O Pequeno Grande

Passo os minutos desde que acordei a sentir que estou sendo seguida, sinto que alguém me está observando, ao sair de casa, a ir para o trabalho, cada pessoa que me rodeia parece que me olha diferente, como se me conhecesse.

Felizmente, conforme o tempo vai passando e o trabalho aumenta devido ao nível de pessoas que entra na loja posso me distrair. Passo quase uma hora sem pensar em alguém como suspeito e fico um pouco aliviada por me sentir uma pessoa normal, nem que seja por pouco tempo.

"Pessoa normal"

Desde quando deixei de o ser?

Acho que consigo apontar esse momento em quando pus os olhos no corpo desfeito no beco escuro. As imagens são tão vivas na minha mente que se me pedissem para o descrever eu o faria sem dificuldades.

Presenciar uma coisa dessas e, ainda por cima, com uma criança ao meu lado alegando ser a culpada foi ainda pior para a minha cabeça já instável.

Eu sei que se calhar não estou a ser justa com o Arius por estar sempre a insistir, mas eu tenho a necessidade de o ver, é como se fosse uma comichão que só pode ser coçada no momento em que colocar os olhos naquele garoto.

É um pesadelo que eu nunca mais vou esquecer, e o facto de ele ter estado lá comigo, fez me criar uma ligação com aquele miúdo.

Vê-lo encharcado em sangue, desesperado, procurando por mim para o proteger, ficando cheio de manchas roxas e o medo nos seus olhos.

Como é que posso simplesmente me esquecer que ele existe? Esquecer a condição em que ele estava quando sai da sua casa?

Já dei tempo o suficiente, mesmo que ele ainda esteja mal eu não quero saber, preciso de o ver, e se ele precisar de alguma coisa, ajudar.

— Acho que temos um Ferrari. — Uma voz fala através do fone que tenho no meu ouvido, é assim que os empregados na loja comunicam. Olho à minha volta e finalmente vejo a origem da voz, o segurança não está muito longe de mim, e tem os olhos fixados em frente.

— É vermelho? — Outra voz pergunta, parece me ser um dos novos da área dos computadores.

— Preto, é novo. — O segurança responde-lhe de volta.

Essa é a linguagem que ele inventou com alguns dos outros rapazes que trabalham aqui, é um código para alguém suspeito.

Quando o segurança repara que estou olhando para ele, aponta para a frente e depois para os seus olhos.

"Toma atenção" é o que ele quer dizer. Diz-me isto porque o suposto suspeito está na minha secção.

E eu começo a andar, despreocupadamente, mexendo nas caixas para as endireitar, analisando preços como se fossem a coisa mais interessante deste mundo até encontrar o rapaz vestido de preto.

— Eu conheço você! — Digo mal os seus olhos se encontram com os meus.

É o rapaz de ontem, reconheço-o imediatamente.

E eu devia ter ficado calada. Porque, depois de um grande pulo, ele corre pela loja para a saída.

E pelo menos duas pessoas o seguem, devem pensar que ele roubou alguma coisa. Mas eu acho que ele estava correndo para fugir de mim.

Como é que descobriu onde eu trabalho? Aquela sensação de estar a ser observada sempre foi bem sentida? Ele me seguiu até aqui? Quem é ele? O que quer?

Ele parece inofensivo, tem uma cara jovem, deve ser mais novo que eu, mesmo sendo alto a sua cara não me diz que seja uma má pessoa.

O que é que ele quer de mim?

Depois deste episódio, e de estar ainda mais frustrada pelo facto de os seguranças não o apanharem, tenho que pedir à Heli para me vir buscar outra vez. Já não confio nas ruas, não confio em ninguém.

Cada vez que me encontro sozinha tenho medo de acabar como aquele homem naquele beco escuro.

Não me sinto segura em lado nenhum.

A noite já caiu quando chego a casa, decido não contar à Heli sobre o rapaz porque não a quero preocupar, então aí é que ela me obriga a ficar em casa e não me deixa sair. Ganharia uma motorista dedicada, e eu não lhe quero dar esse trabalho nem quero dar-lhe essas preocupações.

