Besta Flor
Arius
As suas unhas rasgam-me a pele, ela agarra na minha camisa até a desapertar, está aterrorizada.
Vejo-a tremer contra mim, implorando para que a salvem, como se tivesse voltado a ser criança, fugindo do pai e do que as drogas a faziam sentir.
O que ele pretende mostrar com isto? O que lhe quer fazer?
O esforço de tentar protegê-la é em vão, a pancada que levo na cabeça deixa-me desamparado, e ele consegue chegar a ela.
Estou possuído, a maneira como ele pensa que a controla, que pode fazer o que quiser com ela. E não só com ela, ao que parece também quer usar os que estão aqui sentados à mesa.
O que ele diz não parece fazer sentido. Como pode alegar que a criou, que a fez faminta pela nossa carne de livre vontade?
Quer voltar à era em que fugíamos de pessoas como a Lace, quer ser poderoso como eles eram.
Parece que sabe que os seus poderes são superiores aos nossos, mais destrutivos, mais violentos. São sedentos de sangue, mais do que nós, é isso que ele quer? Fazer um exército de pessoas como a Lace?
Imagino o que podia conquistar com um batalhão de bestas famintas com dons que dariam medo a qualquer um, destruíndo alguém com apenas um girar de mão.
Entendo como a ideia pode ser apelativa. Mas para chegar ao ponto de experimentar com a própria filha, não sabendo os riscos, fazê-la passar por anos de trauma com essas drogas, e agora, tentar casá-la com o chefe de um grupo enorme apenas para se aproximar e o trair para ficar com os seus homens.
É preciso uma mente depravada para ter um plano desses.
Ela geme, agarrada a mim.
O sangue que me escorre da cabeça é a última coisa na minha mente, preocupo-me em mantê-la do meu lado, enquanto a ouço gemer de dor e sinto o seu corpo tremer cada vez mais, pelo efeito da droga, suponho.
O Kaydon já passou a fase das desculpas, está determinado a sair daqui com vida, mas não quer dizer que não possa ripostar.
Acho que põe tudo de lado quando atira com o espinho, diretamente para o pescoço do pai da Lace.
Não demora muito para a Lace perceber o que acontece, parece não conseguir assimilar as coisas com tanta rapidez, a sua testa acumulou gotas de suor que agora lhe escorrem pelo rosto, o corpo treme, está com tiques nas mãos, parece mal conseguir respirar mas geme como se sentisse algo dentro dela tentando sair.
O que ele fez com ela?
O homem morre à nossa frente e eu tento não me preocupar muito com isso, ele cai para cima de nós e eu só faço os possíveis para o empurrar para o chão.
Não lhe vou dar qualquer tipo de crédito ou importância depois do que ele já fez.
Depois da ação do Kaydon, o inferno é aberto.
Deixo-me cair da cadeira e puxo a Lace comigo, felizmente os soldados que começam a disparar após a morte do seu chefe concentram-se nos que lutam contra eles.
No momento em que o Kaydon agiu, os outros atacaram, como uma máquina bem oleada, todos tentam lutar pelas suas vidas.
Mesmo sabendo que estamos em menor número sei que ganharemos, sei o que eles conseguem fazer, e por cada um de nós que morre, morrem três deles. Tenho que a tirar daqui.
Mas quando olho para o lado, já não a vejo.
Do canto do olho vejo o Kaydon tentando fugir com mais alguns dos seus homens, e do outro lado lá está ela.
Ja se encontra de pé, não está fraca como parecia, parou de tremer, tem os punhos cerrados e os olhos cheios de raiva, fitando o homem loiro que tenta fugir.
O seu rosto tem algumas gotas de sangue escorrendo, a sua imagem dá-me arrepios.
Algo está muito errado.
Percebo imediatamente o que ela quer fazer, quer perseguir o Kaydon, aquela droga está a torná-la noutra coisa, em algo diferente.
É aí que os seus olhos caem em mim.
Levo como um susto, as mãos dela relaxam, os cantos da boca sobem ligeiramente num sorriso macabro, e os olhos enchem-se de vermelho, completamente encarnados com a íris preta no centro.
A pele dela parece tomar outra cor, como se tivesse acabado de se alimentar e os hematomas estivessem tentando tomar o seu corpo, marcas roxas cobrem os seus braços mas não parecem lhe causar dor.
Quero gritar, quero pará-la, dizer-lhe palavras calmas, assegurar-lhe que vai ficar tudo bem, mas estou petrificado.
Não é a Lace, não é.
Ela desiste de mim, segue para fora, para conseguir chegar a Kaydon. O que ela tenciona fazer com ele, não sei, mas sei que se vai arrepender.
