Flores

— Pensava que queria o homem longe.— Começo, referindo-me ao homem ruivo.

— Foi a primeira pessoa que me veio à cabeça que sabia das nossas... condições.— Ele termina com uma careta estranha.

— Há uns tempos estava o ameaçando, agora estamos em casa dele.— Ele fecha os olhos com força e respira fundo.

— Ele é meu tio.— Faz um sinal para que me aproxime com o braço, mas eu nego, continuando sentada. — Eu cresci aqui.— Olha por toda a sala, como se se lembrasse de alguma coisa. Presumo que não tenha sido uma infância muito famosa, pela maneira como a sua relação com o tio terminou.

— Ele me avisou sobre você, te chamou de monstro. Podemos confiar nele? — Ele não responde, não porque acho que esteja a esconder alguma coisa, mas porque realmente não sabe. Eu vi a repulsa no seu tio quando falou comigo, quando pensava que eu era uma humana normal, então porque o deixou entrar e cuidou dele?

— Por agora.— Finalmente responde, depois de o fuzilar com o olhar, procurando por uma resposta, algo que me acalme.

— Como pode estar tão seguro?

— Porque o seu maior medo continuo a ser eu.— A normalidade na sua voz fere-me, como se estivesse habituado a ser o maior medo da pessoa com quem cresceu. Gostaria de poder saber o que se passou entre os dois, saber se ele realmente sofreu como parece. Para saber se devia estar com o punho no nariz daquele homem neste momento.

Às vezes esqueço-me do que o Arius consegue fazer, ver os medos das pessoas. No passado ele me disse que eu não temia o meu pai, ou que pelo menos tinha um medo maior que ele. Mas nunca cheguei a perguntar qual era, e não sei se me deva arrepender disso. Ele vê uma parte de mim que eu ainda não entendo, gostava de ver neste momento se ele tem medo de mim, do que posso vir a fazer, ou se teve medo quando me viu naquela floresta e percebeu que não era humana.

Ele é tão especial e eu sinto que às vezes se faz de menor que os outros. Quando poder jogar com os medos de alguém pode ser tão vantajoso. Pergunto-me se ele já o usou para conseguir o que queria.

— Lace, eu não sei o que fazer agora. — Admite, e eu sinto o medo na sua voz, e o meu corpo reage a ele imediatamente. Fico ainda mais aterrorizada.— Só podemos fugir, eu não sei o que ele fará com você.

— Porque é que ele me queria levar? — Outra vez silêncio, o seu peito sobe e desce várias vezes até fazer aquele gesto de novo, pedindo para que chegue mais perto. Ele insiste quando nego outra vez.

O pequeno sorriso que ele me dá parte-me o coração, a pele tão branca da perda de sangue, os olhinhos brilhantes, suando de dor, e mesmo assim consegue sorrir para mim, para me fazer sentir mais segura. O meu coração bate mais rápido, não sei se de dor por o fazer passar por isto, se porque aquela me imagem me alegra e me aquece.

Rastejo até a sua beira e sento-me no lado do sofá. Ele pega na minha mão e me puxa para mais perto. Passa os dedos com vestígios de sangue seco pelo meu cabelo, até as minhas bochechas, num carinho que definitivamente não mereço. Porque é que ele parece tão calmo mesmo quando acaba de dizer que está perdido?

— Porque você o pode magoar. Nao é um inseto insignificante que ele pode esmagar, provou ser muito mais. E isso é assustador. Como nós somos para os humanos, você é para os Bruisan. — As suas palavras saem tão suavemente que eu quase não fico alerta com elas, embora devesse.

— Então não somos iguais.— Ele abana a cabeça, negando, e a sua expressão diz-me que não é nada de especial.

— Só ouvi histórias de pessoas como você, pessoas insaciáveis, animais escondidos atrás de dinheiro e poder. — A definição, por muito que esteja disposta a ouvir e acreditar, me irrita. Só está a descrever a sua própria espécie, tirando o dinheiro. O que eles fizeram comigo naquela floresta, e com aquelas pessoas, com a Heli, isso foi monstruoso, foi caça por diversão, não por necessidade. Se eu sou um monstro, eles também o são.

— Porque é que sou diferente?

— Há muitas teorias, eu acredito que no fundo deve ser uma mutação genética qualquer. Os outros acreditavam que bastava alimentar o bebé com essa carne que ele ganharia o gosto. 

— Se bastasse isso, você teria visto muitos mais, certo? — Ele confirma com o olhar colado em alguma parte da minha camisa, atormentado pelos seus próprios pensamentos.— Você já viu um? — Parece que toquei no ponto certo, era exatamente nisso que ele estava pensando.