A ideia de comprar um carro parece-me a cada dia mais apetecível.

— Quer comer lá em cima? — A Heli pergunta animada, e eu mais animada fico sabendo que posso comer dos cozinhados da avó dela.

Estou quase entrando pelo portão quando, pelo canto do olho, vejo movimento, e sei instantaneamente que é ele. Basta me espreitar para a rua ao lado para o ver andando apressadamente para longe daqui.

Desta vez não me escapas.

— Heli, não espere por mim.

Não espero resposta, corro, mas fazendo o menos barulho possível.

Vejo-o de costas, de mãos nos bolsos e cabeça baixa, não sabe que o sigo.

Estou cada vez mais perto, e só a meio da perseguição é que me apercebo que estou sozinha, com apenas uma lata de gás pimenta para me defender.

A razão não está entrando na minha cabeça hoje, então continuo.

Ele para, apenas por uns segundos, o seu corpo faz um movimento estranho, como se se estivesse arrepiando. Ele leva a mão à nuca e coça-a. É como se soubesse que algo está errado.

Corro como uma desalmada quando percebo que ele vai virar o seu corpo para mim.

Quando me vê, os seus olhos se arregalam, e a reação é muito lenta. Já estou demasiado perto para os pés dele funcionarem e se distanciarem de mim.

A ideia que ele tem de começar a correr é abortada quando lhe salto para cima. Os pés se desequilibram e acabamos por cair os dois no chão duro.

Os cortes que fiz quando aquele homem me atacou doem. Não tinha noção que ainda não estavam totalmente curadas, a dor não me tem incomodado muito, a cabeça já é outra história.

— Porque me está seguindo? — Viro o seu corpo para mim e me sento na sua barriga. Está apavorado, de boca aberta, bochechas vermelhas e tremendo. As mãos estão para cima, como se se quisesse render a mim. — Me responde!

— Lace! — Paro o que estou fazendo e levanto a cabeça para dar de caras com o garoto de cabelo azul, o Arius.— O que está fazendo?

— Esse garoto anda atrás de mim, foi a minha casa e agora ao meu trabalho! — Levanto a mão, ameaçando que lhe vou bater. — Quem é você?

— Lace! — O Arius repete, parando-me de novo. Ele aproxima-se de nós e agacha-se para ficar à minha altura. — Saia de cima dele.

— Você o conhece? Foi você que o mandou para me seguir? Que raio de pessoa é você?

— Ele só queria te ver, mas tinha medo de como ia reagir. — Ele sorri. — Não é Bo?

— Bo?

Aos poucos a minha visão cai no rapaz debaixo de mim, ele é muito maior que eu, e conseguia facilmente me atirar para o chão, mas em vez disso, continua ali, assustado, sem saber o que fazer.

Mas aquele nome, repetindo na minha mente enquanto olho para os seus olhos.

Não pode ser. Não, é impossível.

Eu reconheço as suas feições, é como se... o pequeno tivesse crescido.

Tenho a minha confirmação quando pego na madeixa do cabelo, aquela pintada de azul. No mesmo sítio onde o pequeno Bo tinha a sua madeixa azul no cabelo loiro.

— Não. — A voz que sai da minha boca não parece a minha, estou sem forças, rouca, como se cada vez que falasse fosse o meu último suspiro.

— Por isso é que eu não queria te contar. — O Arius confessa com toda a normalidade possível. Como é possível estar assim? — É mesmo ele, posso te garantir isso.

— Não.— Outra expiração sofrida.

Saio de cima do Bo, caindo para o lado. Porque sinto que estou vendo uma aparição, uma aberração, algo que não existe, uma brincadeira, uma visão.

— Lace, desculpa. — O miúdo começa e eu não o deixo terminar quando abre a boca para falar mais. A sua voz é tao rouca, mais do que a do Arius, como pode ser o pequenino que conheci há uma semana?

— Porque me está fazendo isto? Me fazendo pensar que estou maluca. Quer me enlouquecer para eu deixar de o chatear? — O que parece difícil de dizer sai de uma vez, pareço demasiado frágil e o facto de estar a chorar não ajuda. Quando comecei a chorar?

