O Funeral
A força que usa no meu ombro para me manter no seu aperto faz-me pensar que quer mesmo mostrar ao Arius que me pode tocar.
Parece ser alguma competição, estão se a picar, por alguma razão. Sei que o Kaydon está apenas fingindo ser tão amigável, mas porque quer irritar o Arius, e porque parece que ele foi intimidado?
Escolho não olhar mais para trás, é como ele diz, não somos namorados e ele só me veio trazer. Se o Kaydon me quer mal eu não sei, mas eu consigo lidar com ele no meio desta gente toda. Não me poderá magoar se todos estiverem a ver certo?
Cada vez que faço um movimento brusco ele sorri e puxa-me mais, ignora cada olhar que lhe mando, sabe perfeitamente o que está fazendo.
— Vamo-nos sentar perto do seu pai. — Ele diz quando estamos prestes a chegar ao altar no meio do grande quintal.
O meu pai esmerou-se, hoje apareceram ainda mais pessoas para o funeral, o quintal está mais do que enfeitado, montes de cadeiras se espalham pela erva, uma secção com umas dez cadeiras que presumo que seja para os familiares mais próximos, e a outra, mais atrás, onde se sentará o resto da multidão. Entre a primeira secção está o caixão da minha mãe, ainda não foi fechado, isso só será feito depois da missa, por isso há como um palco com um microfone no meio, para o padre que o meu pai deve ter chamado.
— Vou ficar aqui no fundo. — Aviso, tentando me sentar numa das cadeiras do fim, bem longe de onde o meu pai se sentou, na frente.
— Nem pensar, é a sua mãe, devia estar lá na frente com o seu pai. — Sei imediatamente que ele não vai desistir, a voz é severa, mas mantém o respeito.
Não vou ousar dizer-lhe alguma palavra má, não quando não sei a sua posição com o meu pai e quando o vi sendo violento com o Arius.
Não quero que fique com rancor de mim e me ataque quando menos espero. O meu coração diz-me para lhe mandar dois berros, mas a cabeça diz para pensar um pouco, para não ser brusca e arriscar a vida dos outros, se sei o que ele é, devo ter cuidado.
Então faço a primeira coisa que me vem à cabeça, e forço as lágrimas a virem. Nenhuma me desliza pela cara como eu pretendia, mas sei que os meus olhos ficaram vermelhos e lacrimejantes.
— Gostaria de sofrer sozinha aqui, Kaydon. Não quero que me vejam chorar, você entende certo? — A voz que faço quase que dá vómitos, a simpatia e vulnerabilidade exagerada.
— Claro, não tem problema nenhum. — Ele reage à minha figura chorosa e me deixa sentar, o seu sorriso carinhoso cresce. Parece que não sou assim tão má atriz como pensava, ele parece genuinamente acreditar em mim. — Se precisar de alguma coisa diga ok? — Oferece-se como o rapaz querido que tenta parecer.
Assinto com a cabeça e suspiro quando ele se distancia para se sentar com o meu pai. Ele abre um sorriso enorme quando o vê, desde quando se conhecem? Quando começou esta relação? De certeza que não existiria se soubesse que ele é como o Arius.
Outra coisa que me pergunto, o ele ter sido violento e o Arius não ter respondido quer dizer que ele também tem as suas habilidades, certo? O Arius não teria medo dele se o Kaydon fosse normal.
A possibilidade de ele ser algo pior faz me arrepiar. Não saber do que ele é capaz, deixa-me ainda mais nervosa.
Acho que fiz bem em me fingir de fraca e burra. Quanto mais tempo ele me achar assim não me tratará como uma ameaça, não que eu seja uma, bastava um dedo para ele me deitar abaixo.
Espero pacientemente pelas pessoas, para que se sentem e façam algum silêncio para o padre poder começar.
Quanto mais rápido puder sair daqui, melhor. Quase todos se querem sentar em frente por isso sou quase deixada sozinha, com exceção de alguns homens mais velhos que não parecem muito interessados, acho que querem sair daqui tanto como eu.
Não ouço quase nenhuma palavra que o homem de bata branca fala, não me interessa muito o que tem para dizer, se ela vai para o céu ou para o inferno ninguém sabe senão ela.
Estes eventos são para nós, os deixados para trás, não sei se para nos dar algum conforto sabendo que a pessoa foi mandada com boas palavras e que poderá ir para um sítio de perdão, mas para a minha mãe isto não faz muita diferença.
