Colapso
O Arius espera de cabeça baixa perto da porta para que a abra. Ouço a sua respiração alta, a postura desconfortável e os punhos cerrados.
— Lace. — Ele chama por mim ao entrarmos. A voz já está normal, parece mais vulnerável, mais protetora, como se ele estivesse a fazer um esforço para não ser rude. Não quer mostrar que está maldisposto, que aquilo mexeu com ele. — Pode me pintar o cabelo? — A pergunta apanha-me de surpresa, mas a reação corporal é imediata. Estou a abanar com a cabeça mesmo antes de pensar em dizer que sim.
Não vai falar do que aconteceu? Vai simplesmente passar por cima e falar de coisas mundanas depois do que vimos?
Ele não espera por mim, anda até ao banheiro, vejo-o se sentar na beira da banheira, com os pés descalços para dentro, de costas para mim e com uma toalha ao pescoço, pronto para que vá.
Pode estar a fazer coisas normais, mas algo dentro de mim, me diz que isto não é normal. Sinto a mesma tensão de antes, ele não está mais calmo, então porque quer fazê-lo agora? Talvez isto o acalme, não sei.
Pego na tinta azul e coloco-a numa tigela, misturando cremes como diz nas instruções, ajo com calma, porque não o quero incomodar. Cada suspiro vem em janelas pequenas de tempo, está tão frustrado.
— Quer que tire a camisa? — Outra pergunta que me deixa de queixo caído.— Para não sujar com a tinta. — Explica com toda a normalidade.
— Acho que consigo não sujar. — Ajeito a toalha para que cubra melhor os seus ombros. Falo com uma voz mais trémula do que esperava, sinto a cara ficar quente com a sua sugestão.
O tom que usa é tudo menos ousado, acho que ele faz a pergunta porque genuinamente não quer que se suje. Ele conseguia estar sem camisa à minha frente? Estaria confortável sabendo que está seminu comigo? Eu certamente não estaria, só de pensar já fico envergonhada e com a boca seca.
Ainda bem que ele está de costas, não consegue ver a minha vergonha, ainda conseguia ler os meus pensamentos mais impróprios.
Começo por passar a tinta pelas raízes ruivas, a cor é tão clara e natural, tão bonita que não entendo porque ele a quer esconder com este azul-escuro. Imagino-o com a cabeça inteira ruiva, deve ficar tão diferente, seria possível ficar ainda mais bonito?
Porque é que isto parece tão íntimo? Só lhe estou a pintar o cabelo. Acho que é por ser uma coisa tão... comum, ou talvez por ser algo que um casal faria.
Seria essa a ideia que me está a pôr tão tímida? Que me está a fazer sentir tão próxima a ele? Porque estou a ter estes pensamentos todos com ele? Temo-nos aproximado tanto nestes tempos, e eu nunca tive um rapaz tão próximo a mim durante tanto tempo. Ele entrou tão depressa e tão fortemente na minha vida que me impactou muito.
Eu penso nele... demasiado. E dou por mim querendo falar com ele, querendo passar mais tempo com ele. Mas ao mesmo tempo, tenho medo de sentir estas coisas todas. Não sou de confiar logo nas pessoas, e passado pouco tempo, sinto que confio nele mais do que qualquer outra pessoa. Ele me salvou múltiplas vezes, me protege, sei que não me quer mal.
Passo o pincel na tigela com tinta e vou para pintar de novo quando ele vira a cabeça para cima, para mim. Não contando acabo por lhe fazer uma pinta azul no meio da testa. Os seus olhos azuis congelam-me com a surpresa, fiz algo de mal?
— Você está bem? — Ele pergunta e abre um pequeno sorriso fechado. Continua a olhar para mim, com a cara ao contrário, virada para cima. — Está suspirando muito.
— Eu é que devia perguntar isso. — Constato enquanto passo um pano molhado na sua testa.
— Eu estou bem. — A sua voz diz exatamente o oposto. Faço um som de concordância, não querendo que aquele sorriso lhe escape do rosto, como é que ele consegue ser tão adorável numas vezes e tão assustador nas outras?
Levo a mão limpa ao seu maxilar e meto a sua cabeça na posição original para poder continuar o meu trabalho. Não sabia que estava suspirando, será que faço isso quando estou pensando nele?
O Arius mantém-se calado o resto do tempo em que lhe pinto e a meia hora em que a tinta lhe fica na cabeça. Vejo-o brincar com os dedos, a arrancar a pele dos dedos com as unhas e a bufar constantemente. E a vontade de lhe perguntar quem era aquele homem cresce a cada minuto. Odeio vê-lo assim.
— Posso pedir um favor? — O Arius sai do banheiro com o cabelo molhado recentemente pintado, o azul-escuro está muito mais brilhante. Ele aproxima-se de mim e do Bo, sentados no sofá a ver desenhos animados. — Você pode dormir com o Bo esta noite? Queria estar sozinho. — Estará assim tão mal ao ponto de querer dormir sozinho? Eu entendo que queira estar com os seus pensamentos, e é por isso que concordo, mas deve estar mesmo chateado para chegar a este ponto.
