O Salvador
Levanto-me da cama apenas por volta da hora de almoço, estou acordada há horas, mas não me atrevo a pôr os pés no chão. Quero aproveitar o colchão fofo e os lençóis quentinhos o máximo que puder. Finalmente chegaram os dias em que posso descansar, pensar em tudo menos o trabalho.
Posso fazer o que quiser.
Então escolho começar por comida, um almoço que signifique o contrário de saudável. Quero encher-me de porcarias.
Resolvo sair, comprar almoço para as minhas lindas vizinhas de cima, e faço questão de ir a pé. A Heli deu-me uma lata de gás pimenta e aconselhou-me a andar sempre com algo afiado na mala, parece que anda sempre preparada para que uma situação semelhante à minha aconteça.
Quero subir aquelas escadas, mesmo que seja de dia, para que não fique com o trauma, agora tenho como me defender, sugiro que o mesmo homem não me apareça à frente.
Quando entrei de volta no restaurante depois do rapaz de cabelo azulado me ter feito aquele aviso esquisito pedi desculpas à Heli pelas minhas palavras. Mal me sentei de novo na mesa, ela também estava preparada para me pedir desculpa.
Não falamos mais do que aconteceu na noite anterior e eu também não falei sobre tê-la visto a falar com o Kaydon, mesmo que o que o rapaz me disse me tenha deixado com a pulga atrás da orelha.
Faço caminho pelas ruas onde corri, passo pelo restaurante onde comi e não lhe dou importância, tenho o objetivo de passar pelas escadas de pedra.
Quando lá chego parecem ter o dobro do tamanho que costumam ter, é possível ter ganho assim tanto medo?
Um pé atrás do outro subo-as até ao degrau onde o homem me derrubou. O meu olhar sobe para as casas diretamente acima de onde estávamos. A água só pode ter vindo de uma das casas. Gostaria de saber quem vive lá para poder agradecer, mas duvido que se lembrem da minha cara, estava escuro e como eu só vi a sua silhueta a pessoa também terá visto o mesmo.
Os segundos que passo observando são suficientes para eu considerar que tive uma despedida do medo e que agora não tenho nada a temer. Quero parar de pensar neste incidente, de vez.
Subo o resto das escadas em tempo recorde e passados poucos minutos já tenho a minha comida, fazendo a escolha corajosa de passar por lá de novo, só por teimosia. Com uma mão na saca da comida e a outra apertando firmemente a lata de gás pimenta.
— Isso é comida? — Uma vozinha atrás de mim pergunta, e o dedo indicador quase que carrega no botão da lata com o susto.
O rapazinho está quase colado a mim, a tentar chegar à saca para ver o que lá tem. Tem o cabelo loiro, mas uma parte das suas repas tem uma risca azul escura, alguém lhe pintou o cabelo? Tem a cara bolachuda, mas um corpo pequeno e magro.
Não sou muito boa a adivinhar idades, mas diria que tem uns 5 ou 6 anos.
Olho à nossa volta e não vejo ninguém, estará perdido?
Agacho-me para ficar à sua altura e abro a saca, tiro um pacote de batatas fritas e entrego-lhe, talvez o mantenha um pouco comigo enquanto procuro os pais dele.
— Onde estão os seus pais, pequenote? — Ele fica imediatamente ofendido.
— Não sou pequeno, sou muito alto para minha idade.
— Desculpe. — Ele abana a cabecinha aceitando as minhas desculpas muito graciosamente. Quando levanta a mão para levar uma das batatas à boca a manga do casaco largo desce-lhe pelo braço. A sua pele está pisada, posso contar pelo menos três pisaduras. — Como fez isso? — Aponto para o seu braço magoado. O pequeno dá de ombros depois de se aperceber do que estou a falar.
— Tinha fome. — E eu acho que nunca fiquei tão confusa como agora, teve que lutar para arranjar alguma comida? Ou roubou comida e alguém lhe bateu?
— Onde estão os seus pais?
— Fugiram. — Ele fala com tanta normalidade que eu fico cada vez mais intrigada.
— Então quem toma conta de ti?
— O mano. — A maneira como falou a palavra foi tão forte que senti a admiração e amor que ele sente no momento em que lhe saiu da boca, isso e o sorriso parvo estampado no rosto. — Nós vivemos ali, quer ver? — Ele aponta para umas das casas acima das grandes escadas, é uma zona pobre, e para lá chegar tenho que subir outras escadas de pedra antigas e danificadas. Tenho que confirmar porque ele precisa de ir para casa, o irmão já deve estar preocupado com o seu desaparecimento. Subimos as escadas e passamos por outras casas, uma mais velha que a outra, até as ruas são de pedra, esta zona é muito antiga, só vejo pessoas idosas vivendo aqui. — Qual é o seu nome? O meu é Bo.
— Lace. — Ele repete o nome cantarolando-o. Parece um garoto tão cheio de vida, tão alegre, mas aquelas pisaduras não me saem da cabeça.
— Mano! — Grita mais alto do que devia, deixa a minha mão e corre em frente.
Só quando acompanho a sua corrida é que reparo para onde vai. Na direção do rapaz de cabelo azul do dia anterior, o rapaz dos pensos. O meu olhar vai diretamente para a minha mão coberta por esses mesmos pensos. O Bo abraça-se ao rapaz mesmo que este já esteja a meio de um sermão, ele deve ter fugido dele. O menino corre de volta para mim e puxa-me para onde estava antes.