Os guardas não atiram nela, mesmo vendo o seu estado, presumo que sabiam que isto ia acontecer, não o ataque do Kaydon, mas o estado de Lace, e agora que estão em combate, saber que a Lace vai atacar as mesmas pessoas que eles, deixam-na atuar, não a param.
Corro para fora de casa, enquanto eles ainda não notaram em mim, de mãos na cabeça, com um osso pronto a ser atirado caso seja preciso. Preciso de a encontrar.
Tenho que saltar por cima de pelo menos três corpos até chegar ao meio do grande jardim, onde outros como eu estão fugindo ou lutando.
Os guardas, bem treinados, atiram contra eles, na intenção de matar. Se o Tiego ainda fosse vivo, provavelmente a ordem seria outra. Tudo parece sem sentido agora, sem ele. E ainda assim as balas continuam a voar.
Um magricelas do outro lado da casa, explode as balas que voam contra nós, vai esbracejando, tentando concentrar o seu dom, como um doido. Mal dá conta do recado.
Mais perto de mim, um de cabelo comprido encaracolado, dá saltos grandes e aterra com os dois pés no solo para causar buracos enormes para que eles caiam.
E a miúda que corre com ele faz crescer muralhas de plantas para lhes bloquear a visão.
Todos eles tentam lutar contra homens que parecem não morrer porque quando uma fila cai, outra está pronta para os substituir.
Ouço um grito ao longe.
Um berro assustador, que provém dela.
Sinto-me inútil, não sei o que fazer para a ajudar, o que tinha aquela seringa? O que posso fazer para parar os seus efeitos?
Ela ainda não tem controlo sobre as suas habilidades, e neste momento está com a cabeça numa única coisa, no Kaydon. Pode magoar-se, e aos que a rodeiam.
O Kaydon para com o seu grito, e olha para ela. Parece um menino assustado, ela vai agir se ele não se mexer, não sei o que pode fazer, ele tem que se mexer.
Algo nele para de funcionar, e eu não paro de correr, tenho que chegar a eles, antes que ela decida atacar.
Ela estica uma mão, como se o estivesse chamando, e depois puxa-a contra a si.
E eu sou projetado para trás.
Assim como todos os que estão a uns metros dela, incluindo Kaydon. Sinto uma força enorme, o vento mais forte do mundo me empurrando para trás, basicamente me fazendo voar.
Bato com as costas na erva, o impacto tira-me o ar dos pulmões.
A vontade de vomitar é imediata, viro-me para o lado e deito tudo o que tenho dentro do estômago para fora, tenho apenas alguns segundos para constatar que os que levaram com o golpe estão iguais a mim.
O mau estar do corpo é tão grande que mal me consigo levantar, é como se estivesse bêbado, a cabeça está tão tonta, não conseguindo raciocinar direito. As minhas pernas não querem responder.
Quando ela estende a mão de novo, arrasto-me para a cratera que o garoto de há pouco causou e cubro a cabeça com as mãos, não sei se deva cobrir os olhos, a boca ou os ouvidos, não sei como ela está fazendo isto!
Ouço os gritos de quem levou com o golpe seguinte, se me senti assim só com um imagino com dois.
Respiro fundo várias vezes até me sentir capaz de sair do buraco e procurar por ela.
À sua frente o Kaydon esperneia, desesperado. É a pessoa mais perto dela, deve ter levado com os efeitos com mais força. O que deve sentir?
As pessoas à sua volta rastejam para longe dela, outros estão apenas em posição fetal, gritando como desalmados. Ando devagar, mas ando. Cada passo parece doer, não consigo manter uma linha reta, mas tenho que chegar a ela. Acalmá-la, pará-la.
— Para! — Alguém ao meu lado grita.— Fica pior se estiveres perto.— O rapaz de antes, o magricelas que tentava escapar das balas, tem os braços em sangue de rastejar pelo chão.
E percebo exatamente isso, quando a minha visão escurece e a minha audição reduz. Paro imediatamente e penso no que fazer, estou demasiado longe dela para a agarrar, mas estou ficando cego à medida que me aproximo. Fico cada vez mais desesperado, sem saber o que fazer.
— Lace! — Chamo a sua atenção, grito em plenos pulmões, na esperança que ela reconheça a minha voz e pare com tudo isto.
Não pode continuar assim, ela não é um monstro, não mataria por prazer, não faria mal a estas pessoas de propósito.
Ela não está em si, preciso de ajudar.
Sou bem sucedido, ela sabe que sou eu, procura por mim, pela origem dos gritos e me encontra finalmente.
A droga não afeta as suas memórias, vejo pela sua expressão que sabe exatamente quem sou, infelizmente isso também quer dizer que sabe quem é o Kaydon, e quer vingar-se.
