Capítulo VI - Lívia
Lívia: Você precisa atingir a torre inimiga. Este é o objetivo do jogo.
Ranger Azul: Você só fala, mas fica aí parada.
Lívia: Eu sou um Tank. Eu estou impedindo que você morra.
Defeat
Lívia: Que ótimo! Perdemos mais uma ranqueada.
Ranger Azul: Daqui uma hora o PlayerExpert vai fazer uma live que será incrível. Vai ser x1 contra o El Perro. Você podia ver comigo.
Lívia: Daqui uma hora a mamãe estará em casa, então.
Ranger Azul: Nossa, uma pena.
Ranger Azul: Mas zero chance dela deixar você assistir?
Lívia: Zero chance de eu pedir.
Ranger Azul: Então não peça, só assista. O que ela pode fazer?
Lívia: Nós vamos sair.
Lívia disconnected.
Ranger Azul disconnected.
Desligo meu computador.
Meu celular toca. Estico- me sobre a cama para alcançá-lo. É uma mensagem. Uma mensagem do Gui. Instantaneamente meu coração se enche de calor.
Guilherme Ayad. Soa estranho, mas dê graças à miscigenação pela união perfeita do Brasil com a Arábia. A pele clara, olhos claros, cabelos cacheados de fios grossos, dono de uma boca desenhada a mão, ainda foi abençoado com mais altura do que o suficiente. O Gui não existe. Apesar de eu achar que minha visão dele fica levemente deturpada pelo grande tombo que tenho por ele.
Gui: Oi, gatinha.
Gui: Semana que vem eu viajo com meus pais, estava pensando se amanhã a gente podia se ver.
Gui: Acha que consegue dar uma contornada aí?
Lívia: Creio que sim, estou morrendo de saudades de você.
Gui: Ela ainda me odeia?
Lívia: Com toda a sua força, mas vai passar.
Lívia: Tenha um pouco de paciência.
Lívia: O trabalho dela é um saco.
Gui: O trabalho de todo mundo é um saco.
Gui: Eu quero ser a primeira pessoa em quem você confia.
Gui: Mas a sua mãe fica o tempo inteiro entre nós.
Gui: Depois que o seu pai foi embora ela nunca mais namorou ninguém.
Gui: Está gélida. Ou talvez enferrujada.
Lívia: Isso não é verdade.
Lívia: Ela namorou muitos caras.
Gui: Ela dormiu com muitos caras.
Gui: Ela não entende que isso aqui que temos é muito diferente.
Gui: Você me ama?
Lívia: Amo você.
Gui: O seu sentimento não te diz nada?
Lívia: Se você me amasse teria mais paciência.
Gui: Você pede paciência demais, mas nunca me dá nada em troca.
Lívia: E você só me cobra.
Lívia: Por que faz isso comigo?
Lívia: Você me trata mal.
Lívia: Eu não quero mais conversar.
Gui: Que tua cabeça te guie, e não a cabeça da tua mãe.
Largo o telefone sobre a cama.
Corro para a cozinha. Preciso comer alguma coisa. Assim que a mamãe chegar teremos de sair. Pego pão de forma, queijo e salame. Faço um sanduíche. Espremo algumas laranjas e faço um suco. Como o mais rápido que consigo e corro para o banho.
- Lívia! - É a mamãe.
Desligo o chuveiro com pressa. Saio do banheiro enrolada na toalha.
- Olha os modos, criatura! - Dá-me um tapa no braço.
Corro para o quarto. Meu coração está na garganta.
- Desculpe, mamãe. - Digo-lhe.
Ela segue-me e abre meu guarda-roupas, atira para mim um vestido azul estampado. Abaixa e escolhe uma sandália rasteira, coloca-a sobre a cama.
Eu me visto com pressa, passo um batom modesto e estou pronta. Ela me entrega um perfume.
- Isto é tudo? - Pergunta-me.
Olho-me no espelho e tenho certeza de que estou pronta. Aceno que sim.
- Traga-me uma esponja. - Diz-me ela.
Corro até a cozinha e pego uma esponja nova da porta da despensa. Volto ao quarto e entrego-lhe a esponja.
- O que você esqueceu? - Encara-me impassível.
Minha mente fica turva, eu não sei o que esqueci. Então permaneço calada. Ela se aproxima de mim, segura meu rosto com uma das mãos e vira-o levemente para o lado. Ela põe a esponja atrás da minha orelha e instantaneamente eu me lembro o que esqueci: os brincos. Eu não entendo a importância deles. Começo a chorar.
