O Esconderijo

Pergunto-me o que devo fazer, ou sequer o que pensar. Não quero pensar em mim senão ainda fico mais confusa, mas se pensar nos outros só fico mais desesperada.

Como é que vou sair daqui, para onde vou? Se for para casa o que pode acontecer?

Pensar que a minha vida pode estar risco é tão ridículo, estava bem há uns dias, quando pensava que tinha apenas problemas familiares e financeiros, nunca pensei ver tanto sangue, nunca pensei estar pensando em fugir de pessoas que me querem morta.

Aquele rapaz que conheci no restaurante, que na altura pensei ser o meu salvador, quando aquele homem me atacou.

A pessoa que me fez sentar e que me deixou ficar no restaurante até fecharem é completamente diferente daquela que apareceu na frente da minha casa. Como é que as pessoas podem parecer tão simpáticas mas serem tão podres por dentro?

Como é que este mundo estava tão normal e agora parece tão assustador? Porque é que tenho que ser eu?

Acho que o que mais aterroriza sou eu mesma.

O que aconteceria se eu não tivesse conhecido o Kaydon ou o Arius, o que poderia ter feito sem querer se me enervasse demasiado como fiz ao bocado?

Poderia ter morto alguém? Como ia descobrir que sou diferente? Acho que só ia saber quando a merda já tivesse feita.

O que vai acontecer com eles?

Com o Arius, que perdeu a casa por minha causa, ou o pequeno Bo que não devia crescer com medo ou com a preocupação de fugir, da Heli que é a mais inocente aqui, fui eu que a trouxe para esta confusão, que a pus em perigo.

Pergunto-me onde é que ela está, e se devia estar preocupada com o Kaydon chegar a ela, não seria a primeira vez.

Decido que o próximo passo é saber onde é que ela está. Meto-me em pé num salto e peço por um celular para poder ligar-lhe.

Após uns toques ela atende, com um tom de preocupação que me diz que sabe o que se passou, percebo que é apenas um pressentimento que ela tem quando fica em choque quando lhe conto.

Algo lhe disse que se tinha passado alguma coisa mesmo antes de lhe ligar, aquela garota tem um sexto sentido certeiro.

Começam as perguntas que me deixam ainda mais exausta do que já estou, felizmente ela não estava em casa e não viu nada, não sei como adivinhou que tinha de sair de casa com a avó, mas sei que foi uma sorte imensa não a ter lá.

Ele ainda podia ganhar ideias e tentar magoá-la como fez com o Bo.

Peço-lhe múltiplas vezes para que não venha ter comigo porque não quero que ela me veja assim alarmada nem veja como o Arius está, também não sei se estarei aqui por muito mais tempo.

Então quando ela promete que vai levar a avó para um hotel por uns dias, eu prometo-lhe que lhe dou uma morada definitiva para que venha comprovar que realmente estou bem.

Só aviso que não será para já, mas que quando tiver informações que lhe comunico.

Como é que ela ainda se preocupa comigo e ainda me trata bem depois de tudo o que descobriu e depois do que a fiz passar. Ela já deve estar tão traumatizada e eu só estou a aumentar isso, ela deve viver com medo, e eu ainda faço pior e digo-lhe para sair de casa.

Obviamente não falo do que fiz aos homens para poder escapar, porque não consigo sequer explicar como o fiz e porque não quero que ela pense que sou um monstro pior do que ela já imagina.

- Para onde vamos? - Pergunto olhando para o céu que começa a escurecer, logo será noite, e nós não temos sítio para onde ir. Se realmente o Kaydon sabe que esta casa existe então não deve tardar para ele juntar os pontos e perceber que o Arius está aqui.

- Tenho um sítio em mente.- Arius responde, tentando parecer determinado, mas a sua aparência nega tudo o que ele quer passar, tem os cabelos azuis colados à testa, e as suas mãos tremem.

Acho que ele tem que descansar o máximo possível, tenho medo que tenha algum colapso, não imagino o quanto aquilo deve doer.

A ferida parece feia, aquele Sin conseguiu magoá-lo muito. Pessoas habituadas à sua habilidade, violentos, com o intuito de matar. E aqui estou eu sendo perseguida por algo que não sei nem metade, sem informações, sem compreensão sobre o que sou e o que posso fazer, e tenho que sofrer.

