Ataque

— O Kaydon esteve aqui. — O Bo responde pelo Arius, se deitando de novo no meu colo, com um sorriso de orelha a orelha.

— Estava lá fora? Não devíamos avisar a Heli? — Fico irrequieta, o que ele está fazendo aqui? Estava pensando em atacar? E se o Bo o sentiu porque não disse nada? Podíamos ter trancado tudo.

— Esteve aqui em casa, connosco. — O Arius fala pela primeira vez, agora já mais relaxado. Ele anda até nós e se senta no chão, à minha frente. — Se lembra quando contei que via os medos das pessoas? — Abano a cabeça, confusa. — Ele também tem o seu dom.

— Tem o poder de ser invisível? Não estou percebendo.

— Chama-se projeção astral. Ele deixa o corpo não muito longe daqui, mas o suficiente para que o Bo não sinta e deixa o seu espírito vaguear. O que ele não sabe é que o Bo o sente na mesma. — A admiração que mostra olhando para o Bo aquece o meu coração, noto no amor que tem por ele pelo que consegue fazer. O Bo parece orgulhoso de si.

— Ele pode ver-nos a qualquer momento. — Encosto-me no sofá e não consigo imaginar alguém aqui comigo sem o conseguir ver, como é que o Bo é o único que o consegue sentir? Como é que podemos ter uma pessoa ao nosso lado e não a sentir?

— Por períodos curtos, mas sim. — O Arius parece estar acostumado com este facto, e por alguma razão eu não o consigo aceitar. Uma pessoa como ele, com esta capacidade, poderia saber todos os segredos do mundo. Ninguém o veria, poderia simplesmente estar lá e ouvir. E provavelmente foi isso que fez.

— Mas o que ele queria? — Se a resposta não é imediata já sei que não a vou ter.

O olhar do Arius sobre mim diz-me que tem algo para contar, mas os seus ombros que abanam querem me convencer que não sabe.

Qual é o objetivo? Ele sabe que o Arius me salvou, sabe que os traiu e por isso é que destruiu a sua casa, como castigo.

Mas pelo que ele disse, o Kaydon ficou convencido que eu não era como eles quando me viu comer a carne, e se o Arius não tinha antes mencionado o poder que o Kaydon tem, é porque ele ainda não o tinha sentido, certo? Então porquê agora?

Que importância temos nós para ele gastar o seu tempo connosco?

O Arius já não faz parte do seu grupo, que eu saiba, então porque é o que ele está fazendo é valioso para o Kaydon?

Se na cabeça dele eu sou humana, o que o chama a esta casa?

A conversa chega a um fim mesmo que não queira, consigo ver que o Arius não quer falar mais disso e o Bo está demasiado esgotado para falar mais. Depois daquela fase pequena de energia acabou por pedir para ir para a cama descansar, deve ser esgotante ter o poder que ele tem.

E agora, sentada no sofá com o Arius, num silêncio irritante, sinto-o tenso.

— Porque não fala simplesmente o que tem aí na cabeça? — Pergunto quando chego ao meu limite de longos suspiros e inclinações de cabeça que ele faz enquanto está pensando. Noto que algo o que está perturbando, porque não pode colocá-lo cá para fora?

Ele passa as unhas pelo tecido do sofá e inspira forte, como se se estivesse preparando.

Eu juro que um dia aquele rapaz vai explodir de tanto engolir os seus sentimentos, e vai ser ainda mais feio que ontem.

— Você sente fome? — A sua pergunta apanha-me de surpresa.

Obviamente não se refere a comida normal, mas sim se tenho fome desde aquela noite em que ele me tirou da floresta.

E eu não sei o que lhe responder.

Não vou dizer que não pensei, aliás, acho que só pensei nisso desde que aconteceu. Nunca me tinha sentido assim e se me perguntassem se podia sentir o mesmo sabor eu diria que sim num instante, mas ele não me perguntou isso.

Acho que a única coisa que me passou pela cabeça foi que o aconteceu foi ótimo, mas nunca pensei que iria acontecer de novo.

E se não pensei nessa parte futura, quer dizer que não o sinto certo? Quer dizer que o meu corpo ainda se encontra satisfeito?

— Acho que não. Embora tenha muita vontade de comer. — As palavras custam-me a sair da boca, como se pô-las para fora cometesse um crime gravíssimo. Como se tivesse cometido o maior dos pecados. Uma coisa é o que digo para mim mesma, outra coisa é partilhar com outra pessoa que realmente sinto um desejo incontrolável se sentir aquele sabor novamente.