- Por que está chorando? - Pergunta-me. - Tens medo de mim?
- Agora eu tenho muito. - Eu a olho.
Ela vira meu rosto de novo.
- Eu avisei algumas vezes, não é, meu amorzinho? - Ela me diz com bastante calma. - Agora fique bem quieta. Não precisa ter medo. É para o seu bem. Você não imagina as coisas horríveis que as pessoas podem dizer sobre nós por causa de pequenos relaxamentos que possamos ter. Estou protegendo você.
Ela pressiona um brinco pontiagudo contra a minha orelha. A dor demora a chegar, mas vem forte. Eu quero me abaixar, mas ao vacilar ela levanta um joelho pondo-o na minha barriga, apertando-me contra a parede.
- Fique quieta. - Sua voz surge rouca como um trovão.
- Está doendo, mamãe. - Eu seguro seus pulsos, mas no mesmo instante sinto o brinco transpassar-me pela orelha. Estou chorando mais do que consigo administrar. Começa a me faltar ar.
- Shhh, passou. - Diz-me a mamãe. - Está toda vermelha. Respire. - Ela passa as mãos em meu rosto. - Agora o outro lado. Você terá dois furos em cada orelha, espero que isto te ajude a lembrar de para quê eles servem. Não vacile, Lívia! Nunca. - Ela vira-me o rosto para o outro lado gentilmente, põe a esponja atrás da minha orelha e começa tudo de novo. Eu grito empurrando-a para longe e ela põe o braço em minha garganta. Minha vista escurece e sinto o brinco furar-me a orelha. Ela se abaixa e olha bem no meu rosto. - Agora, sim, você está pronta. - Ela sorri. - Linda como a mamãe. - Ela se levanta. - Lave o rosto, pois vamos sair.
Ainda choro, mas vou ao banheiro e começo a lavar meu rosto na pia. Arrumo o meu cabelo e saio.
Mamãe pega o carro, me sento no banco de trás. Mais uma reunião com a Clarinha. Ela era mais legal quando trabalhava em casa.
A Clara veio de Minas Gerais para o Rio de Janeiro a procura de um emprego e de qualquer lugar que fosse coberto para ficar. Ela disse que não se dava muito bem com a mãe dela, queixa-se de parcialidade. Eu não sei porque eu tenho que estar aqui.
- Você sabe porque temos de fazer isso, não sabe? - Ela lê meus pensamentos. O que eu deixei transparecer? - O seu pai vai tirar você de mim. Ele vai fazer tudo o que for possível. Ele vai inventar mentiras e as pessoas vão acreditar nele, porque ele é muito bom nisso, mas eu só preciso que uma pessoa acredite em mim. - Ela está dirigindo, mas às vezes me olha. - Se você acreditar na mamãe nós ficaremos bem. Vamos sobreviver a isto também.
- Eu acredito na senhora, mamãe. - Tranquilizo-a.
- Depois de tudo o que passei. - Ela me encara. - É o mínimo que eu mereço. Seu pai me destruiu, ele nos destruiu. Ele nos abandonou pelo quê? Por nada. Nos largou ao relento para me ver sucumbir ao tentar cuidar de nós duas, mas ele não faz ideia do quanto eu posso ser forte. - Ela ultrapassa um sinal vermelho e por pouco não somos atingidas por outro carro. - O mundo é um lugar muito perigoso, eu preciso proteger você e para isso você tem que confiar em mim, sempre.
- Eu confio. - Digo-lhe.
- Ótimo. Nós vamos treinar hoje o que vamos dizer ao juiz na audiência. Vai ser como um teatrinho, como eu brincava com você quando era mais nova. - Ela sorri. - Mas precisamos ser convincentes, por isso a Clara precisa estar conosco.
A Clarinha trabalhou para a minha família por cinco anos, depois disso ela foi para a faculdade. Psicologia na melhor universidade do estado. A mamãe e ela logo se tornaram muito próximas. A Clara é uma pessoa frágil, e a mamãe gosta de tomar conta de pessoas frágeis. Tem sido assim até hoje.
Chegamos a um prédio, mamãe mostra algo ao porteiro e ele libera a entrada no estacionamento. O ar aqui embaixo tem cheiro de mofo e óleo queimado de carro. A mamãe fica extremamente fora de contexto nesta paisagem o que é bastante engraçado. Ela desfila nas poças d'água suja como se fossem uma passarela e faz aquela cara de nojo e raiva.