Quando está na hora de dormir, o Bo ajuda-me a fazer uma caminha no chão, ao lado da minha cama, mas claro que ele acaba no colchão comigo. E por muito tempo que passe e o pequeno Bo já esteja a dormir há muito, o seu pedido ainda não me chegou à cabeça, está difícil de o engolir.
Eu percebo a sua tristeza mesmo que não saiba o motivo, mas não consigo ignorar a suspeita que sinto.
A meio da noite decido que não consigo dormir, por muito que role para o lado e para o outro não consigo deixar de pensar nele. Será que está mesmo triste? Poderá ter pedido um tempo para poder chorar? Ele estava tão irritado com aquele homem, se calhar era o seu pai, pode ter sido um homem violento e negligente, por isso ele ficou naquele estado.
Ganho coragem e abro a porta para a sala onde ele quis dormir. Me pergunto porque estou fazendo isto e no fundo sei que só estou aqui porque, caso ele esteja mesmo mal, eu o possa reconfortar e ser a pessoa que o põe bem.
Mas quando olho para a cama, ninguém lá está.
Procuro em todas as divisões e não o vejo.
Foi para isto que ele me pediu para dormir com o Bo? Porque ia sair a meio da noite? E se o Kaydon o apanha sozinho? Onde é que ele foi?
Fico sentada no colchão, olhando o nada, pensando nas coisas terríveis que lhe podem estar a acontecer quando ele abre a porta.
Está ofegante, deixa cair o saco de ginásio no chão e acende a luz, reparando que estou na sala.
A sua imagem quase me faz gritar, tem as roupas com manchas vermelhas e está todo suado.
— O que aconteceu, Arius? Você está bem? Isso é sangue? — Aproximo-me dele nos segundos em que ele está em choque por me ver ali. Tem a t-shirt branca colada ao corpo, que esforço físico andou a fazer para ficar assim?
— Eu disse que queria estar sozinho. — Aquela voz voltou, aquela fúria está aqui de novo, fala comigo como se eu o estivesse a atacar.
— Só vim ver como você estava.
— Estou bem. — Ele dá um passo em frente, com aqueles olhos me fuzilando, quem é esta pessoa? Parece que me está ameaçando.
— Esse sangue é seu? — A pergunta só o enfurece mais, outro passo dele me faz recuar.
— O que importa? Você já presumiu que não é, já sabe o que eu sou.
— O que você é? — Faço a pergunta por confusão interior. O que ele está falando?
— Para de olhar para mim assim! — O seu tom sobe, está quase gritando.
— Arius, eu não estava pensando nada. Você não estava aqui e fiquei preocupada...
— Pois não, estava cuidando de vocês.— Ele dá um chuto no saco, que desliza até mim. — Eu faço isso por vocês.— A este ponto já está gritando, o Bo já deve ter acordado, espero que não saia do quarto, o Arius não está bem.
— O que você fez? — O que ele quer dizer com cuidar de nós? Ele matou alguém? Foi lá fora magoar alguém para nos dar de comer?
— Não olhe para mim assim, eu fiz o que precisava para sobreviver. Sempre fiz! — Ele abana a t-shirt cheia de sangue para que a possa ver. A sua reação exagerada faz-me concluir que ele está perto de explodir. Acho que reprimiu durante tanto tempo o que sente e agora está desabafando. Aquele homem desencadeou isso tudo?
— Arius, está tudo bem.
— Eu vejo o seu medo! Eu o vi quando viu o sangue. — Eu só fiquei chocada, só não estava à espera que ele chegasse assim a casa. O que ele pensa que estou sentindo? Não tenho medo dele.
Ele levanta a mão para a passar pelos cabelos e repara no sangue na sua pele, depois olha para o corpo, e depois para mim. A sua expressão parte-me o coração, está completamente fora de si, o que estará pensando? Deve pensar que é algum monstro, deve achar que penso isso dele. Parece tão vulnerável, tão próximo do choro. O seu olhar está gritando por ajuda, e eu não consigo me mexer.
Ele solta um gemido, como se algo o estivesse magoando, corroendo de dor. Leva as mãos à t-shirt e a aperta nas mãos, depois puxa-a, como se tivesse nojo do tecido molhado tocando na sua pele. Ele tira-a pela cabeça e atira-a para mim.
E eu sou surpreendida pelo seu peito desfeito.
A grande cicatriz desce-lhe do ombro esquerdo, tem um buraco de pele quase branca como farinha por cima do coração e riscos até à barriga. Como se garras enormes tivessem rasgado a sua carne.
Está completamente cheio de cicatrizes, o que aconteceu para o marcar desta forma? Deve ter sofrido tanto com estas feridas horríveis, como ele não está morto agora?
Ao seu lado, a cicatriz da sua perna parece uma brincadeira.
Infelizmente a sua pele também está manchada de sangue que a t-shirt deixou passar. Ele começa a passar as unhas pelos sítios onde vê sangue, como se quisesse que elas saíssem, mas não soubesse como as tirar. A sua respiração torna-se ainda mais confusa, parece que se esqueceu de como respirar.
