Torta Floresta Negra e o "segredo" - Parte 1
Por Francisco...
Já falei sobre minha profissão, sou cabo da PM e atendo todas as incumbências desse ofício. Não gosto de matar, mas já fiz em legítima defesa, não gosto de bater, mas tem "elemento" que "pede" e leva mesmo. Eu mesmo, ao efetuar prisão já tomei até uma facada, isso no exercício do meu trabalho. Ou seja, não sou o cara que apenas veste uma farda, sou funcionário público que cuida da segurança das pessoas.
Eu me estresso, sim, estresso muito, mas é escolha minha. Nasci pra ser policial e queria ser isso desde moleque. Na época achava que ser policial se resumia em andar de quepe, dirigir um carro legal, ter o estilo da polícia americana, com sirene ligada e uma arma bem grande na cintura. Pensava em minha inocência que poderia matar todos os bandidos e a sociedade seria grata ao Francisco por isso.
Mas muita coisa ficou diferente quando me descobri homossexual na mais tenra idade e pouco tempo depois me abri com a única pessoa que eu sabia que se me desse uma bofetada continuaria a me amar. Minha mãe.
Juro que passei anos odiando o fato de eu não ter um pai e atribuindo isso ao jeitão grosseiro dela, o desleixo na aparência e sua profissão que sempre foi doméstica. Quando jovens e imaturos temos vergonha de certas coisas e me lembro que até uns doze anos eu não tinha muito carinho por ela, apenas medo e respeito.
Lembro de uma surra que ela me deu ao descobrir que eu tinha comprado cigarros com o dinheiro da venda de picolés. Eu era um cara muito alto e por isso achava que era um homem adulto e aquela surra de cinta que dona Itália me deu, ficou marcada de verdade, mas no meu coração. Eu queria morrer, mas queria que ela morresse também. Então ficamos estranhos, pelo menos por dois anos até eu marcar meus quinze anos. Lembro de como foi sentar em frente a ela, com a garganta dolorida, com o choro preso a dois anos e comentar que gostava de um professor de física.
Minhas mãos tremiam, eu suava, minha voz estava embargada e meu coração batia com força, eu sentia um caroço de pedra na garganta enquanto falava com ela, olhando nos seus olhos esverdeados com as lágrimas que não escorriam, mas ficaram paradas em seus olhos.
Quando sua voz saiu não foi chorosa, foi firme e suas palavras duras e verdadeiras:
— Francisco, o mundo não aceita rapazes assim, não gosta de homens assim.
Ela não mentiu, porque eu senti na pele o quão dura e cruel pode ser a vida conosco. Mas naquele momento eu senti que estava mais forte, eu tinha alguém que sabia do meu segredo e senti o caroço na minha goela dissolver, bem como uma cachoeira de lágrimas caíram dos meus olhos. Chorei como se eu tivesse 5 anos e acabado de cair, ralando o joelho e minha mãe corresse pra me acudir. Naquele dia ela o fez, levantou e me abraçou depois de anos dessa "separação" entre nós.
Depois do abraço tomei uma bronca:
— Sim, já começou com viadagem, larga mão de ser chorão, seu piá de bosta.
Essa é minha mãe, sempre foi assim e sempre será. Isso na verdade foi uma demonstração de carinho. Apenas para esclarecer a quem se assustou.
...
— Ai Chico, como sua mãe é braba, eu tenho um medão dela...
Carlinho em todos esses anos se aproximou muito da minha mãe e ela o ama, mas tem dia que o jeito "refinado" dela o assusta.
— Ei pequeno, isso que te contei agora é coisa de 25 anos atrás... — Dou uma risada pra amenizar, mas ele me olha meio assustado ainda. Lindo.
Carlinho acorda cedo pra me fazer café e conversar um pouco antes de eu ir para o meu trabalho. Depois se organiza para atender nossa menina: a Luiza que acorda com os cabelos crespos bagunçados e esfregando os olhos. Nosso falatório acordou a pequena que vem caminhando e arrastando o chinelinho no chão. Logo que nos vê corre em nossa direção e tenta nos abraçar juntos.
— Oi pai e pai... — A voz infantil dela é a mais doce canção aos meus ouvidos.
— Oh minha princesa, já acordou? — Luiza é muito miúda então é fácil pega-la no colo e beijar seu rostinho.