— É normal. Suponho que nunca tenha comido de um corpo fresco. — Ele vê o meu nervosismo e tenta me acalmar, mas eu não quero continuar a conversa, não quero me sentir um monstro. Olho para ele apenas por uns segundos, tentando pedir para que não fale, mas ele coloca a perna dobrada em cima do sofá e se vira para mim confortavelmente. — Acho que só te deram a carne cozinhada.

— O que está dizendo?

— O óbvio. Você não pode ter comido a primeira vez naquela noite, senão já estaria morta. Nós temos que nos alimentar. A questão é, quem te tem alimentado este tempo todo? — Paro para pensar e a única imagem que me vem à cabeça é a do meu pai, sei que ele é capaz de fazer tudo, então também seria capaz de me alimentar sem eu saber?

Olho lá para fora, para a noite fria, e me pergunto onde estará o meu pai, o que estará planeando. Estou há cinco anos fora, ele sabe o que eu sou? Ele me alimentou este tempo todo? Será que ele é como eu? Então porque me tratou daquela maneira toda a minha infância?

Preciso de respostas.

— Por isso ficou assim quando estava se alimentando.

— Eu não quero falar sobre isso, Arius. Já me sinto mal o suficiente. — Ele toca-me no ombro para chamar a atenção do meu olhar teimoso.

— Pode falar comigo porque já senti tudo isso, eu posso ajudar no que for. Não tem que se sentir um monstro comigo.

— Não consigo esquecer. — Levanto-me, evitando o seu toque.

— Não tem que esquecer, Lace. É normal se sentir mal no começo...

— Mas eu não me sinto mal! — Grito, porque a culpa é tanta, porque não quero lidar com os meus sentimentos que me enojam. — Foi a melhor coisa do mundo.

Ele cruza a perna e fica a olhar para mim, tentando descobrir o que dizer. Vejo como está escolhendo as palavras com cuidado. No final se encosta no sofá e esconde o sorriso que lhe cresce na cara com a mão.

— Não é altura de rir, Arius. Eu devia me sentir mal.

— Você disse que não o matou.

— Mas perturbei o seu corpo! Alguém inocente. O rapaz nunca me vai sair da cabeça pelos motivos errados, o vestido bege, a pulseira, a cara de assustado dele, até aquele cabelo verde ridículo!

O Arius levanta-se no segundo em que paro de falar, o seu pescoço tem um tique nervoso e inclina para o lado. Está piscando muito os olhos e em vez de se aproximar mantem a distância de mim.

— O quê? — A pergunta sai baixa demais, mas eu consigo entendê-la. Já está tenso de novo, hiperventilando, em pânico.

— O que eu disse, Arius? Está tudo bem? — Quando dou um passo em frente e recua. O que é que eu fiz?

— Tem a certeza do que disse agora? — As mãos, antes fechadas em punho, quando abertas tremem. — Por favor, me diga tudo com cuidado.

— Do rapaz? — Abana com a cabeça, confirmando. — Não era muito alto, era magro e tinha o cabelo verde. Também usava uma pulseira da mesma cor, estava vestido como os outros que vinham comigo.

— Como é que morreu? — Os olhos dele estão ficando vermelhos, como se quisesse chorar, a sua postura é que me assusta. Como se estivesse pronto para saltar para cima de mim. O que fiz foi assim tão mau? Ele conhecia o pobre rapaz? Ele era um humano como a Heli, será que era um amigo seu?

— Quando o virei tinha muitas lâminas espetadas nas costas. Você o conhece? — Antes mesmo que termine ele deixa se cair de joelhos, como se tivesse dito a pior coisa do mundo. — Eu não o matei, Arius. Desculpa. — Sinto que devo me desculpar com ele mesmo sem saber o que está acontecendo. Nesta altura já estou chorando sem perceber o porquê. Sinto que algo o está perturbando a sério, nunca o vi desta maneira.

— Por isso é que não teve reação quando comeu a carne no jantar. — O que ele quer dizer com isto?

— Arius, por favor me diga o que está acontecendo. Não estou percebendo.

E quando o seu olhar cai em mim depois de tanto tempo me evitando eu só leio uma única coisa:

Medo.

Ele está com medo de mim.

— Mano, dói-me a cabeça. — O Bo sai do quarto atrás de nós, com a mão na testa. Quando cai de joelhos corro até ele e ouço o Arius gritar alto.