— Eu estou falando a verdade, Lace. Sei que ele está diferente, mas dá para perceber quem é. Eu posso explicar tudo, vamos sair daqui antes que alguém nos veja. — Eu sei que ele está tentando, mas eu sinto que estou chegando ao meu limite.

Que raio de monstro é este que consegue crescer em uma semana uns 15 anos?

O que são eles?

Que criaturas são essas?

O pior de tudo é que eu vejo que é o Bo, os olhos inocentes, o seu rosto, o jeito.

Eu acredito, mas não quero acreditar.

O passo que o Arius dá na minha direção é respondido com um salto meu para me levantar. Não sei como as minhas pernas se aguentam, mas de algum modo consegui, talvez porque quero fugir, quero correr daqui, quero esquecer que o vi.

— Eu não consigo, eu não quero estar aqui. — É demasiado, aqueles olhinhos escuros estão olhando para mim, implorando para que entenda e é demasiado.

Recuo mais e mais, mesmo que o Arius continue a avançar.

O Arius parece assustado e desorientado, acho que não estava à espera da minha reação. Mas eu não consigo evitar o facto de o meu coração estar prestes a explodir, a confusão é tanta que a cabeça não quer cooperar, só as pernas é que comandam, e elas querem fugir para longe.

Ele tem os braços estendidos para mim, como se eu fosse uma presa e ele estivesse esperando o meu movimento para se atirar e me atacar. Está curvado e se aproximando lentamente.

E basta o Bo se levantar para me levar à explosão. O reparar que o seu corpo é maior que o Arius, que eles quase parecem ter a mesma idade, parecerem dois adultos quando sei que um deles não o é, não aguento mais.

O corpo não obedece, ele está mais apavorado que eu, aos tropeções acabo por fugir deles, correndo o mais rápido possível para casa.

Eu sei que isto não vai ajudar, que eu é que insisti em ver o Bo, que mesmo que não o tivesse visto hoje que teria aparecido em casa do Arius e visto exatamente a mesma coisa. Mas isto foi demais, ver os seus olhinhos inocentes num corpo diferente, é demais.

Então a reação foi me separar da situação, ficando longe, para poder organizar os meus pensamentos. Porque por muito que o Arius me quisesse explicar e me acalmar, os meus olhos iam estar postos no rapaz pequeno que agora está grande.

Que calma poderia alcançar com eles?

Começo a arrepender-me de ter pressionado o Arius, ele tinha as suas razões para não o mostrar, e sabia bem que eu não ia reagir bem, estava a tentar proteger-me, tenho que começar a dar-lhe ouvidos.

Ouço-os atrás de mim, eles chamam por mim, mas aos poucos os ouvidos vão tapando e a única coisa que sinto é o vento me batendo no rosto. Vejo apenas a minha casa, é essa a missão, chegar lá antes deles.

Os soluços provenientes do choro deixam-me sem ar, a garganta parece que quer fechar.

O tempo que passo enxugando as lagrimas basta para não olhar para o meu caminho.

O impacto é forte e descontrola todo o equilíbrio que tinha conseguido juntar para fugir deles. As pernas transformam-se em gelatina e deixam-me cair, bato com as costas no chão, e a queda tira-me o ar dos pulmões que restava.

Só quando abro os olhos é que reparo que cometi um erro pior do que fugir deles.

— Merda. — Falo antes de pensar, porque sei que estou metida em sarilhos.

O homem ergue-se por cima de mim, com um pé de casa lado da minha cintura. Reconheço-o imediatamente.

— Deve ser o destino. — Ele sorri convencido. Pega-me pelo pescoço e puxa-me para ficar mais perto da sua cara. — Encontramo-nos de novo.

O homem que me atacou na escadaria, o bêbado, o homem que o Arius encharcou e ficou gritando de medo e me deu a chance de escapar.

Agora parece bem sóbrio, e, no entanto, se lembra de mim. E não tem boas memórias.