— Uhumm... Pai Chico, me ajudar a achar a Pernoca.
Carlinho mandou fazer uma boneca de pano com cara de acrílico pra Luiza e ela vive perdendo a "tranqueira" que sinceramente me assusta.
— Quem deu esse nome pra "quele" negócio?
— Eu né... Ela tem a perna assim compriiiiida. Ela não é negócio é minha filha, né.
Luiza fala rindo e me abraça apertado, sempre muito carinhosa.
— Viu amor. — Falo com Carlinho que frita uns bolinhos de banana e não para de rir de mim. — Temos uma neta já.
— Ai, Francisco, claro né. Espera Chico... Você tem medo da Pernoca?
— Claro que não, eu dificilmente tenho medo de algo.
A convivência nos torna transparentes. Eu nunca imaginei que o Carlinho ia perceber que tenho medo de alguma coisa além do medo de que aconteça algo com eles.
— Eu só não gosto muito dessas coisas de terror. Depois fico pensativo. É só isso.
— Ah tá... — Carlinho me responde, mas eu percebo um "quê" de peraltice no meu garoto.
— Ei, amor, pra que tanto chocolate e aqueles vidros de cereja?
— Ai, Chico. Tem umas moças do Centro de estética que encomendaram uma torta Floresta Negra, pra de noite.
— Credo, isso parece nome de filme de terror.
— É, mas filme de terror é legal. Espera pra ver a torta pronta...Fica linda.
— Bom, meu amores... estou indo pro trabalho. Carlinho, vou usar o carro pela manhã, mas ao meio dia volto pra levar a Lu pra escola.
Beijo o Carlinho e Luiza e vou para o carro. Quando dou a partida, suspiro: "Ufa, me livrei de ter que achar a boneca".
Minha manhã transcorre dentro da normalidade e volto para o almoço tranquilo. Sou um homem realizado. Sou recebido com um sorriso lindo do Carlinho, um beijinho quente e apaixonado, agora aproveitamos os momentos em que Luiza está no banho ou dormindo pra um amasso que antes rolava em qualquer cômodo da casa.
— Cadê a torta?
— Vou fazer a tarde enquanto a Lu fica na escola... Ai Francisco, ela é tão maravilhosa. Tão inteligente. Mas às vezes fico achando isso tão diferente. Porque eu nunca pensei que ia ser pai. Agora eu olho pra Luiza e fico pensando que sou responsável por ela. Ainda sinto medo.
— Nós estamos juntos nisso, sabe né, meu brigadeirinho.
Beijo o pescoço do Carlinho só para vê-lo arrepiado e dando aquela risadinha, se encolhendo.
— Chico, deixa eu ir dar atenção pra nossa menina, senão ela não sai mais do chuveiro.
— Vai lá. — Sento à mesa e ali está o banquete de um Rei. Eu nunca fui enjoado na comida, odeio frescura na mesa, então arroz, feijão e uma mistura é sempre meu prato preferido.
A tarde tenho reunião com a secretária da educação que vai dar continuidade com o projeto do PROERD e percebo que o universo conspira a favor do Chico aqui, fora das ruas e dentro das escolas. Não acho que tenho aptidão pra conversar com as crianças, mas olhando aqueles rostinhos admirados olhando minha farda, me vejo neles, me vejo pai de todos eles.
— Ei soldado Francisco. Se um dia, quando eu crescer, eu ter amigos que usam drogas e eu só andar junto, posso ter problemas?
— Você tem que conversar com seus amigos... — A aluna me interrompe.
— Tem gente que não adianta a gente conversar, tem que dar uns "tabefes"...
— Mas se você gosta dos seus amigos, vai querer que eles saiam disso, não é mesmo?
— Mas quando a gente é adulto, pode escolher né. Se a pessoa escolhe usar droga é porque é burro.
— Calma, Rafaela...
Isso foi apenas uma memória de uma das turmas com que trabalhei. Descobri que a menina "faca na caveira" é filha do Túlio do Braz e por ela tive um carinho e atenção especial. Rafaela é do tipo que crê e quer que as pessoas sejam corretas e isso dá a nós adultos, alguma esperança de vermos mudanças no futuro.
Será bacana voltar para a escola e aprender um pouco sobre o que posso esperar de minha própria filha. Hoje penso nisso como oportunidade, afinal sou um quarentão e faz bem reduzir a marcha.
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