Noite de Traumas

Não sei como o viram ou sabiam que alguém estava no fundo do beco escuro, mas fizeram como eu, ligaram a lanterna e encontraram-no. 

Agora que o beco está iluminado consigo ver claramente como se fosse dia, o corpo parece ainda mais assustador, e o caminho que o seu sangue faz até as minhas roupas dá-me vontade de gritar, sinto-me encharcada, mas faço um esforço para não olhar para a minha figura. 

Encolho-me o mais que consigo para que as outras pessoas não me vejam, a única coisa que consigo ver é o cadáver e o Arius de joelhos à sua frente. As suas mãos estão cobertas do sangue, e reparo agora que ele pintou o rosto também. 

Molhou a boca inteira com o sangue, está como o Bo, cada vez mais assustador.

Por apenas uns segundos ele faz contacto visual comigo, devo parecer simplesmente apavorada neste momento, aqueles olhos azuis claros combinando com a pele pálida e a boca coberta de sangue fá-lo parecer um monstro terrível que está prestes a saltar-me para cima. 

Mas a sua expressão suaviza, é como se ele me quisesse acalmar, como se me dissesse "vai correr tudo bem".

— Não me acredito, Arius? — Eles o conhecem? Então porque tem tanto medo?

— Oh, o chefe vai ficar passado. — A outra voz constata, só para depois cair na gargalhada, eles parecem estar fazendo troça dele. Não acham terrível terem um corpo à sua frente? Ou o facto de ele estar coberto de sangue?

Ouço um deles correr para trás e, passados uns segundos, os olhos do Arius arregalam. O que está a ver?

— Não me acreditei no que me disseram, tive que ver com os meus próprios olhos. — A voz, eu reconheço-a, é me definitivamente familiar, onde é que ja a ouvi antes? — Você fez isso sozinho? — O Arius abana com a cabeça lentamente, acho que tem medo do que lhe vai acontecer. — Você conhece as regras, e não é de as quebrar. O que significa isto?

— O Bo tinha fome, eu ia levar mais para ele. — Ele está tentando defender o Bo? Eu consigo ver o medo nos seus olhos, e mesmo assim, ainda tenta dizer que foi ele que o matou? — Não me aguentei.

— Mas nós somos família Arius, não é justo você comer e os seus irmãos não.

— Não voltará a acontecer. Eu prometo. — A mão que ele levanta quando ergue um dos joelhos está tremendo.

Os momentos seguintes são como tortura, tanto para ele como para mim. O silêncio é óbvio, quem quer que aquele seja vai fazer algo que não deve, ele está pensando no que deve fazer com o Arius. 

Que regras são essas? É um grupo de canibais? 

Não... não podem ser humanos se ficarem todos como o Bo, será que ficam todos doentes como ele ficou? O Arius tem que me contar tudo, porque isto está se a tornar demasiado para a minha cabeça aguentar.

Umas mãos chegam-me à visão, elas agarram o colarinho do casaco de couro preto do Arius e o puxam para cima, ele já não está tocando com os pés no chão, está prensado contra a parede do lado oposto ao meu.

E eu finalmente percebo porque reconheci a voz, o corpo enorme e forte, o cabelo loiro, a voz autoritária.

Agora já sei porque o Arius me avisou sobre ele.

O Kaydon não é uma boa pessoa.

Só consigo ver o seu corpo de trás, erguendo o Arius com as mãos contra a parede.

— Como posso confiar em você agora? Era suposto sermos irmãos e afinal anda roubando da minha boca.

— Foi a primeira e a última vez. — Ele fala com dificuldade. Será que o vai matar? Eu não posso deixar isso acontecer, mas não sei como combater com alguém forte como ele. Para além disso não sei que mais é que ele pode fazer. 

O que significa ser como ele? Eles falam como se fossem um grupo e falam com normalidade sobre carne, sobre um corpo morto, como se fosse uma coisa normal.

— Será que te devo dar uma segunda oportunidade? — O Arius abana com a cabeça afirmativamente. — Não se irá repetir? — Outro abanar de cabeça, desta vez negando.

E o corpo dele cai no chão com um barulho alto.

