Família
Tenho o corpo completamente encharcado de suor, como se tivesse passado a noite com uma febre alta. Tenho a cabeça a latejar, os músculos doridos e a garganta arranhada.
Tudo me volta como flashes, aos poucos, mas cada imagem que reacende na minha mente me choca.
É como se recebesse toda a informação de uma vez e não a conseguisse perceber.
Me lembro de seguir o Kaydon pelo quintal, me lembro de o ver fugir, de gritar por ele e de o ver parar.
Sei que ficou tudo negro, que deixei de ter controlo no meu próprio corpo, deixei de raciocinar, me transformei.
Me tornei num animal.
Agora que tudo volta a mim percebo o que fiz a todas aquelas pessoas, naquela altura lembro-me de não sentir nada, de nem sequer saber que estava a ferir as pessoas à minha volta.
Nem pensei que era capaz de as magoar como magoei.
A raiva que sentia era tanta que me possuiu, aquilo que ele me injetou deixou todas as minhas preocupações e medos à flor da pele. Tudo o que sentia foi ampliado.
A raiva era enorme, a imagem do meu pai morto me atingiu de uma maneira tão grande que virei uma besta, como o Kaydon me chamou.
No momento não me importei com o Arius, nem com o meu bem estar, com a minha segurança, a minha cabeça só me dizia para o perseguir e para o matar.
Seria mesmo capaz de o matar?
Lembro-me de como o queria ver sofrer, queria-o tanto que quando o braço subiu como tivesse vida própria, eu deixei.
Senti a energia toda sair de dentro de mim, e não me lembro disso acontecer quando fiz o que fiz ao Kaydon e aos seus homens quando apareceram em frente a minha casa.
Desta vez foi algo completamente diferente, é como se fizesse parte de mim, como se a minha mente não soubesse o que sou, mas o corpo sabe. Sabe e bem, pois usou todo o poder que tinha dentro dele para ferir o Kaydon e quem estava perto.
Senti como uma onda saindo do meu corpo, não tinha cor ou forma mas tinha cheiro, como se fosse algo tóxico, como enxofre.
Soube no momento em que saiu do meu corpo que podia fazer muitos estragos. Era como mandar algo muito pesado para longe, para o entegar a outra pessoa, como enviar uma sensação muito má para quem não gosto.
Tudo dentro de mim me dizia que estava a entregar miséria, que estava a mandar tristeza e dor, que queria entregar morte e queria senti-la enquanto atingia os meus alvos.
Mesmo que a onda se tivesse distanciado eu senti quem atingiu, e a cada pessoa que tocava um peso saia de cima de mim. Sabia na altura que por pouco controlo que tivesse, estava gostando.
É isso que me faz sentir terrível, estava gostando porque foi isso que a droga que ele me introduziu no corpo queria que gostasse, ou estava gostando porque é assim que eu sou?
Sou um monstro, e sou capaz de muito mais do que pensava.
O Bo tem um dom, e o Arius também, mas o meu é simplesmente horrível. O Bo foi feito para sentir, para proteger, o Arius para conhecer, para manipular, e eu para matar, para ferir. Não sei se quero tal poder sabendo que posso sentir a raiva que senti.
Vi as pessoas se escondendo de mim, fugindo para o lado oposto, vomitando, sangrando, gritando, rastejando para se afastarem de mim. Mas na altura só queria olhar para o Kaydon, em como ele se esforçava para não gritar, em como todas as veias no seu corpo pareciam querer saltar para fora, em como ele se tentava encolher.
Sabia a dor que ele sentia e só queria infligir mais e mais. Vê-lo assim, sem controlo, foi tão bom.
Finalmente quem estava a comandar a situação era eu.
Ele tinha medo, estava assustado, queria fugir de mim, e aqui está outra coisa que me assusta em mim mesma.
Eu queria esse medo, queria alimentar-me dele, queria o corpo dessa gente toda a tremer apenas com a minha presença.
Cada vez mais me pergunto se a droga era assim tão forte, porque parecia querer cada ação. E teria continuado se não fosse o Arius.
Lembro-me de ele ter tentado se aproximar de mim, mesmo sabendo que havia riscos, ele queria fazer-me parar, queria salvar-me. E todo o pesadelo parou apenas por causa dele, porque ele se arriscou para me fazer voltar à realidade.