Quando olho para trás novamente ele está completamente louco, o seu corpo treme todo enquanto ele tropeça nos próprios pés para fechar todas as janelas da casa, trancar a porta e fechar todas as persianas.

Ele inspira e expira tão alto que parece que a qualquer momento pode desmaiar, tem as bochechas vermelhas e os olhos arregalados.

— Arius! — Grito alto e faço-o parar, aqueles olhos azuis estão quase pretos, parece tão assustado. — Por amor de deus, diga alguma coisa!

— Ele vai parar de sentir dor. — Aponta para o Bo, que uns segundos depois se levanta e abana a cabeça, confirmando que realmente parou. — E ele vem aí. — Agora aponta para a porta.

— O Kaydon? Ele esteve aqui?

— Ele ouviu. — O Arius leva as mãos ao cabelo e o puxa para trás, desesperado.

— Ele sabe que eu sou como vocês. — Concluo, e a sua cabeça nega múltiplas vezes.

— Não. Ele sabe que você se alimentou dele.

— Qual é a diferença? — O Arius corre pela casa inteira, reconfirmando se fechou realmente tudo. E eu chego ao meu limite, sento o Bo no sofá e ando até ele, puxando-o pelo braço. Ele evita o meu toque, quase fugindo de mim. — O que tem esse rapaz? — Ele faz um som de sofrimento e passa a mão pelo rosto.

— Ele era um Bruisan.

Como?

E agora entro eu em pânico.

Os pulmões não têm espaço para o ar que quero colocar cá dentro.

— Tem a certeza que é esse o rapaz?

— É o único que tinha cabelo dessa cor. Eu procurei por todos os humanos nas fichas para encontrar a Heli. Tenho a certeza.

— O que é que eu sou? — Não consigo falar mais, não consigo sequer pensar direito.

O que quer isto dizer?

Percebo agora o que ele quis dizer com o não ter reação no jantar do Kaydon, devia ter tido a reação do Arius e não tive nenhuma. Por isso pensavam que era humana quando afinal, sou outra coisa completamente diferente. Só não como carne humana, mas sim da espécie que pensava que era.

Porque é que o Arius está com medo de mim? Pensa que o vou atacar?

— Ele está aqui! — O Bo entra pelo quarto aterrorizado, e logo depois a campainha toca, uma e outra vez.

— O que ele vai fazer comigo? — Ando até a porta, mas sou parada pelo Arius.

— Coisas más, Lace. Não vá.

— Então ele vai desistir se eu não for, é isso? — Não responde, porque sabe a resposta.

De repente o Arius faz um aceno com a cabeça, como se tivesse decidido algo e abre a porta.

Pega-me no braço e obriga o meu corpo a ficar atrás dele enquanto anda para o portão. O Bo fica na porta, obedecendo ao simples olhar que o irmão lhe mandou. Colo-me às suas costas, sentindo o aperto demasiado forte na minha pele.

Tenho o coração a mil quando finalmente ele abre o portão, o Kaydon não está muito longe, está no meio da rua deserta, como não está aqui ninguém? Deviam ter carros ou pelo menos pessoas passando, será que foi ele que as expulsou? Não é assim tarde para estar tudo tão quieto.

Ao seu lado está o garoto de sorriso estranho, aquele que me apanhou e me levou para a floresta, acho que o seu nome é Sin. Aquele sorriso aparece mal me vê. E à sua volta estão pelo menos 10 homens, todos mantendo a sua distância.

— Olhe só que riquinho, defendendo a sua donzela. — O Sin fala com um tom adorável forçado.

— Defendendo um monstro! — Um dos homens grita alto.

— Não seja difícil, Arius. — O Kaydon começa. — Você descobriu comigo, eu vi o medo nos seus olhos. Entregue a besta, ela fica bem comigo.

— Ela não vai fazer mal a ninguém, não sabe o que é.

— Ela se alimentou de um dos nossos! — O berro que sai da garganta de Kaydon dá-me arrepios. Porque me chamam de monstro se são eles que estão aqui, me querendo levar?

— Você pode desistir, ninguém a vai levar.

— Quantos de nós vão ter que morrer para você perceber que ela é uma ameaça? E se a meio da noite lhe der a fome? E se ela se alimenta de você?

— Eu nunca faria isso. — Falo baixo, apenas o Arius me ouve, vira o pescoço para o lado para poder olhar para a menina atrás de si encolhida de medo. Ele não acredita que o podia magoar, certo?