O Kaydon larga-o e afasta-se dele friamente sem dizer mais uma palavra.

A luz desaparece e o grupo sai do beco para continuar com a sua vida.

— Podia ter corrido muito pior. — Sussurra para si mesmo, e solta o ar dos pulmões como se se estivesse a rir. Ele mexe-se e fica próximo de mim, procura pelo meu corpo e agarra nas minhas mãos. — Vamos sair daqui. — Manda enquanto me puxa para que me levante. Passa a mão pelas minhas costas e agarra-me o outro braço, puxando me para si. Bato contra o seu peito e desta vez não me importo minimamente com a proximidade. Sinto que a qualquer momento vou desmaiar por isso ele já estar me segurando é uma coisa boa, aliás, acho que é por isso que me segura, porque devo parecer tão frágil neste momento. — Eu é que ia morrendo e você é que está tremendo. — Comenta quando espreita para a rua principal já iluminada.

Estico-me para chegar à sua mão que não me agarra, e a levanto-a para que ambos possamos ver os seus dedos tremendo.

— Você já me pode contar o que aconteceu? — Pergunto enquanto nos apressamos rua acima para poder chegar a sua casa.

— Não é algo que você deva saber.

— Como não devo saber, Arius? O Bo disse que o matou, vocês falam de morte como quem fala de batatas e o Kaydon quase te matou. — Não acho que me vá responder à pergunta, fica pensativo, com os olhos colados na sua frente, concentrado no que está pensando. — Porque estamos indo para sua casa, não vai fazer nada quanto ao corpo?

— Vou dar umas roupas para você se trocar, depois vou te levar a casa e trato do corpo. — Concordo, porque definitivamente não quero ir sozinha para casa depois do que vi hoje, muito menos a esta hora da noite. Não que falte muito para amanhecer.

Quando chegamos a casa dele novamente, vejo que o Bo continua na mesma posição fetal. Encolhido e completamente roxo.

— Não posso falar sobre tudo isto, desculpa. — A sua voz soa atrás de mim depois de ter sumido por uns minutos e entrega-me umas calças elásticas e uma sweatshirt. Ele agacha-se em frente ao Bo, passa-lhe a mão pelos cabelos loiros e encara-me.— Mas ficaria mais descansada se te fosse visitar com o Bo? — A pergunta me deixa confusa, mas surpreendentemente mais aliviada. — Ele vai ficar bem, só vai demorar um tempo a recuperar.

— Você faria isso? — Ele confirma com um sorriso fechado. — Ficaria melhor sim.

— Só quero uma coisa em troca. — O  Arius se levanta e caminha até ao banheiro, liga a água e começa a lavar as mãos.— Você não pode falar sobre o que aconteceu.

— Certo. — Acompanho-o até à porta do banheiro e me encosto ao batente.

— E outra coisa. — Ele esfrega a cara e a água avermelhada desce-lhe pelo queixo e para dentro da t-shirt que usa. O casaco preto de couro sujo já se encontra no chão.— Não se pode assustar quando o vir, ok?

— O que vai acontecer com ele?

— Nada de mal.— O Arius curva-se sobre o lavatório e começa a esfregar melhor o sangue que tem na cara. — Só quero que fique preparada. — Olho para o pequeno deitado no sofá e pergunto-me o que lhe vai acontecer e porque é que ele não me diz nada. A sensação de frustração está me tomando por completo. Sinto-me tão perdida, cheia de perguntas que ninguém me quer responder. — Agora é melhor ir se trocar, é quase de manhã, e eu tenho que trocar de roupa, e acho que é muito cedo para me ver nu. — Como é que ele consegue levar isto tão bem ao ponto de fazer gracinhas. Ainda o olho confusa, como alguém consegue se habituar a isto ao ponto de ficar normal quando se trata de alguém morto? Ou sangue?

Só quando ele ameaça tirar a t-shirt é que lhe dou as costas e entro no quarto que ele indicou para me trocar.

Identifico imediatamente como sendo o quarto do Bo, tem uma cama pequena com lençóis com naves espaciais e meia dúzia de brinquedos espalhados pelo chão.