- Vive de dar risada! - Ela puxa-me pelo braço. - Ande!
Prendo a respiração para parar o riso e acelero o passo. Entramos no elevador e vamos direto para a cobertura.
- Não fale sem ser solicitada. Não coma o que eu não aceitar para você. Não se sente antes que eu mande e dê preferência às cadeiras e não ao sofá, por causa dos ácaros, você é alérgica. Não vá nem volte sem que eu saiba.
Se te oferecer alguma coisa, aceite água. Não brinque com os cães, você tem alergia. Não tire os sapatos, tudo neste prédio é extremamente sujo. - Ela sempre diz as mesmas coisas todas as vezes que chegamos aqui. Mas desta vez tem algo diferente. Ela se abaixa e olha nos meus olhos. - Você é feliz. Mande essa cara de pânico para o espaço. Alguma vez eu já lhe machuquei?
- Não, mamãe. - Respondo-lhe.
- Eu sei que os caminhos são difíceis, mas se você não quiser acabar nas mãos do seu pai e da nova mulher dele sem nunca mais poder ver a mamãe você precisa se lembrar de que eu protejo você. Eu sempre protegi você. - Ela sorri.
Eu aceno que sim com a cabeça. Chegamos em nosso andar e a porta do elevador se abre. A Clarinha está bem na frente da porta e nos recebe com um largo sorriso.
- Livi, como vai? - Pergunta-me com entusiasmo. - Eu estou bem, e você? - Respondo-lhe sorrindo. - Estou ótima. - Ela me diz.
- Clara. - Mamãe a cumprimenta.
- Dona Sílvia. - Ela responde. - Bem, entrem. - Nos diz abrindo espaço e indicando a sala de estar da cobertura com a mão.
Nós entramos e nos sentamos em cadeiras. A minha fica ao lado do sofá, ligeiramente virada para a mesa de centro. A da mamãe fica no outro lado da mesinha, bem de frente para mim. Ela cruza as pernas e vira-se para a Clarinha.
- Precisamos de uma estratégia. - Diz-lhe com seriedade.
- Então, dona Sílvia, já teve aquela conversa? - Ela pergunta-lhe com cautela.
- Não vejo necessidade. - Mamãe corta-lhe com rispidez. - Na verdade nós conversamos um pouco durante o trajeto. Cuidei de deixar minha filha a par de tudo o que vai acontecer. - Ela volta a virar-se para mim. - A Lívia já sabe bem o que ela quer.
- Sabe mesmo? - A Clarinha encara a mamãe por alguns segundos depois vira-se para mim. - Livi, você prefere morar com quem?
- Com a mamãe, claro. - Respondo-lhe com um sorriso sem graça. Mas que pergunta! Olho para a mamãe ao que me aprova.
- Muito bem. Parece estar certa disso. - A Clarinha sorri. - E por que você quer morar com a sua mãe? - Suas mãos repousam sobre seus joelhos de forma natural e só agora eu noto suas veias sobressalentes.
- Porque ela me protege. - Respondo-lhe. Estou muito nervosa.
- Muito bom, mas podemos, e vamos, melhorar. - Encara-me. Ela fala bem devagar e pausadamente. - Por que seu rosto está inchado? - Pergunta-me.
Porque eu chorei horrores quando a mamãe furou minhas orelhas, era o que eu queria dizer, mas ao invés disso eu fico quieta e olho para a mamãe que me encara inexpressiva.
- Livi, não importa o que você diga, jamais olhe para a sua mãe antes de responder a alguma pergunta. Eu disse jamais. Eles podem entender isso muito mal. - A Clarinha põe a mão no meu pulso. - Vou perguntar outra vez, agora sempre olhando para mim, por que o seu rosto está inchado?
- Eu chorei um pouco hoje cedo. - Digo-lhe encarando-a com receio.
- Muito bom. Agora lembre-se de não dizer nada que comprometa a sua mãe. - Ela me encara. - E chorou tanto por causa de quê? - Sua voz é suave, mas eu sei que não devo vacilar aqui.
- Estava nervosa com o que vai acontecer hoje. - Respondo-lhe.
- Livi, eu não sou cega, e o juiz dificilmente será. - Ela me olha. - Estou vendo vermelhidão em suas orelhas e em seu pescoço. Vamos tentar outra vez. Você precisa identificar as armadilhas nas perguntas e passar por elas ilesa. - Ela respira fundo. - E chorou tanto por causa de quê?