O tio dele não parece reagir à sua vontade de sair de lá e ir para sabe se lá onde. Sinto uma pontada de raiva para com o homem, é óbvio que magoou o Arius no passado, e por muito que fique grata por nos ter acolhido, fico irritada por não insistir em pelo menos mais umas horas para que aquele rapaz deitado no sofá consiga descansar.

Mas, mesmo com vontade de falar, não o faço.

Não vou pedir-lhe absolutamente nada, se ele não se importa que o sobrinho que não consegue sequer andar saia de sua casa, então não vou pedir que estenda a sua hospitalidade.

São horas de jantar e mesmo que ele não se ofereça, vou ao frigorifico só para confirmar se há comida. Encontro algumas cervejas e garrafas de água, mais nada. Sabia que não devíamos estar aqui, mais vale sair agora e não voltar, nunca mais.

Pelos olhares do Arius, acho que ele partilha do mesmo sentimento.

Quando as ruas já estão escuras e o trânsito é pouco, saímos de sua casa. Eu e o Bo segurando o Arius o melhor que conseguimos para o levar para o carro.

Agradeço ao seu tio, por muito que me custe.

E apenas quando chego ao carro e olho para trás é que reparo que ele ainda se encontra na porta, diria que podia estar ali só para nos ver partir, mas vejo no seu olhar arrependimento. Há algo ali que quer dizer ou fazer mas não o faz, talvez por demasiado orgulho.

Mas vejo-o, apenas por uns momentos antes de entrar de novo em casa e percebo que ele não queria que fossemos, quer saber como é que o Arius está e para onde vai. Mas não se atreve a falar.

- Espera! - Grita de dentro de casa antes de eu entrar no carro. Mete a cabeça pela porta e acena-me para que me aproxime.

Enquanto os rapazes esperam eu vou ter com ele, e vejo um homem completamente diferente.

Nao sei se é porque o Arius não está a ver mas ele mudou a postura, corre de um lado para o outro, não parece tão tenso.

Tenho duas sacas grandes aos pés, e fico a observá-lo andar para o quarto, depois para a cozinha, depois para o banheiro. Em pouco minutos tenho roupa, garrafas de água, um pacote de bolachas e por ultimo três garrafas de limpeza para móveis e chão acompanhadas com vários panos. Tem mais equipamentos de limpeza do que comida nesta casa.

- Obrigada.

Ele abana os ombros, parece ter medo de falar.

- Ele vai querer isso.- Aponta para as garrafas de desinfetante, acho que notou nos olhares que lhe estava a fazer, percebeu o quanto achei estranho. - Precisando...- Ele arrasta as palavras e acho que se arrepende mal as diz.

"Precisando de alguma coisa, digam."

Foi o que ouvi na minha cabeça, que ele se queria oferecer como ajuda mas não sabe bem se deve.

Engraçado como ele deixou cair o escudo quando o Arius não está por perto. Pego nas duas sacas e volto para o carro onde sou mais uma vez obrigada a conduzir através de direções que o Arius me dá, que supostamente demorará meia hora para chegar.

O caminho fica cada vez mais estreito e mais escuro à medida que chegamos ao nosso destino, estamos longe de civilização, perfeito para quem se quer esconder.

A certo ponto saímos da estrada, entramos num caminho de terra por campos agrícolas até entrar numa floresta que me faz lembrar os campos de campismo onde acampava em pequena.

Uma pequena cabana se ergue à nossa frente, apenas com os faróis do carro a iluminando parece vinda de um filme de terror. Quase consigo ver o assassino mascarado por entre as árvores.

- Temos mesmo que ficar aqui? - O Bo pergunta exatamente aquilo que estava pensando, e com o mesmo tom que eu usaria. Como se isto fosse uma grande loucura.

- À luz do dia parece melhor.- O Arius brinca e leva com dois olhares aterrorizados, meu e do Bo. - Foi o único que pensei que desse para ficar uns dias. Vinha muito aqui em criança.

- Para o meio da floresta.- Ele confirma com a cabeça, e um pequeno sorriso lhe invade os lábios, parece ter boas memórias.