Retiro as roupas que uso que estão encharcadas de sangue e suor e troco para as roupas confortáveis que o Arius me deu, são largas e quentes, e não têm sangue, por isso posso considerar uma mudança positiva. 

Meto as minhas roupas sujas dentro do saco que ele me deu e finalmente saio do quarto, quando saio o Arius já não está no banheiro, por isso aproveito para lavar a cara, as mãos e os braços e todo o sítio onde possa ter vestígios de sangue. O lavatório está impecavelmente limpo antes de eu o usar, depois daquele sangue como conseguiu apanhar cada restinho até ficar perfeito é um mistério.

— Vamos? — O Arius fala atrás de mim, já de roupa trocada, só não tão confortável como eu, usa uns jeans escuros e uma camisa branca. Faço um pequeno carinho pelo cabelo do Bo, com medo de que qualquer movimento brusco o possa magoar e faço o meu caminho para a porta.

— Vai a algum lado?

— Já é quase de manhã, tenho que ir trabalhar.

— Oh, o que faz?

— Não interessa. — E eu sei que com aquelas palavras nunca saberei.

Fazemos o caminho para a minha casa e eu sinto que finalmente o pesadelo está acabando, que o que aconteceu para trás vai desaparecer, que me vou esquecer mal passar pelo portão de casa.

Quando vejo a casa ao longe dou por mim suspirando alto, como um rugido de alívio. Foi apenas uma noite, mas foi a noite mais longa da minha vida inteira.

— Espero saber de você em breve, Arius. Por favor me deixe saber como o Bo está. — Peço quando chegamos finalmente ao portão, nunca pensei ficar tão feliz por chegar a casa.

— Não vou fugir, se é isso que está pensando. — Sinceramente tenho medo que ele desapareça da face da terra porque eu vi o que vi, mas ele sabe que não direi nada, mesmo que talvez devesse. 

Ele não tem culpa que o garoto se tivesse colocado nesses sarilhos, mesmo que não entenda como ele o fez, também não sei os motivos do Bo por isso não quero acusá-lo de nada, para além disso ele me escondeu daquele brutamontes, me pergunto o que teria acontecido se ele me tivesse visto. 

Acabaria como o homem? Morta num beco?

— Já vai trabalhar? — A voz feminina aparece do nada, e depois percebo que estava tão concentrada no rosto de Arius que não reparei que a Heli tinha aberto o portão.— De quem são essas roupas, não passou a noite em casa? — Começa por fazer quinhentas perguntas e só depois é que olha para o lado e nota no Arius. Um sorriso se forma lentamente na boca da Heli, está pensando coisas que não deve.

— Obrigada por me trazer a casa, Arius. Adeus! — Não espero por uma resposta, já estou empurrando a Heli para dentro para parar com o interrogatório que mais tarde ou mais cedo ia passar para ele.

— Está namorando o rapaz do restaurante? A sério?

— Não estou namorando ninguém Heli, cala a boca.

— Então onde dormiu? — A minha boca trava, o que posso dizer? Não posso dizer que um pequeno me acordou a meio da noite para me mostrar o homem que matou e que passei o resto da noite coberta em sangue e morta de medo. — Não faz mal se estiver namorando, Lace, ele é bonito, exótico! Eu dou permissão.— Fala com um sorriso estampado na cara, mal ela sabe o que passei.

— Eu conto mais logo ok? — Talvez nesse tempo consiga inventar alguma história. — Não estou me sentindo muito bem, acho que vou passar o dia na cama, e você não pode chegar atrasada. — Ela olha para o relógio e de volta para mim com os olhos arregalados, sabia que estava atrasada.

— Você não escapa dessa, menina! Quero saber tudo! — Afasto-me dela aos poucos e abano com a mão para que ela vá embora.

Finalmente quando se vai embora posso entrar de novo em casa e deitar na minha rica cama.

Quero passar o dia aqui deitada, desejando que essa noite tivesse sido apenas um pesadelo terrível.  


Aqui estou eu mais uma vez !
Essa garota deve estar tão cansada, ao que ela passou eu não aguentaria kkk

Que acharam do capítulo? Espero que tenham gostado!

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Até ao próximo !

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