— É melhor que ela venha pelo próprio pé, não me obrigue a arrastá-la. — Acho que passam alguns segundos de silêncio, mas para mim foram como horas de olhares intensos. Cada um está pensando no que deve fazer, mas o Arius mantém-se firme. — Sin.

Basta-lhe a palavra para o garoto levantar o braço e atirar um dos espinhos brancos que lhe sai da mão, exatamente como vi o Arius fazer.

Quando o Arius cai de joelhos é que começo a gritar.

Aquilo atingiu-lhe a perna, passou de um lado ao outro, ele está sangrando. Porquê tanto sangue?

— Para! — O grito é tão esganiçado que não parece meu, levanto a mão e coloco-me em frente ao Arius para o proteger quando o Sin levanta de novo o braço. Enquanto tento ver o ferimento do Arius, perdida na minha respiração e lágrimas, o Sin agarra-me o braço e me arrasta em direção ao Kaydon.

Debato-me contra ele, mas parece ser inútil.

Só consigo ver o Arius se contorcendo de dor, fazendo um esforço para se levantar para chegar a mim. Mesmo cheio de dor tenta rastejar para me ajudar.

O braço que me segura, faz-me pôr em pé. Ele vira-me para si e sorri.

— Vamo-nos divertir com você.

— Não! — Reconheço aquela voz sofrida imediatamente. Quando me viro vejo o Bo correndo ao encontro do Arius, ele parece tão desesperado, tenho medo que faça algo estúpido por ver o seu irmão com dor.

Pego no braço levantado do Sin e o empurro no último segundo antes de ele atirar contra o Bo. E a sua mão apanha-me o pescoço e aperta, com muita força.

— Bo! — Chamo a sua atenção ao ouvir o seu choro. — Porta-te bem. Ajuda o teu irmão.

— Bo? — O Kaydon pergunta ao meu lado, abrindo um sorriso enorme. — Você cresceu e bem, menino.

— Seria divertido tê-lo como companhia, você sabe como são as crianças assim.

— Descontroladas. — O Kaydon concorda com o Sin, tudo isto parece uma brincadeira para eles. 

— Peguem nele.

— Você só me queria a mim, deixa o miúdo em paz. — Mesmo que o ar me escape, puxo a camisa do Sin. Ele só sabe responder com um riso alto.

Me sinto mais que impotente quando o garoto é puxado para longe do irmão.

Luto contra o braço que me amarra o pescoço, esperneio o mais que consigo.

Estou desesperada.

Estou mais que irritada.

Estou prestes a explodir.

E é a voz do Bo, pedindo para que não o levem para longe, que me faz partir.

Grito o mais alto que consigo, salto e abraço a cintura do Sin com as pernas. Agarro-me à sua camisa e pescoço e o atiro ao chão.

Quando me levanto ele não protesta, aliás, não se mexe. Está com os olhos vazios, como se eu já não existisse.

Estou tão perplexa que não noto no que acontece à minha volta. Quando olho para os homens também eles estão parados, alguns estão com os braços à sua frente os abanando freneticamente.

Finalmente o meu cérebro volta a realidade e corro para trás, para o Bo que é largado imediatamente. Ele parece assustado com o meu toque, mas eu o puxo e conduzo-o para o Arius.

— Para onde devemos ir? — Pergunto com pressa.

— O que você fez?

— Como assim o que é que eu fiz? — Estico a mão para o puxar para cima para podermos sair daqui, mas ele não a agarra, mantém-se no sítio de olhos abertos, olhando para todos os lados menos para mim. — Agarra a minha mão, vamos.

— Lace, eu não consigo ver.

— Eu também não.— O Bo diz ainda mais assustado.

— Vai pegar no meu carro, Lace. Rápido.— Ele estica a mão com a chave para a minha esquerda e eu pego nela.

E quando corro para o carro olho para a cena que tenho atrás de mim.

Eles estão todos parados, por isso o Sin me largou e estava tão quieto? Não conseguia ver? Fui eu que lhes fiz isso?

Não pode ser. 

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É verdade, ela não é uma Bruisan como o Arius e o Bo. Ele ficou em pânico porque o garoto de cabelo verde de quem ela se alimentou era um Bruisan. Estava vestido como as vítimas para as confundir e enganar. Mas foi morto, e a Lace se aproveitou.
O Kaydon estava lá quando eles se aperceberam disso e agora estamos nesta situação !!!
Agora a Lace está se a descobrir 😍!!
Vamos ver no que dá, agora é que começa a loucuraaaa

Espero que tenham gostado, não se esqueçam de votar !!

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