Como é possível nos encontrarmos outra vez? Como é possível acontecer isto de novo? Não estamos muito longe do outro local, mas ele está demasiado perto da minha casa, o pensamento de que podia tê-lo encontrado noutro dia por coincidência faz-me estremecer.

É agora que ele me vai dar a porrada que queria dar no outro dia?

Tenho a resposta quando alguém o atropela com o corpo, atirando-o de mim. O homem quase que voa, alguém veio com muita força correndo para lhe dar aquele encontrão porque ele rebolou até ao outro lado da rua.

O Bo salta para cima do homem, começando uma luta. Tem as bochechas vermelhíssimas, parece estar irado.

O que ele está fazendo?

O homem revida com um pontapé que o atira para o chão, ambos se levantam rápido, mas basta uma chapada bem dada no lado direito da cabeça do Bo para ele cair desacordado no chão.

— O que lhe fez? — Levanto-me e corro de encontro ao Bo, ele não abre os olhos, por muito que chame por ele. Tem a cara inchada e com cortes.

E quando eu penso que o homem vai fazer o mesmo comigo, o seu corpo é prensado na parede. Tanto eu como ele nos assustamos com o movimento rápido do Arius, que o prende firmemente, mesmo quando se tenta soltar.

A expressão no seu rosto é assustadora, não está mostrando que está irritado, mas tem a cara séria e um olhar matador. Eu não queria estar na pele do homem, e pela sua reação, ele também não.

— Acha bonito ameaçar garotas? Já não chegou o balde de água fria? Preciso de atirar você ao rio? — A voz que usa faz-me arrepiar, quem é aquela pessoa? Não parece ser o Arius. Se ele é assim zangado eu nem consigo imaginar como reagiria se fosse direcionado a mim. Se apenas um olhar te consegue deixar paralisado imagino ouvir aquela voz. Era suficiente para deixar uma pessoa com medo.

O homem abre a boca para falar, acho que quer ripostar, mostrar que não tem medo, mas o Arius não deixa. Ele cala a primeira palavra quando ergue a mão aberta, ele olha para ela e depois para o homem e sorri, um sorriso medonho, que diz que algo de muito mau vai acontecer.

O Arius mexe os dedos da mão virada para cima e de repente vejo a sua pele tremer e se mover. Algo começa a sair do meio da mão, algo branco, que sobe como se fosse uma serpente. É duro e branco e a ponta é bicuda.

O homem olha para a mão atentamente, de olhos arregalados, tão aterrorizado quanto eu.

E depois, o garoto de olhos azuis aproxima a sua mão da bochecha do homem. Ele diz-lhe alguma coisa ao ouvido que intimida o homem ao ponto de ele juntar as mãos para implorar que o deixe ir.

Mas eu acho que o Arius não quer ouvir pedidos.

De repente, a mão que pairava sobre a bochecha do homem faz um movimento brusco e aquele espinho cresce na sua mão ainda mais para perfurar a bochecha do homem, só para passar pela sua boca e sair pelo outro lado.

O sangue escorre da boca do homem que grita com a dor.

E só aí é que percebo, aquilo é osso.

Aquilo que lhe saiu da pele é osso.

O aperto dele sobre o homem para quando aquele espinho lhe sai da boca e é sugado de volta para a sua mão.

É a coisa mais perturbadora que já vi em toda a minha vida.

O homem cai no chão, gemendo de dor, agarrado à cara. E é aí que o Arius vira a sua atenção para mim, tem algumas gotas de sangue no rosto, e os seus olhos estão quase pretos, daqui já não consigo ver o azul claro.

— Temos que o levar para casa. — O Arius refere-se ao Bo, enquanto pega nele e o atira para as costas.

— A minha está mais perto. Anda.

— Não acho uma boa ideia, Lace.

— Vai carregá-lo pela escadaria até sua casa? Ainda é relativamente longe. — Agarro na sua manga do casaco e puxo-o comigo, ele tenta carregar o Bo e não temos que andar muito até chegar a minha casa.

Estavam à espera dessa ? Kkk o pequeno Bo... já não é tão pequeno assim. Ele cresceu e Muito !
Explicarei melhor nos próximos capítulos
Espero que tenham gostado !!

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