O pensamento de um pequeno vir para este sítio sozinho dá-me arrepios, não tinha quem tomasse conta dele? Não tinha quem se preocupasse com o seu bem-estar?

Enquanto ajudo o Arius a sair do carro o pequeno Bo carrega os sacos para a casa, de lanterna na mão que por sorte ele tinha no carro, de peito cheio, pronto para nos proteger.

Vejo o quão amedrontado está só por abrir a porta mas mesmo assim, fá-lo. A porta range quando é aberta, consigo ver o pó voando através da luz da lanterna, já não vem aqui há muito tempo.

Como é que o Arius descobriu isto?

Estou com o seu braço pelo meu ombro, tentando carregá-lo até lá, quando ele me para.

Está a observar o Bo enquanto este abre a pequena janela perto da porta, já sabe o que o irmão precisa. A cabana parece antiga, com alguns detalhes de madeira, mas está coberta de pedra.

Deve ter muitos, muitos anos, a chaminé já está um pouco destruída.

Quando o Bo aparece de novo cá fora diz-nos para entrar, o espaço é minúsculo, com o que parece ter sido uma cozinha em frente à entrada com armários pintados de branco já gasto, uma mesa redonda e ao fundo uma cama com a cabeça de madeira esculpida em espirais.

O cheiro a pó é terrível e faz-me comichão ao nariz, mas é o que temos. Sei que sou sortuda quando vejo que o tio do Arius nos deixou uns cobertores para cobrir aquele colchão fino e escuro.

- Conhecia as pessoas que viviam aqui, davam-me comida de vez em quando. - O Arius responde-me à pergunta que tanto queria que saísse da minha boca.

Mesmo com o seu tio ele passava fome?

Será que sim, ou eles só lhe davam comida porque ele estava perto e eram amigáveis? Me pergunto o que ele sofreu, o que teve que passar para sobreviver sabendo que tinha outras... necessidades.

- Como sabia que ia estar abandonado? - Ajudo-o a se deitar na cama quando o Bo cobre o colchão com um cobertor fino. Vamos ter que dormir todos juntos de novo, mais uma noite de pontapés do Bo.

- Se lembra do bebé que conheci? - Ele olha para mim, e depois para Bo, que molha os panos nos líquidos que o tio dele lhe mandou e começa a limpar sem ninguém ter que lhe dizer, sei que quer deixar o irmão confortável. Entendo o que ele quer dizer, não quer que falemos do que passou à sua frente. - As pessoas que viviam aqui é que me levaram a ela. Mais tarde voltei aqui e já não estavam.

Ele quis voltar aqui para confrontar quem o raptou?

Eu nem imagino passar por uma coisa dessas, pequeno, indefeso, sendo levado para um sítio desconhecido ainda por cima para ver um monstro se alimentar de você.

Correr, assustado e mutilado, sem saber o que fazer, sem ninguém para cuidar dele.

Quando noto já estou agarrada a ele, não me lembro como vim parar aos seus braços nem quando comecei a chorar. Só consigo imaginar um miúdo pequeno de cabelo ruivo sendo levado para longe, sabendo que não é normal, e mesmo assim sendo ferido.

Por isso é que ele não sorri, por isso é que é tão protetor, por isso guarda tudo para si, já passou por demasiado.

Ele fica surpreso com o meu avanço, mas eu só sei que o quero confortar, como ele já fez comigo no passado.

Rastejei pela cama até me agarrar a ele, pousei a minha cabeça na curva do seu pescoço, mesmo que seja para esconder a vergonha que agora tenho, também sei que é neste lugar que me sinto segura.

Tenho ainda mais certeza disso quando sinto os seus braços à minha volta e o ouço rir baixinho. Os seus dedos passam-me pelo cabelo, acho que não sabe o que fazer ao ouvir-me soluçar por causa do choro.

- Nada mais te vai acontecer. - Deixo sair a meio dos soluços, não quero que ele passe pelo mesmo medo, mas parece que o meto sempre em situações em que tem que o sentir. É por minha causa que está com a perna neste estado, é sempre por minha causa.- Agora que sabemos o que consegue fazer, eles nem se vão aproximar. - Afasto-me para poder olhar para aquele lindo sorriso.

