Descontrolo

Quando me sento no carro começo a hiperventilar, o que fiz àquelas pessoas? 

Como é que o fiz? Como é que vou tratar do Arius? 

Levo o carro até a sua beira, quando chego o Kaydon e o Sin já não estão aqui, os efeitos passam assim tão rápido? Alguns dos seus homens ainda se arrastam pelas ruas, estão assustados, à espera que alguém os leve de lá, com medo que os magoe de novo. 

 Será que o Arius pensa o mesmo de mim? Terá medo de mim? Eu vi o quanto estava aterrorizado quando descobriu que o rapaz era como ele, até eu ficaria. 

Todos eles pensam que estão no topo da cadeia alimentar, eu mesma ouvi o Kaydon falar de humanos como se fossem nada, e ninguém faria uma festa para os matar se não pensasse assim.

Descobrir que eu me alimentei de alguém como ele... como é que se deve ter sentido? 

Deve pensar que sou um monstro.

Com a ajuda do Bo, que não para de soluçar, consigo deitar o Arius no banco de trás, sei que controla a vontade de gritar de dor, mal a deve suportar mas faz-se forte, não sei se para não atrair muita atenção se para não deixar o Bo mais nervoso do que já está. 

Como é que alguém consegue ser assim?

Mesmo desesperado consegue pensar primeiro nos outros, ele descobriu isto sobre mim e com o Kaydon lá fora ainda me protegeu, sei o quanto estava assustado mas protegeu-me, e agora com um buraco na perna ainda controla os seus berros.

Ao sentar-me no lugar do condutor percebo duas coisas, que fiquei imediatamente coberta do seu sangue, e que, infelizmente, não sei para onde ir.

— Precisamos de ir a um hospital.— Decido começar a andar com o carro mesmo sem saber o destino, procuro por todo o lado algum sinal que me diga a direção para o hospital quando ouço o Arius se queixar no banco de trás. 

 — Nada de hospitais.

— Eu não tenho como cuidar de você. — A minha voz sai mais sofrida do que desejo, neste momento sou eu que lhe tenho que dar força, não ele a mim. Não posso soar tão atingida como estou agora. 

— Não posso ir a um hospital, não posso ser tratado por eles. Temos que estancar o sangue, isto vai curar.

— Esse buraco enorme vai curar? Como? Arius você parece um fantasma de tão pálido que está, precisa de ser tratado por alguém com experiência.

— Vou te dizer a morada, vai para lá.— Encosto por uns segundos e coloco a morada que ele me diz no celular e faço o caminho o mais rápido que consigo. 

O trajeto leva apenas 10 minutos até começar a subir ruas cada vez mais íngremes, nota-se que é uma zona mais pobre, umas trinta casas minúsculas, velhas. Estão coladas, e a população daqui parece ser envelhecida. Um braço se estica e aparece no meu campo de visão, o dedo aponta para a casa mais longe.

— Já consegue ver? — Estaciono para finalmente olhar para eles, o Bo, que passou o tempo todo coçando os olhos, agarrando o meu braço cada chance que tinha para ver se eu ainda estava ali com ele, está inspecionando o corpo inteiro, com a ideia que alguma peça lhe possa faltar. 

Os olhos de Arius fitam-me, parece preocupado, aquele azul parece sobressair ainda mais agora que a cor lhe falta da cara. Nao sei explicar mas acho que esta preocupação que me está a passar não é sobre a sua ferida mas sobre mim. 

Saio do carro e peço ao Bo que me ajude a carregar o Arius até aquela casa, bato na porta com força. Tenho que parar com estes gemidos de dor, não aguento mais vê-lo sofrer, especialmente sabendo que a culpa é minha. 

Dou um passo atrás e a força que faço para manter o Arius de pé quase desaparece. O homem ruivo que o Arius ameaçou, e que me intimidou ao portão da minha casa está aqui, à nossa frente.

Ele tem apenas alguns segundos para decidir se nos vai ajudar, e parece usá-los para olhar somente para o Arius, como se quisesse ler-lhe os pensamentos. 