Acho que a acalmo porque deixo de ouvir o zumbido no ouvido, por isso ouso me aproximar um pouco mais.
É quando vejo o espinho rasgar-lhe o braço.
Todos eles têm medo dela, tanto os homens do seu pai como o Kaydon. Os dois lados começam a atacá-la, mas estava tão preocupado com o ajudá-la a não magoar, que não pensei que a pudessem magoar.
Ela desvia-se dos outros ataques, mesmo depois de cair de joelhos, urrando de dor, agarrada ao braço.
E eu corro, o corpo esqueceu-se que estava mal e só vê a Lace. Chego a ela e envolvo-a nos meus braços, mesmo que tenha um bichinho atrás da cabeça que me diga para correr para longe.
— Arius, eu não consigo parar.— Sussurra contra o meu ouvido, parece relaxada agora que está nos meus braços, não está preocupada com os ataques sobre ela. Começa a soluçar, o corpo cai para trás, entrando em convulsão. Eu tento imobilizá-la, com medo que se magoe, mas ela para de repente. Os seus olhos abrem-se, e só vejo vermelho, a íris rolou, já não está consciente, desligou.— Corre.
É a única coisa que consegue dizer antes de me afastar com um pontapé. Percebo que o faz para me salvar quando vejo as suas roupas rasgarem, os espinhos não lhe crescem das mãos, saem-lhe das costelas.
Primeiro saem finos, como um osso partido, e depois engrossam e dobram para fora. Os ossos brancos fazem o caminho até ao chão, são pelo menos dez, cinco de cada lado do seu corpo, e levantam-na, como uma aranha, controlam-na.
Crescem, até ela ficar acima de mim.
E os ataques começam de novo, eu faço de tudo para desviar os seus ataques, o seu braço continua a sangrar, assim como o seu peito, o sangue escorre pelos ossos até ao chão, saindo pelos buracos que criou.
É aí que ela se começa a mexer, não com as suas pernas, com as pontas dos ossos.
Anda mais rápido que qualquer pessoa, fazendo caminho para as pessoas que a tentam ferir, os seus braços mexem-me de um lado para o outro, mandando outras ondas de dor como as anteriores, enquanto os espinhos que andam pelo chao perfuram os corpos dos que tentam fazer lhe frente.
Vejo o Kaydon, agora de pé, olhando para ela com uma expressão terrível, agora sabe o que ela é capaz de fazer, duvido que se vá meter mais no seu caminho. Foi ele que criou toda esta situação, ele e o Tiego.
Mereciam morrer, mereciam tortura.
Nenhum deles sofreu como ela está sofrendo, nenhum deles tentou conter tudo isto, pessoas estão morrendo por sua causa.
Ele olha para mim, saindo do seu transe, e como se um alarme tivesse soado na sua cabeça, concentra-se em fugir.
E, por muito que o queira seguir e mostrar que também quero vingança, deixo-o ir. Ele não é a minha preocupação principal, ela é.
Pela última vez corro até ela, não quero saber do que o que ela me pode fazer, estou determinado a fazer isto parar. Estou a uns metros dela quando a visão começa a embaçar, o zumbido volta, mas continuo.
É como entrar numa zona tóxica, em que tudo dentro dessa área morre, é uma sensação aterradora, como se criasse um peso no corpo, um enjoo imenso, uma fraqueza enorme.
Quando sei que estou perto o suficiente já não vejo nada, a visão desapareceu, só vejo escuridão. Mesmo assim ouso gritar.
— Lace! — E ouço-a parar, não sei se ela esta decidindo me matar, ou se me está ouvindo.— Eu não vejo, Lace. Mas eu estou aqui.— A minha voz sai trémula, mais assustada do que pensava. Não sabia que tinha assim tanto medo, mas é a verdade, tenho muito medo. Medo do que não consigo controlar, medo de a perder, de a ver cometer estes crimes, crimes esses que já cometi e que ficaram comigo toda a minha vida, não quero que ela passe por isso como eu. — Eu te amo, eu estou aqui.— Grito, porque já não sei se ela está aqui ou não, o silêncio é irritante. Ainda ouço as armas disparando, gritos de dor, mas não a ouço. — Você não é um monstro, volta para mim.
E a claridade vem aos poucos, demasiado devagar, me deixando cada vez mais ansioso.
Quando recupero a visão vejo-a, bem à minha frente, deitada, com as roupas cobertas de sangue. Desacordada.
Faço o que o meu instinto me diz para fazer, pego-a ao colo, e fujo.
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Ufa.... Essa Lace está... Qualquer coisa, não é? Kkk
Que acharam deste capítulo? Finalmente sabendo o que ela pode fazer *-*
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