Ele está tão cansado, consigo senti-lo. A sua exaustão vê-se ao longe, mas mesmo assim sorri para mim, e eu fico tão grata pelo seu sorriso. Quase que consigo esquecer tudo isto só por olhar para ele.

- Você é a minha arma secreta. - Recebo um beijo na testa, que me diz que não devo estar preocupada com absolutamente nada, que estamos bem e que tudo se irá resolver.

E, embora não acredite, deixo que aquele beijo me acalme, apenas um bocadinho.

Passamos os dias seguintes nos habituando ao que parece uma vida nova, a ferida do Arius está quinhentas vezes melhor que antes, eu tinha razão, a sua cura é diferente dos humanos, já só tem uma cicatriz onde devia ser uma abertura feia que demoraria semanas a fechar.

Mal achou que conseguia se levantar a primeira coisa que fez foi pegar no esfregão, o Bo fez o seu melhor mas para o Arius, ninguém limpa melhor que ele. O que o deixar mais confortável, eu aprovo.

Deixou a pequena casa a brilhar em algumas horas, compramos o que precisamos numa mercearia não muito longe daqui, mesmo assim tenho que ir de carro para ir buscar comida e outras coisas que precisamos. Felizmente temos água do poço para beber e para nos lavarmos.

De vez em quando, tenho um sentimento de alívio, de confortabilidade.

Se conseguir me esquecer durante uns segundos do mundo real, parece realmente que somos uma família vivendo normalmente.

Gosto do Arius que estou conhecendo quando somos apenas os três aqui, sem problemas atrás de nós, gosto de cuidar do Bo e de lhe ensinar coisas, gosto de ter alguém para me preocupar.

Eles são como a minha família, uma que realmente se preocupa comigo, completamente diferente da minha família verdadeira que só soube deixar traumas.

Estou sentada cá fora, num dos degraus que dão à nossa barraca, vendo os dois rapazes discutindo sobre quem consegue acertar no alvo que marcaram numa árvore, o Bo está ficando cada vez melhor atirando, eu, nem por isso.

O Arius tem me tentado ensinar a crescer o osso, a senti-los, a manipulá-los, mas não sou como o Bo.

Nunca percebi o quanto doía, nunca percebi que conseguia senti-los todos pelo corpo.

Não sabia o que a concentração me levaria. Quando senti o osso sair me pela mão foi a coisa mais desconfortável que alguma vez senti, como se um membro meu se torcesse, como se algo estivesse lá e não devia.

Quando saiu pela pequena ferida que causou, me surpreendi, algo que nunca pensei que faria, mas que realmente consigo fazer. Mas estou treinando, é isso que importa, talvez um dia me consiga defender.

Quanto ao que fiz ao Kaydon, ao Sin e aos seus homem nunca mais consegui replicar isso, acho que porque não tentei realmente como disse ao Arius que faria, eu não o quero magoar, não o quero com dor e saber que provavelmente posso fazer isso me aterroriza.

Por isso digo que tento, mas não o faço. Talvez um dia tenha coragem, por agora, fico me pelos básicos.

Vejo os dois brincando, rindo e me sinto completa.

É nestes momentos, em que fico parada, olhando para o Arius explicando o que o Bo tem que fazer, corrigindo os seus movimentos, gesticulando para que ele preste atenção que me apercebo do quanto gosto dele.

E acho que cada vez gosto mais, sei o quanto estava confusa mas estar aqui me fez perceber que realmente gosto dele, demasiado para o meu gosto.

Há vezes em que não consigo deixar de olhar, como agora, o sorriso deixa-lhe o rosto completamente diferente, tão perfeito, tão brilhante. Os seus olhos tão claros parecem que me penetram a alma, o cabelo que começa a ter as raízes ruivas e a cada dia fica mais adorável, até as suas roupas largas são fofas.

Não consigo parar de desejar ouvir o seu riso, a sua voz grave e de a ouvir dirigir-se a mim.

Parece que virei a maluca apaixonada nestes dias. Não sei o que se passa.

Nunca fui assim, nunca fui tão dedicada, nunca estive tão fixada como estou agora, por ele.

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Verdade publiquei dois capítulos, porque estes são sem muita ação kkk
Fiz isto porque a seguir a este os capítulos ficam loucos hahaha podem acreditar, vai virar loucura.

Espero que tenham gostado, até ao próximo !

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