Criando Laços
E pensar que há minutos estava fugindo deles e agora estou a convidá-los para entrar em minha casa.
Rezo para que a Heli não esteja perto da porta ou da janela e deixo que o Arius passe pelo portão, entretanto já escureceu bastante, acho que ela não nos vai ver.
— Espera só um pouco. — Abro a porta e corro para o sofá, duvido que o Bo se sinta bem o suficiente para ir para a casa, para além disso já é tarde, felizmente o sofá que tenho é sofá-cama. Abro rapidamente o colchão e finalmente me viro para trás para dizer ao Arius que o deite lá. — Arius? — Chamo por ele.
— Estou aqui. — Quando espreito para a porta percebo que ele ainda nem entrou.
— Eu disse para esperar porque ia abrir o sofá, mas podia ter entrado. — Ele abana com a cabeça lentamente, olhando para dentro da casa como se aqui vivesse o bicho papão.— O que se passa? — O olhar vagueia até mim, e aquele olhar assustador de há minutos atrás desaparece para um olhar inocente.
— Eu posso deixá-lo com você?
— Não quer ficar com ele?
— Tem razão. — Ele salta para endireitar o corpo do Bo nas suas costas e faz uma careta, deve estar exausto. Então porque não entra?
— Arius? O que tem de errado?
— Eu não me sinto confortável na sua casa. É pequena. — O que ele está querendo dizer?
— A sua também é.— Respondo ofendida. O que importa se a casa é pequena ou não?
— Mas eu estou habituado à minha. — Estou começando a ficar com raiva do rapaz, quando o Bo se começa a mexer. Aproximo-me deles e ajudo o Bo a descer das costas do Arius, ele mal se aguenta das pernas, mas consigo passar o seu braço pelos meus ombros e o trazer até ao sofá, onde o deito com cuidado.
— Você está bem? Quer alguma coisa? — Pergunto quando ele começa a tentar falar, continua de olhos fechados e vai fazendo caretas de dor. Ele agarra na minha mão e da-lhe um aperto.
— Ele não consegue estar em espaços fechados durante muito tempo. — Bo fala, referindo-se a Arius.— Como não conhece a sua casa fica assim.
— Se abrir as janelas fica mais calmo? — Pergunto ao Bo que assente com a cabeça. Levanto-me e abro todas as janelas perto da sala, e finalmente olho para o Arius, que me observa atentamente. — Melhor? Quando se sentir preparado pode entrar, eu vou buscar o kit de primeiros socorros.
Decido dar-lhe tempo para se acostumar, enquanto vou até ao banheiro para pegar as coisas necessárias para tratar do Bo. Quando chego novamente a sala ele já passou a porta e a fechou, infelizmente ainda não chegou ao Bo, ficou encostado à janela aberta. Melhor do que ficar lá fora.
Sento-me ao lado do Bo e começo por desinfetar as feridas que tem no rosto e nas mãos. É muito difícil evitar lembrar-me daquele pequenito mesmo quando tenho um homem à frente, aquele rosto é tão inocente quanto antes. Aqueles olhinhos castanhos escuros, e o cabelo castanho claro que lhe cai pela testa não o fazem parecer um adulto, é como se ainda o visse como uma criança, mesmo que ele seja muito maior que eu agora.
Como é que isto foi acontecer? Como ele pode ter crescido até este ponto? Como é que este pode ser o Bo?
— Obrigada por me ter protegido. — Digo quando os nossos olhos se encontram por um momento. Ele fecha-os novamente quando passo o álcool pela sua testa. Levanto-lhe a camisa e vejo a barriga dele pisada, também tem algumas marcas nos braços, como é que aquele homem lhe fez tantos estragos?
Ele sorri abertamente, parece verdadeiramente feliz.
— Agora estou forte para o fazer. — Confessa. Está contente por ter crescido? Como serão os seus pensamentos?
Quando fala mesmo que ouça a voz grave tem um tom infantil, é uma coisa a que ele tem que se adaptar?