Foi o único que me acalmou, que tentou chegar a mim e não fugiu. Enquanto eu tentava magoar e matar, ele estava pensando em mim.
Me pergunto o que deve pensar de mim agora que me viu como sou, como verdadeiramente sou, como posso magoar, como posso fazer-lhe mal.
Deve estar assustado, mais que assustado, deve temer pela sua vida.
Abro os olhos lentamente, nem a curiosidade de saber onde estou me obriga a ser apressada, posso estar em minha casa, na casa do meu pai, na cabana da floresta, ou até no inferno, onde provavelmente devia estar.
A verdade é que não quero saber onde me encontro, quero saber onde eles estão.
Obrigo-me a sentar, mesmo que todo o corpo peça descanso imediato, acho que isto sugou toda a minha energia.
No chão, onde vários cobertores estão espalhados, encontro-os aos dois dormindo.
O Bo parece tão tranquilo, obviamente está espalhado por todos os cobertores como se fosse o seu território, uma perna aqui, um braço ali, é tudo seu. A imagem faz-me rir, está calmo, com um sorrisinho na cara, como se estivesse sonhando com coisas maravilhosas.
O Arius está o seu oposto, encolhido no seu corpo, com um braço querendo cobrir a face que expressa aflição, até quando dorme parece preocupado, não está de todo relaxado.
Às vezes solta o ar rapidamente, como se o estivesse segurando, como se o estivesse poupando para alguma coisa.
Não me lembro de como ele me tirou daquela casa, devo ter colapsado quando me conseguiu fazer parar, quando me acalmei, gastei demasiado das minhas energias.
Isso me lembra.
Levanto a camisa para examinar a minha pele, e confirmo que realmente não foi um sonho, tenho cicatrizes nas costelas, buracos grandes por onde os ossos saíram, que me ergueram, que me trasportaram para as pessoas, que as pisaram, cortaram, perfuraram. Depois encontro outra marca enorme no braço, provavelmente um ataque de alguém tão assustado quanto eu. Quanto tempo estive a dormir? Curei tão rápido.
Quantas pessoas morreram graças a mim? Tanto humanos como Bruisan.
Estas cicatrizes vão ficar aqui para sempre, me lembrando do monstro que sou, e do que fiz.
Graças ao meu pai tudo isto aconteceu, e agora ele está morto. Era para isto que ele me drogava, queria esta reação de mim? Desde pequena? Porque é que ele fazia isto comigo?
Queria enlouquecer-me, tornar-me numa arma, para atacar as pessoas que ele queria? E agora tinha a ideia de tornar os homens do Kaydon em pessoas como eu, queria mais bestas para o seu exército, porque uma louca não chega.
Ele passou a perna ao Kaydon, e pensava que ia sair bem sucedido até o Kaydon agir. Ele matou-o.
O que vou fazer agora com a minha vida?
Continuo ligada ao Kaydon, mas já não tenho ninguém para me controlar, para me manipular como o meu pai queria.
Acho que depois do que fiz ninguém me tentará chantagear, nem mesmo o Kaydon.
Odeio pensar isto, mas tenho que conversar com ele, pedir a anulação do casamento, tratar do funeral do meu pai. Porque por muito que não queira nada do meu pai, não vou deixar que a pessoa que o matou tente ficar com tudo. É meu por direito, e ele não vai ter nada.
— O Kaydon está vivo? — A pergunta sai primeiro que o raciocínio quando vejo que o Arius acordou, ele parece sonolento no início, mas depois percebendo a minha pergunta abana a cabeça.
Então ele conseguiu escapar, me pergunto onde está e se aparecerá.
O Arius passa a mão pelos olhos e se levanta com cuidado para não acordar o Bo, não parece apressado para continuar a falar, acho que dormiu mal, como pensava.
Ele caminha até mim e deita-se na cama comigo, cobre-se e aproxima o seu corpo do meu. Antes de fechar os olhos novamente noto em como estão irritados, com veias vermelhas à volta do azul. É como se tivesse alguma alergia.
— Você está bem? — Sussurro contra si e sinto um suspiro. Parece estar a dormir, mas sei que está bem atento às minhas palavras, acho que os olhos o estão a incomodar. Será que lhe doem?
Mais uma vez não me responde, fica-se por abanar a cabeça, confirmando. Bem pode dizer que está bem, mas eu sei que não é verdade.