É tradição, então tenho que estar aqui. É a nossa despedida.
Sem uma única palavra, ele se senta ao meu lado, e eu identifico-o imediatamente pela cor azul que aparece na minha visão periférica.
Bate levemente a sua perna na minha, me dizendo que está ao meu lado sem usar palavras, e mantém o seu olhar colado na cerimónia. Tem um chapéu na cabeça, acho que quer esconder o cabelo azul ou a sua face do Kaydon, ou talvez para que o meu pai não decore a sua cara caso o veja a falar comigo.
Se calhar é por isso que não falou comigo quando se sentou, apenas me tocou, para parecermos desconhecidos talvez?
Eu alinho com ele, sem perguntar o porquê de ter decidido vir, mesmo que queira, muito.
Volto à realidade quando vejo os homens vestidos de preto se alinharem no caixão, ouço o padre anunciar que está na hora de nos despedirmos dela, antes de fecharem o caixão.
O meu pai graciosamente se levanta e deixa que as pessoas atrás dele se despeçam primeiro e se deixa para o fim. E rapidamente a fila se forma, os choros altos e berros são a única coisa que ouço. Parece tudo tão exagerado.
— Vai. — O Arius murmura ao meu lado. Olho para ele, mas este não me digna com o seu olhar. Ele quer que me vá despedir dela? Com estas pessoas todas olhando para mim, com o meu pai, a pessoa que me tentou magoar, bem ao meu lado.
Não sei se tenho coragem de andar por este corredor de pessoas e a ver pela última vez, e se começar a chorar? Ele não me pode ver chorar, especialmente não depois do que aconteceu ontem.
A ansiedade é demasiada, não quero, não vou passar por isso.
— Não consigo. — Respondo, o meu coração não vai aguentar. Já a vi ontem, disse o que tinha a dizer, já chega. Não aguento.
— Eles que se fodam. Vai te despedir dela. Se não for, vai se arrepender para o resto da sua vida.
Ele tem razão.
Não vou ter esta oportunidade outra vez. Não vou pensar nele, vou pensar em mim.
Levanto-me num pulo, porque acho que se o fizesse com calma o corpo ia ceder. Cada passo que dou é calculado, as minhas pernas parecem gelatina. Encho o peito de ar e faço o caminho até ao caixão, no momento em que a última pessoa se afasta e o meu pai se aproxima eu meto-me à sua frente. Quando ele repara que sou eu sorri e dá um passo para trás, deixando-me passar.
Chego perto do caixão, e olho para ela uma última vez, relembro cada parte do seu rosto e peço para não me esquecer para o resto da minha vida. Curvo-me para dar-lhe dar um beijo na testa e com um "Adeus" baixinho, me afasto.
Satisfeita por tê-lo feito, de coração completamente aliviado.
Olho para o fundo, para o Arius que me fita também, e agradeço com um sorriso pequeno pelo incentivo. Se não fosse por ele não teria a força para estar aqui. Fico ao lado do meu pai enquanto os homens tapam o caixão e o carregam para o carro funerário, já cheio de flores.
— Fico feliz por ter vindo. — O meu pai agarra-me no cotovelo e conduz-me com a multidão, atrás do caixão.
— A sério? Era um pouco difícil de vir com uma agulha espetada no pescoço. Ainda bem que vim. — Com um movimento brusco tiro o meu braço da sua mão, e me afasto, misturo-me com a multidão em direção à saída e não olho mais para trás. Não quero mais saber dele, não quero fica mais nervosa por causa dele.
Sinto uma mão prensar nas minhas costas, por instinto olho para o lado para encontrar o Arius, olhando em frente, concentrado, parece preocupado.
Fazemos o caminho até à saída, e enquanto todos se juntam para ver o carro da funerária se distanciar para o cemitério e depois o acompanhar, desaparecemos e andamos para o quarto que reservei para recolher as malas e sair para ir para casa.
Sinto que algo muito pesado me caiu em cima, que algo me está prensando no peito não me deixando respirar, que acabei de correr uma maratona. Estou esgotada.
Nenhum deles me perturba, sabem que não me encontro no melhor estado.
Ter que lidar com a partida da minha mãe, com a personalidade e exigências do meu pai, mais o ataque e agora o Kaydon no fim me deixou completamente exausta. Não sei o que fazer, ou pensar.
— Arius.— Chamo a sua atenção da estrada para mim, ele assente com cabeça, dizendo me para avançar. — Porque o Kaydon me convidou para um jantar? O que ele queria?