— Não se meta em brigas, mesmo que seja forte para o fazer. — Ele abana a cabeça, como um menino obediente e aquele sorriso ainda se torna mais bonito. Passo uma ligadura na mão mais aleijada e outra à volta da cabeça, aplico alguma pomada no lugar onde o homem bateu para que não inche tanto. — Agora descansa, amanhã vais te sentir melhor.
— Vamos dormir aqui? — Bo pergunta, abrindo os olhos repentinamente. O Arius parece apreensivo.— Lace. — O Bo parece decidir por ele. — Precisamos de uns lençóis lavados, uma roupa para ele usar enquanto dormir e uma cruzeta.
— Posso tratar disso. — Não sei o porquê de tanta exigência, mas faço o que ele pede. Felizmente tenho os lençóis acabados de sair da máquina de secar. Do quarto pego na roupa que o Arius me emprestou naquela noite em que o Bo ficou mal e eu estava encharcada de sangue, mas tenho que pegar na camisola mais larga que tenho e nuns calções elásticos porque não tenho mais roupa de rapaz. Só falta a cruzeta e posso ir ter com eles. — Os lençóis saíram agora da máquina. — Quando chego à sala o Bo está sentado no sofá-cama. — O que está fazendo aí sentado? Deita. — Quando chego mais perto é que entendo que ele está passando uma ligadura que estava na caixa pelos braços do sofá, depois passa as mãos pelo álcool.
— Se não fizer isso ele não vem. Vamos fazer a cama. — Ele tenta se levantar e acaba de joelhos no chão.
— Deixa que eu faço. — Enquanto o Bo se deixa ficar no chão, rapidamente ponho os lençóis e um cobertor quente por cima. Depois ajudo-o a deitar-se de novo, mas ele insiste em apenas se sentar. Tira-me a cruzeta da mão e passa pela ligadura de novo, depois entendo que a ligadura está encharcada de álcool. Quando a cruzeta tresanda a álcool é que ele a entrega ao irmão.
— Agora já se pode trocar mano. — Ele avisa com um sorriso. Depois olha para a minha cara de confusa. — Ele tem a mania das limpezas. — E eu não tenho outra escolha senão confirmar com a cabeça, não sabia que o garoto tinha tantos complexos. Quase que sorrio quando me lembro que ele me deu aqueles pensos para as minhas mãos, na altura achei estranho alguém andar com pensos, mas agora acho que entendo.
Entrego as roupas de volta ao Arius e as minhas ao Bo.
— Desculpa Bo, não tenho roupa de homem. Espero que te sirva. — Ele agradece e eu me retiro para o quarto para poder me trocar também.
Vou com essa desculpa, mas sinceramente só quero ter um momento a sós.
Eu não posso não falar com o Arius sobre tudo isto, é muito difícil de ficar calada. Ainda preciso de ouvir o porquê do Bo estar assim, e de como da sua mão saiu uma arma. A este ponto já sei que eles não são normais, que há algo neles de diferente, e eu preciso de saber o que é.
A realização de que algum tipo de criatura vai dormir debaixo do meu teto deixa-me sem ar.
Eu sinto que os conheço, mesmo não os conhecendo, sei no meu coração que eles não são maldosos, mas também sei que podem fazer coisas que eu nunca vi, e mesmo assim deixei-os entrar em minha casa.
Eles me protegeram, por isso é que me sinto ligada a eles.
Aquele homem ficou naquela rua de boca rasgada e corpo dorido, e isso foi graças aos dois rapazes do outro lado da porta. Devia levar isso a bem ou a mal? A bem porque me protegeram ou a mal porque o magoaram e porque não são humanos? Devia estar assustada ou agradecida?
Para me distrair de tudo o que está acontecendo acabo encomendando uma pizza para entregarem aqui em casa, eles ainda não devem ter comido. É o mínimo que posso fazer.
Troco para umas roupas mais confortáveis, não para o meu pijama normal quentinho. Não me sinto assim tão perto deles para estar realmente de pijama, talvez o fizesse com o Bo mas não com o Arius. Então acabo por vestir uma sweatshirt e umas calças elásticas largas. Estou apresentável, acho eu.
