Ideias Erradas

Estou de volta à sala, o sofá-cama ainda está aberto, mas o Bo não está aqui. Ainda não é de manhã, estaria tudo escuro se não fosse a televisão ligada.

Será que eles foram embora a meio da noite?

Porque iriam embora se o Bo estava na condição que estava?

Ando lentamente pela sala, chamando baixinho por eles, não obtendo resposta.

De repente ouço um barulho, vem da cozinha, à frente. E basta-me controlar a visão por uns segundos para notar na figura no meio do escuro. O coração quase que me salta da boca, dou um passo atrás e bato com o joelho no colchão, caindo sentada no sofá.

A figura aproxima-se e eu quero berrar, e mesmo com a boca aberta a voz não quer sair. Recuo no colchão até ao meio, não tendo forças para mais.

A sombra fica visível, os pés descalços, as calças, a barriga, o peito, os ombros largos e finalmente o seu rosto. A expressão séria, os olhos azuis claros que são o que brilham mais nesta divisão, e o cabelo azul descontrolado.

Só para de andar até mim quando chega ao colchão, para onde sobe e desliza até mim.

Porque é que eu não consigo falar? Sinto que não estou controlando o meu corpo, a respiração está louca assim como os meus batimentos cardíacos.

Ele fica por cima de mim, sem dizer uma única palavra, e eu só consigo ficar hipnotizada pelos seus olhos, aqueles olhos que me dizem que me querem.

Aposto que ele consegue ouvir o meu coração. A sua mão toca na minha bochecha e a acaricia com cuidado, como se eu fosse a coisa mais delicada do mundo, e a partir desse momento só consigo olhar para os seus lábios cheios, tão rosados. Como é que alguém consegue ter um rosto tão bonito? Como é que alguém pode fazer o coração falhar batidas com apenas um olhar?

A mão desliza para o meu pescoço, pelo meu ombro e braço, até a minha cintura. O aperto me faz suspirar.

O que está acontecendo? Porque estou reagindo assim? Porque não digo nada contra?

Ele aproxima-se cada vez mais, os seus olhos postos nos meus lábios, e eu não quero falar nunca mais. Só quero senti-lo contra mim. Dou por mim desejando os seus lábios contra os meus, as suas mãos na minha pele.

Levanto as mãos para poder tocar no seu corpo, na sua face, no seu cabelo, porque quero ouvi-lo suspirar, quero ver o que consigo fazê-lo sentir.

— Lace? — Ele chama, raspando nos meus lábios. — Lace? — A voz agora soa fora da sua boca, como se alguém estivesse lá fora e estivesse chamando por mim.

Quero ignorá-la, quero continuar o que estou fazendo.

Então fecho os olhos.

E é a pior coisa que podia ter feito.

Porque acordo.

Abro os olhos assustada pela voz que me chama, e estou de volta na minha cama, com o sol brilhando lá fora.

— Lace. — A voz chama a minha atenção de novo. E finalmente percebo quem me acordou, exatamente o mesmo garoto com quem estava sonhando. O seu cabelo está completamente bagunçado, deve ter acordado agora, tem uma mancha roxa por baixo dos olhos, não deve ter dormido muito bem. Está ainda mais adorável do que no sonho. É aí que me lembro que sonhei com ele, e o que senti, e o que quis, e sinto todo o meu rosto aquecer. — Está tudo bem? — Os cantos da sua boca sobem, como se ele estivesse controlando o riso. Meu Deus, eu devo estar toda vermelha. É por isso que ele quer rir? — Desculpe por te acordar, eu tenho que ir trabalhar. Você pode ficar com o Bo? Ele queixou-se muito durante a noite.

— Claro que fico. Não se preocupe. — Ele abana a cabeça agradecendo e sai do quarto.

O que esse rapaz me está fazendo se já estou sonhando com ele?

Não vou conseguir dormir mais de qualquer maneira, mais vale me levantar também.

— Estão decentes? — Grito para a sala.

— Sim! — O Arius responde e eu saio do meu quarto para poder ir ao banheiro lavar a cara. Quando saio o Arius está vestido e pronto para sair. — Você não se importa de ficar de olho nele?

— Claro que não. Pode ir. — Digo com um sorriso. — Não vai comer nada?

— Eu como em casa. — Ele quer dizer que ainda vai a casa se trocar? Não deve querer usar as roupas do dia anterior. Ele agita a mão na minha direção se despedindo e sai pela porta.