 Espero um comentário sarcástico, que nos mande embora, ou talvez um chuto só para reforçar a dor. 

Espero algo de mau, mas não chega, ele atira-se de cabeça para o Arius, o pegando ao colo, atirando-o para o ombro como um saco de batatas. 

Deita-o no sofá pequeno e rasga-lhe as calças com o buraco enorme que o Sin lhe fez.

As roupas que o Arius está usando já estão encharcadas de sangue, mas ao homem não lhe faz diferença, ele vai buscar um balde com água e atira-o sobre a ferida, numa maneira exagerada de limpar a ferida, e pelo que vejo a ferida está muito mais pequena do que eu tinha visto antes. 

É possível que esteja curando mais rápido que os humanos?

O homem entrega-me uma toalha, diz-me para pressionar na ferida que parece não parar de deitar sangue, e foge para o que me parece ser o banheiro, se calhar vai coser a ferida ou só desinfetá-la. 

Ele obviamente sabe o que ele é, avisou-me do que era, disse-me para fugir, então deve saber como tratar dele.

Será que são mesmo parentes?

Aos poucos vou deixando de sentir o tecido da toalha em cima da ferida, e a sinto completamente molhada. 

E é só aí que sinto o cheiro.

O cheiro é me familiar, é como se tivessem borrifado perfume diretamente na minha narina, é tão intenso que me faz tossir. 

Olho pela casa inteira, me perguntando o que é aquele perfume. Sinto-o me enchendo os pulmões por inteiro, sinto-o me dando força nas pernas, faz o meu coração acelerar.

É tão doce, é como se quisesse que o seguisse. 

Chego o nariz perto do sofá mas só sinto o cheiro a mofo, e quando levo as costas da mão para limpar o suor é que percebo. 

É o sangue. 

Como é que não me tinha apercebido antes? 

— Lace! — Ouço alguém me chamar, quando encontro os olhos azuis do Arius já estou com os dedos na boca. Só percebi que senti falta deste sabor agora que o provei pela segunda vez, é a melhor coisa do mundo, como é que algo pode ser tão delicioso, tão doce. Como é que existe algo que me deixa a cabeça relaxada e o coração mais acelerado do que nunca? Sinto o meu corpo vibrar, pedir por mais. E os meus olhos continuam colados nos seus. Está assustado, está com medo de mim. — Afasta-te.— Não sei se o diz baixo, se o diz alto, ou se não faz barulho nenhum, só percebo o que diz porque o leio nos seus lábios.

Acho que os meus ouvidos taparam, o meu corpo se concentrou apenas no sabor, na necessidade de mais. A minha boca começa a fazer barulhos estranhos, como um animal sofrendo. E o olho paira do azul para o vermelho na sua perna, para a mão que ainda pressiona na sua ferida, na mão coberta por sangue. 

E eu quero atacar. Quero usar os meus dentes para devorar o seu corpo, quero atirar-me para cima dele, espetar as minhas unhas na sua carne, trincar cada pedacinho de si. Ele faz um esforço para se aproximar de mim e leva a sua mão à minha bochecha, obrigando os nossos olhares a se encontrarem de novo. A sua pele está fria, ao contrário da minha, sinto que estou perto da loucura, apetece-me gritar, apetece-me atacar. 

— Eu sei que você nunca me magoaria.— Desta vez ouço-o claramente, completamente concentrada nele. O meu corpo aperta, estou sofrendo porque quero mais, eu sei disso. Todos os músculos doem, sabem que a oportunidade está mesmo ali e eu não estou aproveitando como aproveitei com o garoto de cabelo verde. Mas ele não é o Arius, e não me está olhando com medo, eu nao quero que ele tenha medo de mim. — Bo.

Basta ele o chamar para uns braços me enlaçarem a cintura e me puxarem para trás, para longe dele, para longe do sangue. Sou deitada no chão, enquanto o Bo me tapa os olhos com as mãos. Ele se mete por cima de mim, e pousa a sua testa na minha. 