Sentir o seu corpo contra o meu transmite-me uma calma diferente da que sentia há uns minutos atrás, aquela é apenas a sensação de segurança que saber o que posso fazer me dá, como se soubesse que mais ninguém chegará à beira do Bo ou do Arius porque eu estarei lá para os proteger.
Esta calma é completamente diferente, aquece-me o coração que antes parecia congelado, relaxa-me os músculos, leva a dor e os pensamentos torturantes embora.
Ele abraça-me com tanta força, mesmo que o seu rosto se mostre tranquilo e perto de adormecer, tem uma perna por cima da minha e me aquece o corpo. Acho que está aliviado por eu estar bem, assim como eu estou por ele.
— Foi muito assustador? — Pergunto, fechando os olhos com ele, não para o copiar ou para chamar o sono de volta, mas porque não quero ver a sua reação.
Também não a quero ouvir, mas tenho que saber como ele se sentiu, se devo me agarrar a esta sensação de calma por mais um bocado antes que me deixe para sempre.
— Muito.— Ele responde com uma voz rouca de quem acabou de acordar, e sei que é verdade porque a sua voz aperta-me o estômago de tão sofrida que parece. Fiz muitos estragos e ele viu-os a todos. — Lembras-te daquela noite que passamos juntos, antes do funeral da tua mãe? — Ele começa, com calma, fazendo pequenos carinhos nas minhas costas descobertas. As suas mãos frias causam-me arrepios, mas em vez de o repelir, fico quieta, preciso de ouvir o que ele tem a dizer.— Quando te contei sobre os medos.
— Você disse que o meu pai não era o meu maior medo. — Ele confirma, me lembro do quão assustada estava depois daquelas pessoas me perseguirem na praia, com seringas nas mãos.
O Arius chegou, como o meu grande salvador, e me tirou de lá.
Estar sozinha era a última coisa que queria, precisava de alguém ao meu lado, então quando ele se voluntariou para passar a noite comigo eu não podia ter ficado mais agradecida.
Me lembro de ele me contar que conseguia ver o medo dos outros, e me mostrou um pouco do que conseguia fazer com os ossos, coisa que antes não sabia, mas que consigo fazer também agora.
— O que aconteceu em sua casa.— Ele faz uma pausa, algo o faz parar, a sua memória talvez. Eu o marquei demasiado, se ele não consegue falar do que aconteceu, como consegue olhar para a minha cara? — Não foi a primeira vez. Era assim que ele te alimentava, só te fazia esquecer tudo depois.
— Você acha que ele me drogava sempre assim, para eu me poder alimentar?
— Ele se juntou com o Kaydon porque não tinha acesso a pessoas como eu, e precisava. Então como podia alimentar você? Drogava-te e deixava-te ir, você voltava a casa e ele te fazia esquecer tudo. — Será realmente verdade? O meu pai deixava que eu me tornasse naquilo, deixava que eu fosse caçar como um animal e chegasse a casa saciada só para depois me fazer esquecer tudo? Como podia fazer tudo isto? Levava os homens comigo? Havia pessoas na nossa casa que sabiam o que sou? Posso já ter feito coisas terríveis e não me lembro. — Eu não acho, eu tenho a certeza.
— Como pode ter tanta certeza?
— Porque as vezes em que você se transformou naquilo ainda estão aqui.— Ele aponta para a minha cabeça e depois afasta-me o cabelo da cara, como um pequeno carinho, para que acalme o meu coração acelerado.
Ele acha que o meu subconsciente ainda se lembra de tudo o que fiz? Eu não me lembro de nada.
Ele me drogou, todas aquelas vezes, para que me alimentasse. Andei eu a viver anos assustada, com medo dos meus pais, de cada ação minha, das seringas que me perseguiam e afinal o que ele me fazia era libertar o que havia em mim que eu não sabia.
Porque não contar logo? Porque guardar segredo durante este tempo todo?
Deixaram que eu vivesse stressada e que fugisse de casa por causa disso mesmo.
— O seu maior medo é você.
O meu cérebro chega lá no momento em que ele o diz.
Eu sabia, lá no fundo, o que era, o que fiz. Vivi toda a minha vida me sentindo confusa, amedrontada com todos os que me rodeavam, quando o meu maior medo era no que me podia tornar.
