sangue, tem um machado na mão e ainda mastiga o seu corpo.
A sua escolha é atacar.
A sua vida acabará no momento em que descobrirem que tirou uma vida, passará a ter o rótulo de assassino, maluco, psicopata. Se o tio ainda não o matou, o matará agora.
É esse pensamento que o faz virar para trás, de braço içado para poder ferir quem quer que seja que falou.
Mas o seu movimento foi previsto, é imobilizado numa questão de segundos.
O loiro aperta-lhe o pulso até que ele deixe cair a arma e depois o empurra para o chão sem muito esforço. O garoto não deve ser muito mais velho que ele, embora o pareça, é alto e tem músculo.
Alguém como ele poderia dar uma tareia no Arius se quisesse, e este acabou de o tentar magoar, como é que a coça ainda não chegou? Porque ele continua o olhando com um sorriso na cara?
— Comeste o suficiente? — O ruivo abana com a cabeça, confirmando. Porque ele não está assustado com as suas roupas e cara manchadas de sangue? Isso não lhe faz confusão? Não o acha repugnante como o tio? — Não precisa de se preocupar, eu sou como você. — Ele se aproxima, lhe entregando a mão, oferecendo-se para levantar o pequeno Arius do chão.— Você o matou sozinho? — Outro abanar de cabeça. — Estou impressionado, a maioria dos meus rapazes tem medo do que você fez agora. Também não vejo arrependimento nos seus olhos.
— Eu tinha fome. — A mão que o Arius agarra puxa-o para perto.
— E é isso mesmo que deve fazer. Afinal, eles merecem. Se podem matar animais indefesos para comer, nós também os podemos matar para sobreviver. Nunca pense o contrário. — Acredita nas suas palavras com todo o coração, a paixão no seu olhar é obvio. Ele faz força no seu aperto, porque quer que isto seja um ensinamento, uma lição de vida que o pequeno tem que aprender. — Preciso de um garoto como você na minha família. Que acha?
O ruivo hesita por um instante, se calhar não devia confiar num estranho que acabou de conhecer e presenciou o seu assassinato.
Mas aquele sorriso... aquela hospitalidade. É a única coisa que o seu coração desesperadamente deseja. Ter alguém como ele, ter uma família a sério.
O que poderia correr mal em se juntar a quem o entende?
— O que tinha que fazer? — Ele se pronuncia, curioso com a proposta que o loiro oferece. É demasiado tentadora para quem está sozinho há muito, muito tempo.
— Eu te darei um teto, vou te proteger de quem for e nunca te deixarei passar fome. — O loiro pousa as mãos nos ombros do ruivo e procura pelos seus olhos, para que ele entenda a próxima parte. — Em troca, você tem que fazer o que fez agora, matar, mas isso não é problema para você, pois não garoto? — O grandalhão ri, abraçando o pequeno. — Se você nos alimentar, eu te darei tudo o que você precisar. Só tem que prometer uma coisa.
— O quê?
— Nunca poderá comer sem a sua família. Isso seria uma falta de respeito. — O Arius concorda com as suas regras, mesmo reticente. — Está dentro?
E mesmo com dúvidas a resposta é obviamente positiva, o rapaz promete tudo, e um garoto sozinho e dorido, sem nada, diz imediatamente que sim. Tudo para o salvar da fome e do seu tio.
O loiro larga o garoto e sorri abertamente.
— Vemo-nos em breve. — Ele mete as mãos ao bolso e começa a andar para longe do ruivo. — Já agora, sou o Kaydon, a sua nova família.
O pequeno sente uma luz se acender dentro de si. É como se o pai estivesse a sorrir, como se o estivesse incentivando, dizendo que finalmente poderá ter paz com a sua família nova.
Ele acredita que tempos bons virão. Que dor e fome não serão as únicas coisas que irá sentir.
Ele sabe o que o espera na casa do seu tio, arrastando um saco pesado, completamente encharcado em sangue. Sabe a tareia que o espera, ele vai ficar louco no momento em que os seus sapatos lhe sujarem o chão de madeira. Tem que entrar e limpar tudo antes que o tio veja o saco, tudo tem que estar perfeitamente limpo antes que note na sua presença.
Infelizmente, como se adivinhasse, o homem magro e assustador está à sua espera quando entra pela porta.