- Eu furei minhas orelhas esta semana e estou tendo uma reação alérgica. - Respondo-lhe apontando para uma das minhas orelhas.
- Muito bom. E no seu pescoço ainda são sinais de alergia? Seja esperta ao responder. Não tome o caminho mais fácil. - Ela continua sorrindo.
- Não, eu acho. O que tem de errado no meu pescoço? - Passo as mãos pelo pescoço.
A Clarinha sorri e olha para a mamãe.
- Você namora? - A pergunta pega-me de surpresa.
- Às vezes eu fico com o Gui, mas agora não fico mais. - Acabo de me lembrar que a mamãe proibiu a gente. Eu a olho.
- Livi, duas coisas: jamais olhe para a sua mãe enquanto responde uma pergunta, nem antes de responder, nem depois de responder; e nunca, nunca mesmo, desminta a si mesma. Vamos tentar de novo. - Ela respira fundo. - Você namora?
- Não namoro. - Respondo-lhe.
- Acha que vão perguntar isso? - A mamãe a indaga.
Sentada na cadeira com as pernas cruzadas, um cotovelo apoiado no joelho e a outra mão gesticulando agressivamente em direção à Clarinha.
- Não no tribunal, mas a psicóloga vai. Isso ajuda a traçar um perfil para o adolescente e identificar expressões quando ele mente. Então, não minta, Livi. - A Clarinha me encara. - Conte um pouco de verdade. Como é a sua rotina na casa da sua mãe?
- Eu acordo às 6h nos dias de semana por causa da escola, vou à escola e só saio 12h30min, a mamãe me busca de carro, almoçamos às 13h, às 14h eu tenho aulas de inglês e francês que terminam às 18h, a mamãe me busca, nos finais de semana eu acordo às 8h e tenho um nada absoluto para fazer. - Eu a encaro, sei que mandei bem.
- E você só almoça? Você não mencionou suas outras refeições. - Ela me instiga a falar mais.
- Eu tomo café da manhã assim que acordo, lancho na escola, almoço, lancho no curso, janto e antes de dormir eu bebo um leite ou um chá. - Sorrio. Carisma nunca é demais.
- Quando a sua mãe está trabalhando, quem fica com você? Você já é crescida, mas fica muito tempo sozinha?
- Está brincando? Eu fico zero tempo sozinha. Eu almoço no horário de almoço da mamãe, e quando saio do curso ela já está em casa. Exceto aos sábados que ela trabalha até 12h e eu fico em casa à toa.
- O que costuma fazer durante este curto período de liberdade?
- Eu uso a internet, assisto vídeos.
- Que tipo de vídeo?
- Clipes de música do NOW UNITED. - Digo rindo.
- Como é a sua relação com a sua mãe? - A mudança repentina de assunto é realmente um problema.
- Eu me dou bem, né? - Sorrio amarelo.
- Gaguejou, sem firmeza, e você está mais me perguntando do que me respondendo. Com essa pequena frase você acabou com tudo de bom que disse antes. - A Clarinha me repreende. - Seja firme, tenha certeza. Como é a sua relação com a sua mãe?
- Nos damos muito bem, como eu disse, a mamãe me protege. - Digo-lhe com mais firmeza.
- E a sua relação com o seu pai?
- Era boa até eles começarem a brigar e... - Sou interrompida.
- Para. Não mencione as brigas dos seus pais. Eles podem achar que a sua mãe te influenciou por meio disso. Fale apenas de você. E a sua relação com o seu pai?
- Era muito boa, meu pai era legal, eu não entendo porque ele não vem me ver. - Digo-lhe.
- O que mudou na sua rotina desde que ele foi embora?
- Os sábados. Porque ele ficava em casa aos sábados e sempre tinha companhia.
- Livi, você foi muito bem hoje. - Ela me diz sorrindo. - Eu não preparei nada, não tive tempo, mas posso pedir uma pizza. - Ela se levanta e olha para a mamãe.
- Não precisa se preocupar, Clara. Agradecemos por nos receber aqui, mas precisamos ir embora. - A mamãe se levanta. - Vamos, filha?
- Sim, mamãe. - Levanto-me arrumando meu vestido.
A Clarinha se despede de nós com um abraço apertado, desses de quebrar os ossos, e nós vamos embora.
- Lívia, hoje será seu último dia de análise com o doutor Alexandre. - No carro, minha mãe atualiza-me das novidades. - Nós precisamos focar em nossas prioridades, e creio que a Clara seja uma melhor opção para você no momento. - Ela me olha sorrindo. - O que você acha?