— Quando era pequeno.— Ele passa os dedos pela grande cicatriz que tem no peito.— Fui raptado para alimentar um desses bebés.

— Um bebé faria esses estragos todos? — Pouso a minha mão na sua, não querendo tocar nas cicatrizes por medo que não se sinta muito confortável, mas querendo estar lá para ele.

— Aquilo não era um bebé, era uma besta, um recém-nascido com mais força que eu, com mais fome que qualquer animal. Aquilo era uma coisa de outro mundo. Não sei como escapei de lá vivo. — Os seus olhos ficam vermelhos e por momentos penso que ele vai chorar, mas se aguenta.— Pensei que a tinha matado quando a vi a murchar, mas só depois de uns tempos, quando vi o que comer demais nos faz, é que percebi que não. Que tinha sido o primeiro gosto de carne. — Como uma coisa tão pequena pode ter estragado o seu peito, as garras eram de um recém-nascido com fome, as marcas que ele tem no corpo foram feitas por alguém como eu. Não consigo imaginar o seu medo, a sua confusão, a sua dor. Só sinto vontade de pedir desculpa pelo que ele passou. — Dizem que têm poderes diferentes do nossos, piores, mais macabros. Por isso maior parte deles eram ricos e poderosos.

— Arius, fui eu que...

— Sim.— Ele percebe imediatamente o que eu quero dizer. Sabe que o que aconteceu há pouco, quando os ceguei não foi ao acaso, que fui eu.— Vi como você ficou quando eles pegaram no Bo, ouvi o seu grito e no instante a seguir, deixei de ver. Acho que estava longe o suficiente para não sentir dor, porque ouvi o resto dos homens se queixando. Não sei o que consegue fazer, mas não é bonito.

O súbito orgulho de ter a chance de me defender contra o Kaydon aparece, só para desaparecer no segundo a seguir. Isso me aterroriza profundamente, o não saber o que posso fazer. Até uns dias atrás pensava que era uma humana normal, há umas horas pensava que era como o Arius e agora já não o sou? Sou algo diferente e pelos vistos mais perigoso do que os outros que conheci e me tentam magoar?

Me sinto mais perdida que nunca, não faço ideia nenhuma do que sou.

— Isto tem um nome? O que eu sou?

— Chamam-vos de Flores.

— Nome pobre para pessoas que supostamente vos caçam. — Ele dá de ombros, tentando reposicionar o corpo o melhor que pode com a perna ligada. — Temos que pensar no que fazer. — Aperto a sua mão, procurando algum tipo de conforto, ou talvez tentando passar o resto de força que tenho para ele poder melhorar e pensar num plano.

— Não podem ficar nesta casa. — O homem ruivo, que agora descubro que é o seu tio entra na sala. — Ele conhece-a.

— A única alternativa é fugir? — Pergunto sentindo como se as paredes se estivessem a mover, tentando me esmagar. Não posso, nem quero ficar o resto da minha vida fugindo por ser quem sou. Sou tudo menos uma ameaça, mal me entendo.

— Por agora, enquanto tento perceber o porquê deste aparato todo. — Olho de novo para Arius, que ganhou uma expressão curiosa.— Ele quer algo de você. Se fosse para te chamar de ameaça e te matar já o tinha feito.

O silêncio se instala, acho que todos têm demasiados pensamentos na cabeça para deixar a boca desabafar. Como gostaria de o fazer, gritar para todo o mundo me ouvir, chorar até os olhos fecharem, pontapear as paredes até partir o pé.

No final, só consigo ficar quieta, entorpecida pela minha mente. Como me tornei noutra pessoa em tão pouco tempo, tinha um emprego e estava a estudar. 

Passei de garota com as suas dificuldades, lutando para seguir em frente para um monstro que fica louca com o cheiro doce de sangue.

Em poucos dias vi morte, alimentei-me de um corpo, e mostrei ter habilidades que metem medo a qualquer um.

O que posso fazer para além disto? Se os posso seguir e o Arius acredita que feri alguns, o que mais posso fazer?

Eles tem razão, sou uma besta. Apenas uma besta.

E já devia estar morta.

Prefiro isso a descobrir o que Kaydon quer de mim, se tem coração para mandar pessoas correr pela floresta para serem caçadas, não consigo imaginar o que faria com algo que considera uma ameaça.

O que o puxa para mim? O que ele quer? Porque tanta curiosidade?

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