Chantagem

— Acho que está na hora de convidar a Heli aqui.— Ele tira-me do meu mundo cheio de corações rosa saltitantes e senta-se ao meu lado.— Ela não para de insistir.

— Ela só quer saber se estou bem.— Desde que soube o que aconteceu que não para de ligar.

Não posso evitar sentir-me culpada por não poder estar com ela, por não a poder ir buscar, por não poder me sentar com ela e explicar tudo o que aconteceu. Deve estar tão preocupada e ansiosa, tanto pelo que aconteceu como pelo que pode acontecer. A sua vida também está em risco, o Kaydon já a apanhou uma vez, pode apanhar uma segunda. Por isso é que lhe pedimos que não voltasse a casa.

A esta altura já tenho a certeza que ela quer vir cá para me dizer que esta amizade acabou.

Ate eu já me tinha fartado disto, de viver com medo e preocupação.

Enquanto vejo o Arius pegar no único celular que temos para a convidar, me levanto e vou ter com o Bo que ainda não se cansou de atirar. Aquele rapaz pode ser uns 20cm mais alto que eu e parecer ter a minha idade, mas tem a energia de um miúdo pequeno.

— Pensa numa coisa, ou em alguém.— Ele comenta quando me vê a olhar para a mão confusa, na esperança de me sentir de novo, de sentir todo o meu corpo.

— Em que pensas, Bo? — Ele se senta no chão, estende a mão e o osso cresce-lhe lentamente.

— No meu pai.— E depois, pela segunda vez na minha vida, vejo o Bo envelhecer.

Algo muda na sua expressão, o brilho que pensava ser permanente nos seus olhos desaparece, aquele sorriso maravilhoso é apagado. No seu lugar, fica um homem de vinte e poucos anos me olhando. É a sua dor que o envelhece, os seus olhos escuros magoam-me, aquela face tão triste parte-me o coração.

Me lembro quando o conheci, o pequeno de cabelo loiro que queria a minha comida, que me levou ao Arius. Quando lhe perguntei onde estavam os seus pais ele disse que fugiram. Acho que o Arius ainda não me contou o que realmente aconteceu.

— Você ainda se lembra dele? — O som grave que faz com a garganta quando concorda faz-me encolher. A vontade súbita de fugir deste assunto aparece, ele está mudando demasiado, não parece o meu Bo.

— Não me lembro de como ele era, mas lembro-me de o sentir. Ele era como eu. — Embora seja terrivelmente triste ele ter passado por abandono desde que nasceu, acho lindo ele não ter memória do homem em si, mas sim através do seu dom.

O dom que ele tem de sentir outros como ele, é algo que tem desde que nasceu e o ajudou a reter as lembranças do que era o seu pai. Ele usa essa tristeza profunda do seu abandono, ou usa a felicidade de ter essa sensação do seu pai no seu corpo ?

Será que ele se pergunta porque o pai o deixou? Ele sabe o que o seu pai é, então deve se perguntar porque fugiu quando eram iguais.

— O que interessa é que tens o teu mano.— Pego na sua mão com cuidado, agora que o osso retraiu, posso tocar-lhe. — E tens me a mim.

— Eu sei que ele não é mesmo meu mano.— A sua cabeça baixa, como se tivesse vergonha de o chamar de irmão.

Ele acaba de confirmar as minhas suspeitas, que eles não são realmente irmãos, o Arius acolheu-o porque tem um coração enorme e sabia as dificuldades que o miúdo ia passar. Fez-se de pai por escolha, mesmo que já tivesse decidido que não queria ter filhos. Tornou-se pai por necessidade.

Acho que gosto ainda mais dele agora.

— Não importa, são família.— Ele concorda com um sorriso a crescer-lhe no rosto, tem tanto amor pelo Arius, dá-lhe valor mesmo sendo pequeno.

— Tenta.— Aponta para a minha mão.

Decido tentar, só para testar a sua teoria.

Estico o braço e faço-me pensar.

Começo pelos meus pais, pela tristeza que me fizeram passar.

Crescendo com medo.

Medo de acordar na minha cama e não saber como fui ali parar.

Com medo de comer por não saber se me vai por dormente.