Palavras maldosas voam, insultando o seu pai e a ele, chamando-o de monstro, nojento, assassino. E cada um lhe entra na cabeça, repetindo e repetindo, para nunca mais se esquecer.
Seguem-se as agressões, os murros e chutes habituais em que no final o miúdo não sabe se o sangue na sua pele é do homem morto, ou dele.
O tio pega-lhe pelo pulso quando o pequeno está prestes a perder os sentidos e atira-o no armário onde ele sabe que ficará preso até de manhã. Aquele espaço minúsculo e escuro foi a sua cama múltiplas vezes, durante anos foi o lugar de castigo do seu tio, uma forma de disciplinar, de o educar.
Com o tempo ele se foi habituando, aquele cubículo passou a ser um lugar de pensamento, de solidão, aquela que ele precisava mais do que tudo.
Tão pequeno, sem ideias formadas, acabou se auto declarar um monstro, alguém que as pessoas devem temer e se afastar, alguém terrível, não merecedor de amor.
As horas ali dentro parecem dias, durante esse tempo já o garoto retirou as suas roupas manchadas e cuidadosamente as dobrou, já limpou o que podia do sangue na sua pele com a sua saliva, fez o possível para se manter limpo, para que ele não descarregue mais nele por estar sujo.
Ouviu o que o tio fez por ele durante a noite, os gemidos de nojo ao tirar o corpo do saco, o som dos sacos que vão embalar a carne e ser colocados num espaço especial apenas para a carne do sobrinho no congelador.
Mesmo com dores, mesmo com a cabeça em água, ele sente-se agradecido por o que faz por si.
Por muito que o odeie, não deixa que o garoto morra.
Quando o sol começa a espreitar, o tio abre o armário e deixa que ele saia. Pega nele e deixa-o debaixo de um chuveiro de água gelada. Não deixaria que aquele sangue se espalhasse pela casa.
Não trocam mais nenhuma palavra, apenas deixa o garoto sozinho, que faz os possíveis para deixar o banheiro impecável, deita fora as roupas que não têm salvamento e limpa os vestígios de sangue do armário onde passou a noite.
O sol mal nasceu e o miúdo já está saindo de casa, nem ele sabe o que vai fazer, o tio só lhe deixou bem explicito que só quer que passe lá as noites, durante os dias deverá arranjar uma maneira de se distrair depois e antes da escola.
Ele segue pelos caminhos habituais, anda durante pelo menos duas horas até chegar à floresta do costume. Não estar rodeado de pessoas é a maior bênção do mundo.
O osso cresce-lhe da mão desajeitadamente, custa-lhe muito controlar o seu corpo, ainda há pouco descobriu que o podia fazer. Já se acostumou à dor que a sua habilidade lhe proporciona, por isso arranca o osso da mão com tanta facilidade.
Começa o seu tiro ao alvo numa árvore alta, cada vez que a ponta fica presa ele faz uma festa sozinho. Sabe que está melhorando em ser... ele mesmo. E isso o deixa orgulhoso, quer dizer que está cada vez mais perto do seu pai, o seu modelo, a única pessoa no mundo que o amava.
Aquele começou a ser o seu sítio preferido, onde ele se pode sentir próximo à sua família.
Por isso está tão à vontade quando eles aparecem do nada.
Os dois homens estão lá por ele, para o levar.
O garoto sente imediatamente as suas más intenções, no momento em que vê que outros como ele são o seu maior medo. Esses homens têm medo dele, assim como o seu tio, cada vez que olha para ele sente o seu medo. E por vezes o desculpa, porque talvez seja essa a razão de o tratar tão mal.
Mesmo que ele seja o seu maior medo, eles estão aqui para o pegar.
E o ataque acaba por chegar, mas não quer dizer que não venha com uma luta.
O miúdo luta até não poder mais, esperneia-se, grita mesmo sabendo que ninguém virá ao seu auxílio, no final a única coisa que faz é perguntar porquê, porquê ele, porquê agora, qual é o propósito de sequestrarem um garoto indefeso concentrado apenas em sobreviver?
Mal sabia que o seu propósito seria alimentar uma pequena bebé recém-nascida.
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Recomendo relerem o prólogo kkk para entenderem essa última parte
Agora podemos ver como o Arius viveu :/ acho que também dá para entender porque é que ele é assim. Ele passou por muitas dificuldades, merece uma família que o ame 😭
Espero que tenham gostado 🙂
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