Apenas uma Conversa

Arius

Não devia sentir-me assim, não devia estar sofrendo, com vontade de chorar, irritado, exausto, frustrado, prestes a explodir, não devia sentir sequer.

O edifício queimado que tenho em frente faz-me lembrar a minha casa, a minha pequena, confortável e arrumada casa.

O primeiro espaço onde não houve terror, onde podia estar sozinho, em paz, dentro da minha própria cabeça, sem mais ninguém para me atormentar. O meu lar.

Reduzido a cinzas, por caprichos, por sentimentos de possessão de um rapaz que pensa que me salvou. No fundo sei que penso o mesmo, lá bem no fundo vejo o Kaydon como o meu salvador.

O que me ajudou a encontrar uma família, a ver que não estou sozinho neste mundo. Não me importava de matar por ele, não quis saber se estava rodeado de morte e sangue, fazia-o por ele e pelos meus irmãos.

Pelos outros como eu.

Naquele tempo tinha a cabeça noutro lugar, limpa pelo Kaydon, manipulado até pensar que matar era uma coisa boa, um ato de misericórdia para com esta espécie incapaz.

Só depois de anos é que me apercebi que o que estava fazendo era errado, é que percebi que aqueles vómitos, aquele nojo que o meu tio tinha de mim era justificado.

Sou um monstro se penso que posso tirar uma vida, seja de quem for, bruisan ou humana.

Estou feliz por sair, mas também fui feliz por entrar.

Não sei se sobreviveria sozinho, crescendo sem saber o que esperar.

Naquela altura, dar para a comunidade era uma honra, era dar de comer aos meus irmãos famintos, era dar vida e força aos que me rodeavam.

Não via mal num miúdo pré-adolescente tirando vidas inocentes para alimentar dezenas. Um dia foi o meu rei, um deus inalcançável, alguém a quem beijaria os pés.

Hoje é só um inseto que preciso de pisar.

Admirava-o por ajudar os como nós, alojamento, comida, apoio e algumas vezes emprego.

Estou a olhar para os destroços dessa origem de trabalho que o Kaydon dava. O restaurante onde falei com a Lace pela primeira vez, onde a avisei sobre o Kaydon.

Disse-lhe que ele não é flor que se cheire, e a tentei afastar dele desde então, e fiz bem, sei que fiz bem. Não sei o que ele estava a planear, não sei o que teria feito com ela se não tivesse intervindo.

Não sabemos dele há dias, suponho que esteja escondido, mas não sei o que tem nos seus planos. Se atacar, sabe o que a Lace pode fazer e duvido que queira sentir a mesma dor daquele dia.

É como se agora tivéssemos uma arma. Ele deve estar aterrorizado com ela, sem saber o que fazer. Sabendo que quer o dinheiro, e que para isso precisa dela, mas não sabe como dar o primeiro passo.

Reconheço um pedaço dos bancos fofos, um pouco chamuscado mas não totalmente queimado.

- Não sobrou nada. - A voz sobressalta-me, não estava esperando visitas, não quando está prestes a amanhecer e ninguém cruza estas ruas. O homem aparece ao meu lado, de mãos nos bolsos, como se quisesse dizer que não é uma ameaça. Dá um chuto numa placa de madeira preta e ri-se pelo nariz, parece frustrado. - Casas, esconderijos, os restaurantes e as lojas. Ele queimou tudo.- A voz vacila, treme de sofrimento, e eu sei que está falando a sério.

O Kaydon fez isto, queimou tudo como fez com a minha casa, fugiu e fez com que tudo que o ligasse a esta rica família desaparecesse.

O homem dá um passo em frente, tentando chamar a minha atenção. A sua imagem é me familiar, só não consigo situar de onde o conheço.

E aí sorri.

Tem uma cicatriz no lado da boca, e outra igual no outro lado. É mais velho que eu, vejo nos seus olhos que quer que o reconheça. E o dom arranca, o ferver da cabeça, os tremores da pele, e as imagens fluem da sua cabeça para a minha.

- Água.- A palavra sai-me da boca sem que queira. A sua lembrança do pai que o afogava faz com que uma lâmpada se acenda na minha cabeça.