De sair de casa com medo que uma seringa me siga.

De beber com medo que me faça desmaiar.

De falar com medo de ser castigada e acordar com marcas no corpo sem saber a sua origem.

E a tristeza desaparece para dar lugar a raiva.

O seu sorriso quando eu apareci no funeral, o levar-me para o seu escritório quando estava supostamente sofrendo a perda da sua esposa para me dizer que me vai obrigar a casar e que já não sou sua filha.

Fazer um aparato tão grande no funeral, fingir-se o maior cavalheiro, um homem exemplar, para depois mandar os seus homens me perseguir na praia na esperança de me deixar dormente de novo para me poder controlar.

Fazer uma garota que não sabia nada sobre a vida fugir de casa com medo da sua própria familia.

Raiva.

É isso que me conduz.

Foi a raiva que me fez magoar o Kaydon e o Sin, foi a raiva que desbloqueou o meu poder sobre eles, quando eles queriam levar o Bo e brincaram com o seu aspeto a raiva amontoou-se e fez com que me libertasse.

— Lace! — O nome aparece no fundo dos meus pensamentos, repete-se até ficar aos berros e me obrigar a abrir os olhos.

E é isso que faço, e me assusto com o que vejo.

Todo o meu braço coberto de espinhos brancos, que combatem para sair mais e mais.

São pontiagudos, prontos a espetar em alguém. Os espinhos furaram o que tenho vestido, as pingas de sangue que escorrem deles caem para a erva verde, agora avermelhada.

Nem os senti sair, não senti o desconforto, não senti a dor.

E não é apenas um osso, são vários espinhos, dezenas que me cobrem o braço inteiro.

Obviamente já tenho o Arius de joelhos à minha frente, segurando a mão que conduz aos braços cheios de espinhos. O Bo recuou, e os seus olhos estão arregalados, quando se afastou de mim? Era ele que estava gritando?

O Arius não precisa de palavras, basta a sua expressão para me dizer "respira", "calma", "pensa noutra coisa".

E é isso que faço, respiro fundo várias vezes enquando fito o azul dos seus olhos. Concentro-me só no azul claro, e finjo estar num sítio distante, longe de tudo, sem preocupações, sem pais idiotas, sem traumas de infância.

E os espinhos voltam para o meu braço, deixando buracos na minha pele enormes e feios, aterrorizantes.

— O seu pai deve ser horrivel.— O pequeno Bo comenta, ainda petrificado a uns metros de mim.

— Acho que achou o seu gatilho.— O Arius comenta, com um joelho no chão e um sorriso ladeiro. — Está bem? — Abano a cabeça, confirmando.

Sinto-me bem, aliás, sinto-me mais que bem. Sinto-me forte e não como ele me fazia sentir, vulnerável, fraca. Só tenho que me controlar, usar a raiva para o que preciso.

Ao pôr-do-sol já só tenho marcas onde os espinhos saíram, a ferida fechou. É algo a que a uma pessoa normal não curaria tão rapidamente, como nunca reparei nisso? Estou descobrindo coisas todos os dias.

Por volta das sete horas já estou com o coração na boca, mesmo sentada na cadeira, olhando para o Arius atarefado enquanto cozinha, saltito com as pernas à espera que a Heli chegue. Até o Bo está mais inquieto do que o normal, ele sempre gostou da Heli e da sua avó, desde que a avó dela cozinhou para ele e a Heli lhe ofereceu aquele conjunto de trens. Bastou isso para lhe ganhar o coração.

Tenho que passar mais tempo com ela, tenho que mostrar mais o valor que lhe dou, tenho que mostrar que não sirvo só para receber gestos mas também para dar. Neste momento parece apenas uma relação unilateral.

Finalmente a porta dá sinal de vida.

Infelizmente quem eu vejo do outro lado não é a Heli nem a sua avó.

— Podemos falar? — O seu fato está impecável, como sempre. Pena que não faz conjunto com a floresta que o rodeia, o seu lugar é em eventos sociais e reuniões de negócios. A pessoa que me aterrorizou maior parte da minha vida, que me perseguiu, que ainda há pouco causou o meu braço a explodir está à minha frente, com uma cara orgulhosa, nojenta.