— Queria que eu reagisse. — Ele olha para trás, onde o Bo se encontra, encostado à janela, dormindo. — É um evento que temos entre nós. Humanos não estão incluídos.
— E porque ele me queria incluir?
— Porque não ia estar na parte dos garfos e das facas.
— O quê? — Tenho que levantar a voz porque a sua escolha de palavras me confunde, o que ele quer dizer com isso? O que eles fazem nesse tal evento? São todos monstros juntos?
— Ele queria ameaçar-nos. Não importa, você não vai.
— E o Bo?
— Também não vai. — Ele bufa, frustrado com as minhas perguntas. O que esperava? Que ficasse calada sobre tudo isto? Não é assim tão fácil aceitar e calar. — É muito novo para isso.
— Esses seus segredos estão começando a irritar-me.— Ele olha para mim de sobrancelha levantada, acho que não estava esperando que estivesse com pouca paciência, o que é estranho depois do que passei nestes dias. Neste momento só quero me enrolar numa bola e ficar assim até ao verão. — Se ele me ameaçou também, e conhece o meu pai, eu devia saber mais do que sei.
— Lace, eu também estou tentando descobrir.
— Mas o que sabe, não me diz. Qual é a sua relação com o Kaydon? Eu vi como ficou assustado com as palavras dele, você me deixou ir com ele. O que vocês fazem nesse tal evento? Nem me diz o que você é.
— Precisa de um rótulo? — Claro que ia ignorar as perguntas anteriores.
— Preciso de informações. Não sei do que ele é capaz ou porque está tão perto da minha família, preciso de saber me defender.
— Eu sou a sua defesa. Não precisa de mais nada.
— Eu também não sei do que você é capaz. — O olhar vira outra vez para mim, as minhas palavras apanham-no de surpresa. Mas é verdade não é? Não quis dizer que ele me poria em perigo, o que quero dizer é que se ele não me dá informações como o poderei conhecer?
Ele abre a boca algumas vezes, ouço-o inspirar como se estivesse pronto para falar, mas depois nada sai. Uns sólidos dez minutos se passam de suspiros.
— Eu nunca te magoaria. — A voz que lhe sai pela boca é tão fraca que mal a ouço.
O que ele diz ataca-me como uma lança no peito, a maneira como o diz é que me magoa mais. É isso que pensa que eu disse? Que ele me podia magoar? Aqueles olhos azuis param em mim, e mesmo que seja por uns segundos, sinto que me estou enterrando até ao fundo, que algo me está sufocando.
— O que eu quero dizer é que você não se deixa conhecer.
— Conheço você há muito pouco tempo e já sabe mais de mim do que qualquer pessoa.
— Só... tenta confiar em mim. Eu não vou contar nada a ninguém, só quero saber mais para não me magoar. Se ele me ameaçar de novo, pelo menos vou saber quando ele o fizer, porque naquele momento fiquei às aranhas e você sabia exatamente do que ele estava falando. Se formos a ver, eu não sei nada sobre você.
— Se souber, não vai gostar.
— Você sempre me protegeu, mesmo que possa fazer as coisas que faz não te considero uma má pessoa. — Ele solta ar pelo nariz.
Sorri um pouco mas parece triste, tem assim uma ideia tão má do que é? Todas as vezes que o vi magoar alguém foi para me proteger, não posso dizer que ele é mau por magoar quem me ia fazer mal.
— Acho que esta conversa não teve bons resultados.
— Porquê?
— Porque o que acabou de dizer só me fez querer mostrar menos. — O meu sangue começa a ferver, é como dizer que tudo o que falei até agora foi em vão. Pedi-lhe para que se abrisse um pouco mais a mim e ele responde desta maneira? É como me mandar à merda.
Decido não lhe dirigir mais a palavra, porque acho que se falasse não ia dizer coisa boa.
Como é que ele pode dizer que é uma pessoa má quando só mostrou ser o contrário? Porque não gostaria dele se o conhecesse melhor? Ele se vê mesmo assim ou está apenas fingindo para eu não saber o que ele realmente é?
Quem é ele afinal?
Aiii a nossa primeira discussão kkk
O que acham que o Kaydon tem planeado? Acham que a Lace devia ir ao tal jantar? kkk
Espero que tenham gostado! Não se esqueçam de deixar um voto para apoiar :)
Até ao próximo <3
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