Fui eu que causei aquela cicatriz, furei-o de um lado ao outro quando ele perseguiu a Lace. Fui eu que a salvei dele, na primeira vez que a vi, e lhe despejei um balde de água na cabeça.

Deixou o Bo inconsciente e tivemos que o levar para a casa da Lace, foi a primeira vez que entrei em sua casa. Engraçado como agora vivo lá. Ele é um de nós? O homem abana com a cabeça, percebendo exatamente o que a minha palavra quer dizer, sabe o que posso fazer, conhece-me e reconhece-me desse dia também.

- O que quer? - Ele sabe que me sinto ameaçado, que a sua presença não pode querer dizer coisa boa. Se ele faz parte do grupo de Kaydon, o que está fazendo aqui?

- A flor.- Refere-se à Lace. Sabia que vinha a mando do Kaydon para a vir buscar.- Preciso de falar com ela.

- Não acha que já fez estragos suficientes? E agora vem em nome dele amea...

- Não venho em nome dele, venho contra ele, em favor dela.- Ele repara na minha confusão e suspira.- Alguns de nós acreditamos que não é certo continuar com o Kaydon como chefe.

- E o que isso tem a ver com a Lace?

- Queremos a Flor.- E quando estou prestes a repetir o seu "queremos", vejo-os. Pelos menos quinze rapazes se aproximam, antes escondidos nas sombras. Reconheço alguns, outros parecem novos, mas todos estão exaustos. Uns dias sem sítio onde dormir fazem isso. - Você viu o que ela consegue fazer. Tem o império do pai, podemos tornar-nos muito mais do que somos agora.

- Vocês não a conhecem, e querem-na como líder? - Eles abanam com a cabeça, e a minha boca abre de surpresa, que ideia têm eles? A Lace é apenas uma menina, não quer ser chefe de ninguém, não quer comandar ninguém, só agora se descobriu e já sofreu o suficiente para ficar responsável por tantos homens.

- Ele fugiu, Arius. - Um deles começa, um pouco longe de mim. Um miúdo que nem deve ter os seus dezoito anos. Eles sabem o meu nome? - Queimou as nossas camas, e não nos deixou entrar na sua casa. - Refere-se à única casa que deve se manter de pé, o seu esconderijo, onde ele orquestra a sua caçada anual. - Ele abandonou-nos. Queremos ela.

- Ela também quer vingança, não quer? - A pergunta do homem faz-me pensar, ela faz para não o mencionar, não quer falar em mortes ou em vingança. Mas fá-lo porque se quer esquecer, ou tem medo de enlouquecer se falar dos seus desejos de matar o Kaydon?

Chego à conclusão que não sei o que ela quer. Com certeza não quer que o Kaydon fique com o que era do seu pai, e mesmo que a sua ligação com ele não tivesse sido a melhor, ele continua a ser o assassino do seu pai.

Alguma coisa parecida com vingança deve querer.

Mas não ao ponto de liderar um assalto a casa do Kaydon, certo? Não chegaria a este ponto.

- Arius, isto foi um plano desde o início. Fui eu que a levei ao restaurante pela primeira vez, para que ela o conhecesse. - Até planeou a maneira como a iria conhecer, se fazendo de salvador para conquistar a sua confiança, só não contava que entrasse no meio do seu plano.

- Por favor, não aparecemos na sua casa para não te desrespeitar, queremos a sua permissão primeiro. É só uma conversa, se ela não estiver disposta a isso, tomaremos a casa dele com as nossas mãos.

Sei que isto é ridiculo, que é uma ideia terrível, e definitivamente não a quero por em qualquer tipo de perigo. Mas eu não consigo tirar da cabeça as imagens dela naquele dia, completamente desligada, os olhos vermelhos, a pele arroxeada, o facto de um puxar de mão conseguir mandar abaixo um exército.

Ela é a melhor arma do mundo, é melhor do que nós todos juntos.

Se ela conseguisse controlar... podíamos simplesmente ir a casa do Kaydon, exigir a anulação do casamento, e se algo corresse mal usaríamos o seu dom para fugir. Seria tão simples... Mas seria usá-la.

E eu nao sei se ela está disposta a isso.

Talvez uma conversa não magoe.

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