— Pai, o que está fazendo aqui? — Amaldiçoo-me por soar tão fraca, parece que quando ele está por perto volto a ser uma adolescente com medo. O movimento atrás de mim para, tudo fica em silêncio, parado. E eu não sei se é a realidade ou se só estou imaginando, se ele já me mandou para os cantos mais escuros da minha mente.

— Precisamos de conversar.— Quando ele dá um passo, é a vez do Arius agir. Mete uma mão no peito do meu pai, e empurra-o um degrau para trás, impedindo-o de entrar.— Rapaz, não penses que sais impune com o que acabaste de fazer. Eu não tenho medo de cortar esses dedos.

— Não fale para ele assim. Saia, não volte.— O seu sorriso da-me náuseas. Ele pensa que manda em tudo, no mundo inteiro, e que todos têm que lhe obedecer.

— Querida, eu vou entrar. Vou me sentar, vou conversar, e vou sair.— Ele sobe para o degrau onde estava anteriormente, ficando frente a frente com o Arius. Parece intimidante, mesmo que o Arius seja mais alto.

— Como descobriu onde estava? — Ignoro os seus avanços e a guerra de olhares que os dois homens estão trocando.

— Não foi dificil.— Ele vira a sua atenção para mim e depois dá um passo em frente para dentro da casa, me dando uma vista da floresta.

Não estão claramente lá fora, mas sim em lugares específicos, longe mas não o suficiente para o Bo não os sentir. São humanos, todos eles.

E depois a imagem mais confusa aparece-me.

— Heli? — O seu nome sai como um sussurro, não a quero chamar, mas o choque faz-me dizer o seu nome. Ela tapa a boca com as mãos, está chorando. Ao seu lado está a sua avó. — O que fez com elas? As ameaçou? Quem você pensa que é?

— Eu não fiz nada.— Ele sorri enquanto se senta na cadeira onde estava sentada antes. — Elas o fizeram de livre vontade. O dinheiro vai longe, querida.

Não. Eu não me acredito numa única palavra que ele está a dizer. A Heli nunca me faria isso. Nunca me trairia. Nunca me entregaria.

E aquela vontade de saber onde estou ganha outra luz. Queria saber para saber se estava bem ou para dizer ao meu pai?

A imagem dela é distocida, a culpa que tinha desvanece, dando lugar a raiva.

Recuso-me a acreditar.

— Não, elas estão aqui forçadas.

— Certo.— O meu pai bate com os dedos na mesa, divertido.— Então, me responda a isto. Como pensa que não morreu à fome todos estes anos?

— Ele quer dizer carne... nossa.— O Arius responde quando revelo a minha confusão. Não estou percebendo nada, não estou ligando coisa com coisa. O que quer dizer tudo isto?

— Aquela mulherzinha ali te alimentou todo esse tempo.

Levo um tiro no coração, e outro, e outro. A este ponto sinto que tenho o corpo inteiro aos buracos mas quando me inspeciono, não tenho nenhuma marca.

Começo a deseja-las, talvez isso explicasse que tudo o que estou a ouvir é fabricado, fruto da minha mente maluca e cheia de dores.

Todo este tempo, foi ela?

O Arius sempre se perguntou porque não tinha fome, porque não sentia que queria carne durante os anos em que pensei que era humana. Foi ela, a sua comida, a sua avó. E a Heli sabia disso?

Isso quer dizer que durante os cinco anos em que andei fugida nunca foram verdade, ele sempre soube quem era, elas sempre souberam quem eu era, aliás, foram contratadas para me fazer comer. Para não me fazer descobrir.

Simpáticas apenas porque as contas bancárias estavam subindo.

Aquela renda não era baixa pela pena que ela teve por mim, era tudo obra do meu pai, não era?

Meu deus, toda a minha vida é uma mentira.

Quando reparo já me sentei na cadeira à sua frente. A minha respiração está descompassada, tenho medo que a qualquer momento perca o controlo.

Sinto uma pressão no meu corpo que quero que se liberte, mas basta-me um olhar para o Arius e o Bo para me manter quieta, para ficar parada, para me obrigar a respirar normal, a controlar a raiva que tanto me quer conduzir.