E somos só eu e o Bo, que ressona espalhado na cama. A sala está gelada por causa das janelas abertas, e mesmo assim ele atirou os cobertores para o chão. Faço questão de fechar as janelas agora que ele saiu, o garoto ainda pode apanhar um resfriado.

Onde é que será que ele foi? Será que ele não me disse o que fazia porque tem a ver com o que ele é? Que tipo de trabalho poderia ter?

Pergunto-me o que mais ele consegue fazer para além de fazer crescer ossos, o que ele tem a mais de diferente?

Empurro um pouco o seu corpo e deito-me ao seu lado para poder ver televisão. Analiso o seu rosto e vejo que os cortes estão quase desaparecendo, será que é uma das coisas diferentes? Ele pode curar mais rápido? Uma pessoa normal não curaria numa noite. Arranco-lhe a ligadura da testa e pego na sua mão, para ver como os estão os cortes, e também esses estão curando a uma velocidade elevada.

Engraçado como as feridas curaram, mas o hematoma na sua barriga ainda está do mesmo tamanho.

Feridas diferentes, suponho.

Acho que o incomodo quando lhe mexo na barriga e ele vira-se para mim, uma perna passa por cima da minha e a outra agarra-me a cintura. Põe o peso quase todo em cima de mim.

Tenho que pensar que não é um garoto normal, não me devo sentir mal ao seu lado, ou desconfortável, ele não sabe nem entende, uma criança faria isto sem problema.

E mesmo assim sinto-me desconfortável quando olho para o seu corpo grande e o rosto envelhecido. Contra o que a minha cabeça diz deixo-o estar, ele está dormindo, não o fez de propósito. Então continuo a ver televisão, até os olhos pesarem e adormecer de novo.

— Lace! O que está fazendo? — Acordo num pulo.

— O que é que eu fiz? O que fiz? — Falo sem entender, olhando para todo o lado. O Bo ainda está dormindo ao meu lado, então vejo a Heli parada em frente à televisão.

— Quem é esse?

E eu entendo porque é que ela está com essa cara, o garoto está me agarrando como se a sua vida dependesse disso. Ela está com a ideia errada.

— Heli, o que está fazendo aqui? — Sinto o Bo remexendo na cama, até abrir os olhos e se assustar com a garota deitando fumo pelos ouvidos.

— Vim ver se está bem, você saiu sem explicar nada. Agora estou a ver a explicação agarrada a você.

— Eu sou o Bo.— Ele fala coçando o olho, gemendo de sono como uma criança.

— Vocês dormiram juntos?

— Eu dormi com o meu irmão. — Ele responde à pergunta demasiado agressiva da Heli, porque é que ela está assim?

— Eles dormiram aqui porque o Bo sentiu-se mal e a minha casa estava mais perto, Heli. Nada aconteceu. Eu só vim para aqui quando o Arius saiu e acabei adormecendo. — Ela solta um "hmm" desconfiado.

— Então ele é irmão do garoto de cabelo azul? — Abano com a cabeça, e recebo outro "hmm". — Vocês querem almoçar lá em cima? — E o Bo abana a cabeça excessivamente, acho que a ideia de comer o deixou contente. — Espero por vocês lá então. — Fala sempre com uma voz desconfiada, de olhos semicerrados. O que ela está pensando? Teve uma reação tão boa quando pensou que o Arius era o meu namorado, mas quando vê o Bo agarrado a mim já fica pensando que é uma mãe explosiva.

— A senhora estava muito chateada. — Ele sussurra como se a Heli conseguisse ouvir através da porta.

— Ela tem a nossa idade Bo, não é uma senhora. — Eu não sei se me devo referir a ele como o adulto que parece ser, se devo continuar a aceitar que ele estava nos seus 6 anos há uma semana atrás. Mas o que eu digo, ao contrário do que pensava, não o ofende, não o deixa triste. Acho que não tem a noção do que perdeu, por isso não leva muito a peito. Deve aceitar que essa é a sua nova realidade, e eu acho que ele gosta de ser grande, de poder fazer e entender coisas que antes não conseguia. — Você quer ir comer? — Ele concorda e eu obrigo-o a levantar.

Deixo-o no banheiro sozinho, mesmo que sinta que ele não deve ser deixado sem acompanhante. Do outro lado da porta fico falando com ele para ter a certeza que está bem e deixo-o tomar um banho, deixei tudo preparado para não se preocupar com nada. A roupa de um lado, as toalhas pousadas ao seu lado e outras no chão para que não escorregue.

Ele não se importa com as minhas preocupações e diz que o irmão também tem feito isso com ele.