Tinha medo da seringa porque não sabia o que vinha aí, e porque sabia exatamente o que aí vinha.
Sou o maior monstro que conheço.
E é pena só o conhecer agora.
Como será que o Arius interpretou toda a informação que viu na minha cabeça, sabendo que tenho medo de mim mesma, ele não sabia o que era, mas sabia que tinha que estar alerta, comigo sempre debaixo do seu olho.
De certeza que sabia que algo não batia certo, e agora sabemos que realmente algo estava errado. Continuará comigo? Ou fugirá de mim?
Estou prestes a desabar, a pedir-lhe para que fique, para que não tenha medo de mim e não me deixe quando vejo uma cabeça se elevando. Tão devagar que quase assusta, quando o pequeno percebe que realmente acordei, explode de alegria.
O Bo salta para cima de nós, se esquecendo do seu próprio tamanho, abraça-me e enche-me de beijos.
Está nos céus, tão contente que não contém o riso.
Abraço-o de volta, e sorrio até me doerem as bochechas.
Ele gosta de mim, ele está feliz por eu estar bem, está bem por me ter ao seu lado. Não sabe ainda o que sou e o que posso fazer. Mas quero-o tanto ter por perto que não o deixo ir, que continuo a abraçá-lo o tempo que ele quiser.
Enquanto ele não me larga, eu não o largarei.
Não consigo controlar as lágrimas, e o riso que antes me saía da boca com a surpresa do seu ataque de mimos se tornam soluços do choro.
O pequeno nota e agarra-me na face, preocupado, me perguntando se me magoou quando saltou para cima de nós.
— Por favor, não me deixem. Eu sei que sou má, mas não tenham medo de mim.— Imploro, tapando a cara com as mãos, desesperada.
Não quero que vão a lado nenhum, sei que posso ser diferente deles, e perdi o controlo quando senti o sabor e o cheiro do sangue mas eu não sou realmente má, eu não quero matar pessoas inocentes, eu não queria realmente magoar aquelas pessoas.
E lá está aquela vozinha me dizendo que sim, queria. Que me senti forte pela primeira vez na vida, que não tive medo de absolutamente nada, que me senti a criatura mais poderosa do mundo, sabendo o que podia causar.
Eu descobri que eles são o mais próximo de família que tenho, a minha mãe faleceu, a Heli me traiu, o meu pai morreu.
Tornei-me orfã, e eles são a única coisa que posso dizer que amo. Eu os amo. Com todo o meu coração. E perderei a vontade de viver se eles me deixarem, sei que sim.
A este ponto mal consigo respirar, as lágrimas não param de cair, e tenho demasiada vergonha de os olhar nos olhos, só quero fugir, me esconder.
Mas o meu corpo não o faz, aliás, só faz o contrário, e se agarra aos tecidos das suas roupas, com medo que corram para longe de mim.
Não lhes quero fazer mal, nunca. Protegeria um e outro com a minha vida, sangraria por eles, mataria por eles. Seria um monstro, mas para os salvar.
Uns braços me envolvem com força por cima, o Bo. E outros me abraçam de lado, o Arius. Eles apertam-me com força, esborrachando os nossos corpos com força.
— Nunca.— Por momentos penso que foi o Arius que falou, com a sua voz rouca, séria, paternal.
Mas depois percebo que foi o Bo, o meu inocente e pequeno Bo, falando como um adulto, com toda a seriedade do mundo.
Falou com o coração, não como criança que ainda é, mas como adulto que aparenta ser.
Vai se lá saber como ele cresceu em tão pouco tempo, foi obrigado a isso, é óbvio. Mas esta criança adulta está no meu coração, é dos meus, a minha família.
E para ele sou o mesmo, não uma besta assustadora, apenas a Lace, a menina que lhe ofereceu batatas, que o protegeu quando ele se descontrolou, que tratou dele e o protegeu quando pôde, e faria tudo de novo.
Foi ele que me trouxe para este mundo, e eu não podia estar mais grata por ele ter entrado na minha vida.
Tenho um menino com cabelo castanho e madeixa azul, um pequeno grande, com um sorriso adorável e uma personalidade alegre que me ama.
Tenho um homem, de cabelo azulado, agora preto, de olhos azuis como o céu, o meu protetor, o meu salvador, a pessoa mais atenciosa que conheço, e ele me ama.
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