- Tudo bem, mamãe. - Digo-lhe.
- Ótimo! - Ela volta sua atenção à direção e saímos do estacionamento do prédio com o carro. - Fico feliz que seja tão compreensiva. Eu sei o quanto apegou-se a ele, mas a ideia é que seja temporário. Porque caso seu pai te tire de mim você jamais voltará a ver o doutor Alexandre. No momento isso faz-se extremamente necessário. - Ela ri. - Você sabe exatamente como é o ogro do seu pai.
Ela dirige até o Centro da cidade, onde encontra-se o consultório do doutor Alexandre, para em frente com o pisca alerta ligado. Eu puxo a alavanca da porta, mas não consigo abri-la.
- Ei. - Ela chama a minha atenção. - Diga ao seu psicanalista que acertarei a consulta hoje mesmo. Explique- lhe que ficará impossibilitada de seguir com o tratamento em face da atual situação de nossa família. Conte-lhe a verdade sobre esta decisão, diga-lhe que decidimos isso juntas, como uma família, dentro do carro, ao analisar nossas opções. - Ela sorri, segura meu rosto entre as mãos e beija minha testa. - Agora você pode ir. - Diz-me ao destravar a tranca da porta.
Eu saio do carro e adentro o prédio arrumando meu vestido enquanto caminho. Sigo para o elevador e pressiono o botão de chamada. Não sinto falta da minha vida com a minha família reunida. Sou uma pessoa horrível por me sentir assim? Eu não sei exatamente porque me adapto bem ao caos. O elevador chega ao meu andar, as portas abrem-se e eu entro. Seleciono o botão de número 3, as portas fecham-se e o elevador põe-se a subir.
Eles podiam ao menos parar com essa ideia de justiça, quero dizer, meu pai sabe que não tem chance de eu ficar com ele, por que ele continua com essa coisa?
O elevador para no segundo andar e uma senhora entra com suas duas crianças. E que pessoas lindas! Ela é baixinha, está um pouco acima do peso, tem a pele branca marcada pela idade e pelo sol, tenho certeza de que tem menos idade do que aparenta.
Seus filhos, um casal, uma menina de madeixas loiras presas em duas chiquinhas, com uma franja curta que mal cobre a testa. Seus fios, apesar de fininhos, não atrevem-se à rebeldia, e seus grandes olhos de cor azul água me encaram com uma curiosidade pertinente às crianças, ela sorri e me encara porque sabe que é uma criança de beleza incomum, ela sabe que eu estou fascinada e quase a invejo.
O menino, igualmente lindo, aparenta ser o mais novo, de comportamento irrequieto aperta todos os botões do elevador assim que a mãe se descuida por um segundo. Ri de forma estridente e debocha do meu fascínio pela beleza de sua família. Seus cabelos loiros dourados estão completamente bagunçados, seus dentes de leite são desalinhados, mas é óbvio que com a troca ele terá um sorriso lindo. Seus olhos têm um tom de azul vibrante, azul turquesa, são grandes, não, são enormes, mas não saltam da órbita.
- Seus filhos são crianças lindas. - Digo-lhe sorrindo ternamente.
- Muito obrigada. - Ela agradece sorrindo e tentando segurar seu pequeno arteiro.
O elevador para em meu andar e eu saio. A porta do consultório fica quase exatamente na frente da porta do elevador. Eu bato três vezes, como de costume, então abro a porta e entro. O doutor Alexandre me recepciona com um sorriso.
- Vamos? - Ele indica a entrada da sala onde fica o divã.
Eu entro e logo deito-me no divã. O doutor Alexandre é um homem de boa aparência, eu diria até muito bonito, costuma vestir-se muito bem, sempre dentro de seu estilo favorito, o esporte fino. Eu não me culpo por repará-lo, pois eu sei que ele é bastante observador também.
- Como foi a sua semana? - Ele pergunta.
- Nada fora do normal. Eu sei que normal não é a palavra que possa descrever bem a minha vida, meu dia a dia, mas, na medida do possível, nada fora da curva.
- Depois de tanto tempo eu ainda não sei como ainda me surpreendo com a sua inteligência, Lívia, isso sim é algo completamente fora da curva. - Ele me diz rindo. - Mas, sem sair das curvas, o que aconteceu nos últimos sete dias? Algo que queira dividir?
- Tá acontecendo muita coisa. - De repente a minha voz embarga, quero chorar.
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