Está a ter um ataque de pânico.
Preciso de agir.
Deixo cair a t-shirt no chão e aproximo-me dele, sem medo, sei que ele não me magoaria.
Pego nos seus pulsos com uma mão, e afasto-o do peito, já fez marcas vermelhas de ter passado as unhas. Com a outra mão fixo o seu maxilar para o fazer olhar para mim.
— Concentra-te em mim. — Respiro fundo algumas vezes para que me imite, depois de uns segundos ele percebe o que eu estou tentando fazer. Ele respira fundo comigo, sem desviar o olhar de mim. — Eu não te julgo, não tenho medo de ti. Por isso vou olhar para você como eu quiser, e saiba que enquanto eu olhar para você assim, não te considero um monstro.
Ele não responde, mantém-se concentrado nas minhas palavras, bebendo-as uma por uma. Magoa-me tanto vê-lo sofrer, vê-lo parecer tão inocente, tão frágil. Está prestes a desabar, e eu não sei como ajudá-lo, não sei o motivo para poder deixá-lo melhor.
Quando ele se acalma um pouco, pego no seu pulso e puxo-o para o banheiro. Não deixo que se sente e pego numa toalha molhada para poder limpar o seu corpo. Aos poucos limpo cada gota de sangue das suas mãos, peito, barriga e rosto. Os minutos se passam e ele não passa do seu estado letárgico, pelo menos está mais calmo.
Levo-o para a cama e deixo que se deite para o cobrir. Quando me viro ele puxa pela minha camisola.
— Fica comigo. — Agora já me quer por perto?
Nem sequer penso em mais nada, porque não quero que ele fique pensando que não quero. Se há coisa que quero é ele perto de mim, e bem. Se ele me pede, eu obedeço.
Deito-me ao seu lado, com aqueles olhos azuis-claros como água me queimando a cada movimento que faço para chegar a si. Tem as bochechas rosadas, e os olhos lacrimejantes, como se estivesse prestes a chorar. Está lutando contra as lágrimas.
Num ato que para mim precisa criar coragem passo a mão pelo seu cabelo, penteando para trás os cabelos rebeldes que cismam em cair-lhe pelos olhos. Depois pouso a mão na sua bochecha, e quando vejo que ele não foge ou reprova o meu toque, começo a fazer pequenos carinhos.
Quero-o a sorrir, não assim. Não o quero ver neste limite, irritado, prestes a destruir tudo ao seu redor. Não quero ver este Arius, quero aquele sorriso raro, aquele que me deixa com o estômago ao contrário.
— Dorme. — Basta-me a palavra para que ele fechar os olhos.
O seu braço passa pelo meu pescoço para me servir como almofada e o outro passa-me pela cintura, me puxando para perto.
Penso que ele está dormindo, porque passando uns minutos já está respirando normalmente e parece confortável, até sentir o braço que me agarrava a cintura subir. Passa-me pelas bochechas, pelos cabelos, até a nuca. E, de repente me puxa para perto.
E os seus lábios tocam nos meus.
O meu mundo cai no chão e parte em mil pedaços, o coração dispara ao ponto de quase me deixar enjoada.
Como ele decidiu me beijar assim de um momento para o outro? Sem aviso.
Senti-lo tão perto deixa-me nas nuvens, ter os seus lábios contra os meus é a coisa mais deliciosa do mundo. O meu coração quase que não aguenta, será que ele o sente? Será que sente o meu coração quase me saltando do peito?
Os nossos lábios se movimentam lentamente, estão tão quentes. Ter a sua respiração contra a minha, o seu peito contra o meu, os seus braços me envolvendo, é a coisa mais chocante e mais maravilhosa do mundo. Como posso tê-lo tão perto e mesmo assim querer mais dele?
Ele beija-me como se precisasse, como se eu lhe transmitisse oxigénio, como se eu lhe desse vida.
Será que sente o mesmo que eu? Será que sente que está prestes a perder as forças no corpo?
Mesmo quando ele se separa continuo sem acreditar no que fez. Aceitei me deitar com ele porque vi que estava sensível, que precisava de alguém ao seu lado para o confortar. Nunca pensei que ele ia colar os seus lábios aos meus, nunca pensei ganhar um beijo.
Isto é um obrigado por o ter ajudado?
E porque quero mais? Porque não quero que isto acabe?
Quando o azul bate em mim de novo parece ainda mais brilhante do que o costume. Aquela cara inocente é a coisa mais adorável do mundo, como é que ele consegue mudar tão rapidamente?
Não quero dizer nada, e vejo que ele também não. Não quero estragar este momento que para mim foi perfeito. Quero sonhar com isto a noite inteira, quero sentir os seus braços à minha volta até de manhã, quero tê-lo comigo durante horas e horas.
Demoro muito a adormecer, ao contrário dele.
O meu coração só se acalmou depois de muito tempo, e só aí é que consigo cair num sono calmo e feliz.
_________________
Tenham piedade do Arius o rapaz passou por muito (o próximo capítulo mostrará isso mesmo).
O que acharam desse primeiro beijo?? Uhhh 😉
Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top