 — Se não vir, não existe. Não há cheiro, não há sabor, não há fome.— Sussurra. É isto que o Arius lhe faz quando ele tem fome, quando entra em contacto com sangue, será que lhe ensinou quando ele matou aquelas pessoas e cresceu da noite para o dia? 

A sua respiração contra a minha diz-me que está desesperado, que sabe como eu me estou sentindo e por isso está assustado e quer me controlar, porque sabe como é difícil. 

Eu só estou aprendendo isso agora, tive uma experiência como ele em que não me contive, mas agora tenho que me recompor, não posso magoar o Arius, nunca. 

Obrigo-me a ficar naquela posição com ele até ter a certeza que estou em controlo de mim mesma, ouço o homem tratando do Arius, ouço-o gemer de dor, eles não falam comigo, nem o Arius nem o homem pergunta o que se passa. E eu quero ajudar, mas não me atrevo a mexer, não quero me tornar num monstro, não quero que o Arius sofra, não quero viver com o que for que ia acontecer se ele não me segurasse. 

Ele vai se afastar de mim, eu sei. Agora sabe o que fiz, e agora me viu assim com ele, já não vai querer saber de mim, vai fugir com o Bo. Nunca mais os vou ver. 

Sinceramente era isso que faria. Sou um monstro. Sou uma besta, como o Kaydon me chamou. 

O silêncio prolonga-se, e quando decido afastar o Bo para poder ver, o Arius já está com uma ligadura à volta da perna, conseguiu tirar a camisola encharcada de sangue, está de tronco nu e com uma toalha sobre as pernas, por cima das calças. 

Pergunto-me se o fez para esconder o sangue de mim, para que não o visse. O problema é que eu sei que ele está lá. Fico parada sentada no meio da sala, onde estava deitada, sem me querer aproximar, com medo que o mesmo aconteça. 

O Arius parece exausto, ainda ter que lidar com uma maluca pela sua carne deve ser tortura. Então prefiro manter me onde estou, longe o suficiente para nao sentir aquele cheiro novamente. 

— Por favor não se afaste de mim, eu não te queria magoar, ou ao Bo. — Agarro-me ás pernas dobradas e evito contacto visual com o rapaz deitado no sofá, não quero que ele tenha medo de mim, não quero que pense que sou uma pessoa má. A verdade é que me afeiçoei a eles os dois demasiado para poder simplesmente sair por aquela porta, preciso deles na minha vida, não para me proteger, não para que me ajudem a adaptar-me, mas porque gosto deles, porque quero mantê-los bem. 

— Nunca pensei o contrário.— Responde com a cabeça tombada para trás, tão pálido, claramente sofrendo, de olhos colados no teto. Depois vira a cabeça para o lado, apanhando o meu olhar fixado no seu rosto, queria aproveitar os segundos enquanto ele não reparava para poder observá-lo, para ver se realmente há algum resto de medo ou arrependimento na sua face. — Sei como é difícil, agora imagina uma criança tentando controlar essa fome. Entende porque não quero ter filhos? — Abano com a cabeça lentamente, porque está tocando neste assunto? Porque me quer lembrar do que aconteceu com o Bo? 

Se calhar para tentar entendê-lo, ou talvez desculpá-lo por me ter puxado para um beco onde se encontrava o corpo que matou. Mas teria o culpado até sentir aquela sede.

É algo que não dá para ignorar, porque todo o corpo pede.

O homem ruivo entra novamente na sala e pela primeira vez parece aliviado, como se o seu serviço tivesse acabado, mais calmo. Nota na distância que mantenho dos dois rapazes na sala, e decide pegar no Bo pelo braço e arrastá-lo para longe. 

Usa palavras gentis e um tom de voz carinhoso, é estranho ver isso de um homem que supostamente o Arius odeia e depois pediu ajuda. Acho que viu que precisávamos de um tempo para falar, e levou o pequeno para longe. 

Posso aproveitar estes momentos para lhe fazer as perguntas que não me deixam a cabeça.

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