Imagino o que o Arius tem feito com ele nestes dias, tem que aprender a comportar-se como um adulto ou o seu cérebro agora mais amadurecido consegue perceber conceitos mais complexos? Ele está a educá-lo rapidamente ou ele consegue adaptar-se bem?

É algo que me confunde bastante.

Isto deve acontecer muitas vezes certo? Se o Bo não se conseguiu controlar e fez o que fez, e o Arius explicou que em pequenos são assim mesmo, então se um se descontrolar e comer demais pode acontecer isto. Será que faz parte do que ele é, a cabeça se adaptar ou ele continua a ser um pequeno que terá que ser educado?

Tenho que fazer mais destas perguntas técnicas ao Arius.

Entretanto vou ter todo o cuidado possível com o Bo.

Quando ele sai do banheiro já está pronto, e agora é a minha vez. Tomo o banho mais rápido do mundo, obrigando-o a falar comigo da sala de 2 em 2 minutos, só para confirmar que não fugiu.

— Já íamos começar a comer! — A Heli grita quando abro a porta de sua casa.

— É mentira, só ficou agora pronto. — A avó de Heli, Maira, responde com um sorriso, e uma grande travessa nas mãos.

— Cheira tão bem! — O Bo exclama atrás de mim e passa-me à frente para se sentar na mesa sem pedir nenhuma permissão para entrar ou se apresentar.

— Esse é o Bo.— Respondo ao olhar confuso das duas, Maira parece completamente encantada com o garoto que já está pegando num prato para se servir. Sei o quanto adora quando as pessoas ficam felizes com os seus pratos, ela vai gostar muito dele. Quanto a Heli, já é uma história diferente.

— Então, Bo. — Maira começa, faz um gesto para que nos sentemos e começa a servir-nos. — Ouvi dizer que se sentiu mal. — Ele leva uma garfada à boca da lasanha caseira e solta um som de satisfeito. A partir daí come ainda mais rápido. Ele abana com a cabeça ao que ela diz, de boca cheia, concentrado na comida.

— Desculpe, ele ainda não tinha comido. Mas já está melhor. — E o garoto abana de novo com a cabeça enquanto leva outra garfada à boca, e outra e outra.

— Posso comer mais? — É a única coisa que soube dizer, pedir por mais comida. Ele espera pacientemente por uma resposta afirmativa e aí já pode se levantar e pôr mais no prato.

— O seu irmão não cozinha para você? — A pergunta sai me pela boca, sinto que estou sendo demasiado intrometida e mesmo assim a boca falou. A sua reação à comida caseira é porque está com fome ou por não costuma comer comida assim?

— Oh, o mano cozinha muito bem. — E a resposta quase que me faz sorrir, sei outra coisa sobre ele e mais uma vez, encontro-me não esperando isso dele. — Ele cozinha e eu limpo. Mas sempre que começo a limpar ele me para e faz ele. — Ele sorri com a memória do irmão, acho que não aguenta quando alguém limpa por ele.

Mantemos a conversa amigável e aos poucos o Bo vai ganhando o coração da avó e da neta. Acho que é a sua inocência, ele não vê os olhares desconfiados da Heli, não vê maldade, ele só quer se divertir. Então conversa sem problemas, e faz o que quer sem pensar. Vê-se que não tem nem um pouco de maldade nele.

E mesmo assim já tirou vidas.

Isso contradiz imediatamente os meus pensamentos.

Como um garoto assim se pode transformar num monstro que mata?

Os pensamentos que o incluem sempre me confundem, eu adoro-o, adoro a sua personalidade e sinto que tenho o dever de o proteger e ao mesmo tempo... tenho medo.

É possível sentir essas duas coisas ao mesmo tempo?

Eu vejo aquele sorriso tão adorável, mas também vejo aquela boca cheia de sangue daquela noite.

— Você tem um trem?! — O grito que se espalha pela casa faz-me voltar à realidade, o miúdo parece demasiado animado, com um sorriso de orelha a orelha.

A Heli se dirige ao quarto e chega com uma caixa grande, quando a abre peças de uma pista e carruagens começam a cair no chão e o Bo vai perdendo a cabeça. Acho que nunca o vi tão entusiasmado.

Ele monta tudo com uma rapidez incrível, sempre de sorriso intacto, e quando está tudo pronto pega no comando telecomandado e brinca com o trem fazendo-o andar pela pista.

É isso que o entretém durante a tarde inteira, de vez em quando vai me chamando para me mostrar como aquilo funciona, mas de resto fica calado, se divertindo, ignorando a nossa existência.