— Este é o meu mano. — Apresenta com orgulho. — Ela deu-me batatas. — Ele mostra ao rapaz de cabelo azulado.
— Porque fugiu? — Pergunta ao pequeno no único tom que eu ouvi ele falar, rude e ameaçador.
— Eu senti que ela estava perto. — Este rapazinho está se a tornar cada vez mais estranho para mim, as coisas que disse até agora não fazem sentido algum.
Mas mesmo que para mim não façam, para o rapaz de cabelo azul fazem todo o sentido. Ele ouve as palavras que o miúdo diz e depois olha para mim de olhos arregalados.
— Tem a certeza que era ela? — O Bo abana a cabecinha com um sorriso enorme, como se tivesse cumprido uma missão muito importante.
— Alguém me quer explicar o que se está a passar? — O garoto endireita as costas que antes estavam curvadas para falar com o menino e de repente parece ainda mais intimidante que da outra vez. Hoje está diferente, não usa tudo preto, está com um fato de treino azul, largo e aparentemente confortável. O cabelo também não está arranjado como ontem, está confuso, tem madeixas azuis caindo lhe pelos olhos. Porque prefiro esta versão do que a de ontem?
— Ele gosta de inventar estas coisas. Obrigada por o trazer. — Um olhar é o que basta para o pequeno correr para a casa pequena atrás deles. Antes de fechar a porta atrás dele abana o bracinho, se despedindo. Quando vejo que ele também me vai virar as costas não consigo manter-me calada.
— Não tem mais nada a dizer? — Ele para o primeiro passo que ia dar para me encarar.
— Já agradeci.
— Não vai falar de ontem? Ou do facto do garoto dizer que me sentiu, ele disse que está com o braço magoado porque tinha fome, ele está bem?
— Ele só disse isso para que arranjasse mais comida para ele. E sobre ontem, já disse o que tinha a dizer. — A vontade de discutir só aumenta, o seu tom, a expressão aborrecida e a posição de superioridade. Mesmo que os seus olhos me queiram congelar não vou ceder.
— Então não me vai dar nenhum contexto sobre o porquê de ter que me afastar do Kaydon?
— Não preciso. Basta o aviso, se não quer seguir é com você. — Juro que estou me controlando para não lhe chamar quinhentos nomes neste momento. Estou a ver que não vou conseguir arrancar mais informações dele, ele não quer cooperar. Acabo por me frustrar demasiado e sem despedida alguma viro-lhe costas e começo a andar. Não quero berrar e sei que estou prestes a fazê-lo.
E de repente olho para o lado, para o outro lado do muro. E mesmo lá em baixo, por baixo da sua casa, está o sítio onde a água caiu.
Volto para trás, ando pelo muro até encontrar exatamente o sítio onde estava naquele dia, passo pelo rapaz que agora me observa curioso, e paro em frente à sua casa. Alinha-se na perfeição.
— Foi você. — Olho para ele, que me olha de volta de sobrancelha franzida. — Foi você que atirou a água.— Um dos cantos dos seus lábios sobe com a vontade que tem de sorrir, convencido. — Porquê água? Porque não veio me ajudar?
— Era o que tinha à mão. — Dá de ombros. Depois, em passos lentos chega até mim. Raspa o seu ombro no meu para se curvar e olhar para onde atirou a água. Quando se endireita, está demasiado perto. Estou encostada ao muro de pedra, e ele está muito perto para o meu gosto. Tenho o rosto quase no seu peito, ele tem que olhar para baixo para poder me ver. Daqui os seus olhos azuis tão claros parecem ainda mais assustadores. O que é isto? Quer me ameaçar? — De nada.
— Não agradeci. — Pouso as mãos no seu peito, o afasto para me poder mover e ouço-o rir com o meu movimento. — Você ainda não me disse o seu nome.
— Porque precisa de saber? — Uma ótima pergunta, realmente não sei porque quero saber.
— Ótimo, então não diga. Também não sabe o meu, então estamos em pé de igualdade.
— Lace. — Tenho que parar o passo que comecei para me afastar. — Estou à frente. — E pela primeira vez abre um sorriso, brincalhão, mas com alguma maldade por trás. A cara dele parece completamente diferente, parece que de um momento para o outro começou a brilhar. Como pode parecer outra pessoa? Devia mostrar aquele sorriso em vez da expressão carrancuda. Será que ele sabe o quão bonito é? Ou sabe-o perfeitamente e faz estas coisas para puxar as garotas para ele?
— Então fique à frente, já não quero saber. — Abano com a mão, e viro-lhe costas pela última vez.
— Arius.— A sua voz levanta para que possa ouvir o seu nome. Mas não lhe vou dar a satisfação de parar o passo, continuo e não me importo de esconder o sorriso que tenho estampado na cara porque ele não o consegue ver.
E agora conhecemos os nossos irmãos ! O Bo e o rapaz de cabelo azul que não sabíamos o nome, o Arius!
O que acharam deles?
Esse menino é muito precioso mesmo! adoro-o e ele só existe na minha cabeça kkk
Espero que tenham gostado desse capítulo !
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