— Conversa.— Uso uma voz que não a minha, mais grave, mais autoritária, a voz de alguém que se está a controlar para não explodir. O meu pai endireita as costas e os seus olhos vagueiam pela casa minúscula.

— Se lembra do que falamos, quando a sua mãe faleceu?

— O casamento.— Quando falo vejo o Arius se mexer nervoso, mas permanece ao meu lado, quieto e atento.

— Enquanto você está aqui brincando às casinhas o tempo está passando.

— Ja lhe dei a minha resposta.— Ele realmente pensa que eu vou casar com alguém que não conheço? Só porque ele pediu?

E uma coisa passa-me pela cabeça.

Ele sempre soube o que eu sou.

Sempre soube o que tinha que comer, o que podia fazer, e nunca me disse, sempre escondeu isso de mim, me alimentando sem eu saber.

Tenho outra realização entretanto.

O meu pai não é como eu. Senão o Bo teria o sentido, como me sente a mim.

Se ele não é, então seria a minha mãe?

— Não há resposta para ser dada. Vê os homens que estão lá fora, acho que está bem explícito o que precisa de fazer.— O momento de silêncio é irritante, é desesperante, mas a boca não fala, ela não quer responder.— Volte para casa, apenas por uns dias, assina os papéis, e nunca mais tem que me ver.

— E está preparado para dar o seu império a outra pessoa que não a sua filha? — O Arius ganha a coragem de falar, pensava que ia ficar calado todo este tempo, apenas o fuzilando com o olhar, como se o pudesse furar com lasers.

— Se ganhar algo com isso, que tenho a perder? Não vou levar o meu dinheiro para o túmulo.

— E o que é que eu ganho com isso? — Interrompo a sua próxima frase, aquele tom de voz arrogante já me mete nojo. Quero expulsá-lo daqui e voltar a viver a minha vida como fazia antes.

— O meu silêncio. Quando falecer só tem que passar tudo para o seu marido. Deixarei de interferir na sua vida.— Quando levanto a sobrancelha, duvidando, ele sorri.— Posso deixar em escrito se preferir. E posso deixar uma recompensa choruda, antes de desaparecer.

Olho à minha volta, estou agindo como se tivesse escolha, mas a verdade é que não tenho, e ele sabe-o. O Arius parece perdido, está tão confuso quanto eu, sabe que não podemos dizer que não. E eu não posso deixar que magoem o Bo, nunca me perdoaria se algo lhe acontecesse.

Aquele homem já me fez muito mal, demasiado, ja me traumatizou o suficiente. Por isso sei do que ele é capaz, e sei que se disser que não ele magoaria as pessoas mais importantes da minha vida sem qualquer tipo de remorso.

Ele fará tudo até eu dizer que sim.

Quero chorar, quero atirar-me de joelhos e gritar para os céus, perguntar porquê.

Será que perco muito se apenas me casar? Acho que o problema não é esse, nunca pensei em casar, nunca tive esse desejo. Ter filhos? Talvez. Mas casar nunca me interessou. E nunca quis o dinheiro do meu pai, passei fome para fugir ao seu dinheiro, eu só queria uma vida onde não houvesse medo e dor. Não quero saber do que ele tem, só quero paz.

Acho que o problema não é casar.

É ele tirar-me a escolha.

É o fazê-lo forçada. Com uma faca ao pescoço.

Pergunto-me o que o Arius pensa de tudo isto, se está pensando em atacá-lo, se está pensando me mandar embora para proteger o Bo, mas a verdade é que ele não sai do meu lado, parecendo protetor e com aquela cara assustadora. Está mais que irritado, próximo do limite da paciência.

Apanho-lhe a mão que treme, e aperto-a levemente. Peço-lhe desculpa com o toque, e apenas o toque.

Não tenho que pensar durante muito tempo, não quero que eles passem por dor nenhuma. Faço tudo para que todos se mantenham a salvo, e se só for preciso ficar casada para o resto da minha vida, então é um preço pequeno para pagar.

— Não saio daqui sem um documento assinado.

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