E eu fico conversando com elas as duas, esperando uma pergunta desconfortável a qualquer momento. Como por exemplo: Porque é que ele é assim? Ele é assim tão imaturo? Porque está brincando? Porque se comporta como uma criança?

Mas ela não chega.

Será que a Heli está esperando que estejamos apenas as duas para fazer essas perguntas ou elas não acham estranho? Estarei com tantos complexos assim porque sei a verdade? Afinal, existem muitas pessoas como ele no mundo.

— Lace? — Ele me chama de repente, tirando a atenção do seu novo brinquedo pela primeira vez numa hora. — O mano chegou. — Confusa levanto-me, e olho à volta.

Como ele sabe?

Não tem um celular para ele o avisar, e eu não o vejo, também não tocou na campainha. Por alguma razão estupida confio nele e dirijo-me à porta, abrindo-a. E ali está ele, no fundo das escadas, olhando para mim.

Veste outras roupas, uma camisa preta larga e enorme que lhe passa as coxas e uns jeans. Já não está como de manhã, no seu estado adoravelmente bagunçado, está arranjado. Pergunto-me o que foi fazer no seu tal trabalho.

— Diga para ele entrar. — Maira grita da sala, e quando olho de novo para o Arius ele está abanando a cabeça. Certo, já foi um problema entrar na minha casa, é melhor não forçar.

— Ele está com pressa Maira, anda Bo. — Ele obedece, vindo ter comigo apenas depois de meter tudo direitinho de novo na caixa e entregar à Heli.

— Pode ficar com ele, Bo.— A Heli fala com um sorriso e os olhos do garoto brilham com alegria. Ele se abraça à caixa e dá um beijo na bochecha delas as duas antes de sair e correr escada abaixo.

Eu sigo-o e acompanho-os até ao portão enquanto o Bo mostra o novo brinquedo ao irmão.

— Estou a ver que ele se divertiu. — O Arius constata ao ver a boa disposição do Bo, que só falta pular de alegria.

— E você já trabalhou tudo? — Outra pergunta mal pensada, parece que não tenho filtro hoje. Ele sim, leva-a sério. A expressão muda, é como se a pergunta o deixasse chateado. Mas no fim, em vez de provocar de volta, apenas assente com a cabeça. Ele sabe que eu não sei o que faz, por isso não precisa de responder. — Então, até à próxima. Quando quiser pode vir passar cá o dia ok? — Ele abre um sorriso enorme, acho que gostou de estar comigo. Pelo menos isso.

Por alguma razão que eu não entendo estou ansiosa para ouvir a sua despedida, afinal, ele passou a noite em minha casa, eu fiquei com o seu irmão, e descobri mais um pouco sobre eles. Isso equivale a que tipo de despedida? Voltaremos a estranhos? Vou ter que lutar pela sua companhia de novo? Vou poder estar com eles outra vez?

Ele abre a boca, e a porcaria do meu celular é que interrompe, porque é que esta coisa está com som?

Tiro o celular do bolso e olho para tela.

— Quem é? — O Arius pergunta curioso.

— Não conheço o número. — E a minha voz falha. Acho que a cabeça começou a especular coisas más e a voz reagiu com ela.

Porque estou com um mau pressentimento?

Mas porquê? Quem poderia ser?

Não tenho chance de atender porque o Arius me arranca o celular da mão e atende ele mesmo.

— Sim? — A sua sobrancelha levanta. — Sim, é o seu celular. Posso saber porque ligou? — E segue-se uma grande pausa em que a sua expressão vai mudando de segundo em segundo. No final ele se despede e fica olhando para a tela e depois para mim.

— O que se passa? — Falo um pouco mais alto do que queria, mas não aguento o suspense.

— Lace...— Começa, e a sua voz arrasta. O que ele está tentando dizer? — Era o seu pai.

O quê? Não falo com o meu pai há anos, como ele poderia ter o meu número?

— Não pode ser, Arius.— Só pode ser uma piada, alguém tentando fazer uma partida, não pode ser ele, porque me contactaria depois de tanto tempo? Como ele arranjaria o meu número? — O que se passa? — A quietude do Arius está me irritando, como se ele estivesse evitando dizer algo que não devia. Estou prestes a saltar-lhe para cima quando finalmente decide falar.

— A sua mãe faleceu. 

Aqui estou eu com mais um capítulo ! Não tenho postado, eu sei, estou na altura de exames !
Mas espero que tenham gostado do capítulo, sou capaz de postar outro esta semana, se quiserem 😊
Até ao próximo ❤

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