Me pergunto se eles já se vestiram e se sim, se o Arius teve problemas para vestir o que lhe dei.
Aprendi um pouco sobre ele apenas nestes minutos, não sabia que ele era assim tão claustrofóbico ou que tinha um problema com germes, é algo que estupidamente não esperava de alguém como ele. Talvez porque nunca tinha visto aqueles olhos tão inocentes e envergonhados, vi como ficou quando eu lhe perguntei porque não entrava, ele não me queria dizer que tinha essas preocupações. Teve que ser o Bo a falar, e a tratar dele, ignorando as suas dores para o pôr confortável.
Ele realmente quer cuidar do irmão mais velho.
Abro apenas um pouco da porta, pergunto alto se eles já estão decentes e recebo uma resposta afirmativa. Saio para a sala e vejo que eles já ligaram a TV, as roupas que o Bo usavam estão em cima de uma cadeira da cozinha e as do Arius estão penduradas no candeeiro. Porque é que ele as meteu ali? Para não tocar em mais lado nenhum?
O Arius já migrou da janela para a beira do sofá-cama.
— Não tem que se preocupar, eu limpo a casa todas as semanas.
— Quantas vezes? — Pergunta, e eu fico surpresa por ele sequer responder.
— Uma vez por semana. — O olhar que recebo quase que me faz rir, ele parece realmente preocupado. — Mas estes lençóis e a sua roupa estão super limpinhos. Não se preocupe! Se estiver desconfortável com alguma coisa só precisa de dizer e eu faço ok? — Ele limpa a garganta, visivelmente hesitante. Olho para o Bo, procurando respostas, o que devo fazer?
— Ele só não esta habituado a ir a casa dos outros, mas ele habitua-se. — Onde está aquele garoto assustador que me defendeu? O Bo agora tem que ser tradutor? Ele pode dizer se tiver algum problema, ele está envergonhado por ser assim? — Só não ache estranho se ele estiver mexendo nas suas coisas para as pôr direitas ou para limpar ok? — Assinto com a cabeça. Não o quero deixar desconfortável.
Observo-o de lado, atento à televisão, quase nem sentado no colchão, encolhido no seu próprio corpo. Tem as mãos no colo, parece não querer tocar em nada. Foco a minha atenção lá até reparar no buraco que tem na mão, no mesmo sítio onde aquela coisa saiu.
O meu corpo é mais rápido que eu, salto do sofá para ir para a sua frente, pego na sua mão e a viro, para ver melhor.
— Não sabia que fazer isso magoava. Como você faz isso? — Pego na caixa de primeiros socorros ao meu lado, e me preparo para desinfetar o buraco que ele tem na mão.
— Faz parte. É uma das coisas que podemos fazer. — Ele responde. Espera, ele acabou de me explicar algo? Acabou de me responder à pergunta? Sem a evitar?
— Isso é osso, não é? Você consegue crescer os ossos? — Ele abana com a cabeça. E os seus olhos quase que parecem felizes com o meu entusiasmo. — Podem fazer isso com o corpo todo? — Outro abanar de cabeça.
Envolvo a sua mão com uma ligadura depois de desinfetar e só aí é que olho para cima, para ele, e reparo que me fuzila com os olhos, estava atento ao que estava fazendo? Estou de joelhos, com ele à minha frente, sentado e daqui continua a parecer enorme.
Está mais curvado, mais perto de mim, sei que se se curvasse ainda mais me cobria por completo. Parece tão pensativo enquanto nos olhamos, tem uma intensidade que eu gostaria de entender.
A visão vagueia para a testa e depois para os cabelos azuis escuros que a cobrem, e depois para a sua raiz laranja. Agora posso confirmar que ele é ruivo por baixo desse cabelo azul todo.
Noto que ainda estou agarrando à sua mão e rapidamente retiro, deve ser por isso que ele me estava olhando assim, não o largava.
Não precisamos de esperar muito pela pizza, infelizmente não vejo o Arius comer muito e cada vez me arrependo mais de dizer para virmos para minha casa, ele parece tão mal.
Enquanto eu e o Arius arrumamos as coisas ele solta um riso baixo. Quando olho para ele, este faz um movimento com a cabeça para o Bo, que já adormeceu e dorme de boca aberta, completamente espalhado pelo colchão.
Acho que a minha roupa é demasiado pequena porque, mesmo que os calções lhe sirvam a camisola fica curta, tem a barriga toda de fora.
— Deve estar exausto.— Comento enquanto faço o caminho de volta para a sala. — Até eu estou. — Admito. — Aquele homem deve tê-lo magoado a sério. — Aproximo-me do Bo, e passo a mão pela grande pisadura que tem na barriga.
— Não foi ele que a fez. Ele ainda está no processo de cura, de antes. — Quer dizer que ainda está a recuperar daquela noite?
— Como é que isto aconteceu?
— Ele comeu demais. — Então é verdade, realmente comeu aquele homem, foi ele que o deixou desfeito. — Em pequenos eles têm muita fome, e não se controlam. Eu devia ter ficado mais atento ao que o Bo fazia, ele fugiu, outra vez. E aconteceu isto.
— A culpa não é sua, as crianças são assim, num momento estão com você no outro já não estão.
— Mas ele é diferente, ele tirou várias vidas. Aquele corpo não foi o único da noite. — Isso é novidade para mim, aquela pessoa não foi a única a morrer naquela noite? Ele perdeu o controlo por completo. Meu Deus, quantos funerais tiveram que existir por causa dele? — O nosso problema é o controlo, e se comermos demasiado acontece isto. A alimentação está ligada ao crescimento. Durante a semana ele cresceu tanto, já deve estar na casa dos vinte. — Ele se senta comigo e curva-se, tapando o rosto com as mãos. — Ele perdeu tanto. Eu vejo como está sofrendo por causa disto, o Bo era só uma criança, agora não vai poder desfrutar da sua infância, é um adulto, e tem que se comportar como tal.
— A merda está feita, agora tem que andar em frente. Pelo menos ainda pode estar com ele e ensiná-lo tudo. — Ele suspira, parece tão triste, e com razão. Num momento de coragem levo a mão ao seu cabelo e faço alguns carinhos, não o quero ver mal, mesmo depois de tudo o que aconteceu. Tenho quinhentas perguntas para lhe fazer, mas decido que por enquanto, estou bem, prefiro que ele descanse. — Vai ficar tudo bem, Arius. Tenta ser forte, por ele.
Quando ele abana a cabeça, apercebo-me que se calhar estou o tocando há demasiado tempo, mas quando a levanto a sua mão voa para o meu pulso, me assustando. Ao poucos ele a pousa de novo no seu cabelo, pedindo por mais. Acho que não deve estar acostumado a ser consolado.
Então continuo a fazer-lhe festas enquanto ele suspira de vez em quando, e espero estar ajudando.
É estranho eu poder tocar nele, num rapaz que sinto que conheço e não conheço. O saber que ele está bem com o meu toque me acalma, porque sinceramente sinto que também estou a ser confortada. Por motivos diferentes.
Finalmente ele se endireita, e a minha mão cai no colchão. Porque é que sinto que queria que o momento se prolongasse?
— Vamos dormir? — Ele sorri, um sorriso grande e realmente lindo. Algo me diz que mereci aquele sorriso porque estive aqui para ele quando precisou, por isso aceito-o de bom grado. Assinto com a cabeça e dirijo-me ao quarto, deixando-os na sala para poderem dormir.
Acho que estou perdendo o juízo, como é que depois da violência que vi hoje e de ver o Bo, ainda me sinto envergonhada e de coração acelerado só por ver aquele sorriso?
Estou perdendo consideração por mim a cada dia que passa.
Bem, já conhecemos um pouco mais sobre o Arius. Mas acreditem, ele tem as suas razões para ser assim.
O que acham do pequeno não tão pequeno Bo? Coitado desse menino
Espero que tenham gostado do capítulo !!!
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Estou pensando publicar outro amanhã mas tenho que ver kkk
Beijo !
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