"Isso é uma grande melhora"

— Precisamos conversar.

     O bicolor engoliu em seco, o temor quanto ao olhar penetrante de Ukyo tão expressivo que O Vazio não conseguiu segurar por completo.

    Sentou-se sobre o chão do observatório, rezando para que ninguém entrasse e escutasse tudo — mesmo que não cem por cento seguro quanto ao rumo do diálogo.

— Claro! Do que precisa, Ukyo-chan? De um conselho? De mais mão de obra p'ra um trabalho terrivelmente pesado? — fingiu-se de sonso, o sorrisinho falso transbordando alegria e drama.

     O ex operador de sonar seguiu de braços cruzados, analisando ao amigo friamente desde a porta. A luz do Sol, naquele ângulo, fazia-o parecer um anjo.

— Eu ouvi choro na floresta ontem.

     Asagiri sentiu o chão desabar. Vazio e vazio e vazio bloqueavam as emoções, mas não a palpitação e a falta de ar e a cabeça girando sem nem sair do lugar.

— Nossa, sério!? — vestiu uma cara de preocupação, cobrindo a boca com a destra — Que coisa!

Pois é. — concordou, sombrio — ' não vai nem acreditar quem é o Alecrim Dourado.

     O tom sério e rígido fez um calafrio percorrer a espinha de Gen.

     Ukyo poderia ser gentil, prestativo, empata e mais uma longa, longa lista de adjetivos positivos, mas nunca poderia esquecer-se de que ele já foi da Marinha Japonesa. Ele viu e fez coisas complicadas e moralmente cinzas durante sua carreira.

     Por mais que parecesse uma flor delicada e perfumada, seus espinhos com certeza dão medo a qualquer ser dotado de senso.

Saionji suspirou, descruzando os braços. Caminhou até o amigo, sentando-se ao lado do mesmo. Não olhou para ele ao perguntar:

— Sabe por que eu entrei p'ra marinha?

Intrigado, Gen respondeu que não. Tinha suas suspeitas, mas nada concreto.

— Eu queria proteger pessoas. — brincava com seus dedos, recusando-se a mirar ao amigo — Minha audição sempre foi aguçada, então operar o sonar não era especialmente complicado. Sempre recebi elogios dos meus superiores por isso.

"Nesses anos em que trabalhei lá, eu presenciei muitas situações complicadas: tsunami, terremotos, deslizamentos, acidentes em alto-mar, tráfico, tempestades e várias outras coisas. Já vi muita, muita gente inocente morrendo bem diante dos meus olhos sem que eu pudesse fazer nada p'ra impedir."

Soltou uma gargalhada infeliz, cobrindo o rosto com as mãos.

P'ra um pacifista de merda como eu, isso tudo foi horrível, no mínimo. Na verdade, acho que ia ser difícil de engolir p'ra qualquer um que tivesse o mínimo de humanidade. Acontece que eu sou sensível demais.

Recolheu suas mãos. Gen notou lágrimas acumuladas em seus olhos, prontas para cairem como chuva.

— Meus pais disseram p'ra eu desistir. Meus colegas disseram p'ra eu desistir. Meu superior, apesar de gostar de mim e admirar meu desejo, disse que era melhor eu desistir antes que eu enlouquecesse. Mas eu não fiz isso.

Engoliu saliva. Foram cinco segundos de silêncio até completar:

Alguém tem que lembrar de todos eles. Alguém tem que ir pro templo rezar por eles. Alguém tem que se importar. É o mínimo que eu posso fazer, Gen.

Finalmente enxergou-o, lágrimas irrompendo de suas orbes verdes penetrantes. O mencionado sentiu-se arrepiar, o peso da confidência esmagando O Vazio.

— Se eu rezo pelas almas de pessoas que não conheci, você espera mesmo que eu simplesmente ignore o fato de que um amigo precioso meu chorou daquele jeito no meio da floresta?

Foi a vez do bicolor engolir em seco. Baixou o olhar.

— Não quero incomodar. — foi sincero dessa vez, não conseguindo mentir, a voz embargada — E ... talvez isso — apontou para o próprio peito — seja demais p'ra se lidar.

— Talvez seja. — concordou com um sorrisinho dolorido, lágrimas ainda formando toda uma bacia hidrográfica em seu rosto — Mas se realmente for demais, você não consegue sozinho. Daí ... a gente fica na merda juntos. E isso é mais leve que 'ta na merda sozinho.

Sentiu a própria visão embaçar. Engoliu saliva, que desceu como vidro. Respirou fundo.

Como transformar vinte anos de dor e solidão em palavras?

— A primeira lembrança que eu tenho é da minha mãe apanhando do meu pai. — começou — Ele era um vigarista aproveitador de primeira, mas burro demais p'ra enriquecer, e como ele bebia como se não tivesse amanhã, o dinheiro era sempre contado. Não sei como ou porquê ele casou com a minha mãe.

"Ela foi, literalmente, a única coisa boa que me aconteceu. Brincava comigo, me abraçava e até me levava p'ra sair quando conseguia. O dinheiro era sempre muito, muito curto, mas ela fazia cada segundo valer a pena.

Foi ela que me levou p'ra um show de mágica pela primeira vez. Eu me encantei pelos truques e por como o cara fazia todos se maravilharem e esquecerem da droga do mundo por umas horas. Foi ela que me deu o meu primeiro baralho e fingiu cair em todos os meus truques de cartas idiotas.

Mas, quando eu tinha uns cinco anos, o meu pai chegou bêbado em casa e foi bater nela de novo. Daquela vez, foi diferente: ela fugiu. Nunca mais voltou, me deixando ali com aquele marginal."

Abraçou seus próprios joelhos, água irrompendo ininterruptamente de suas orbes azul-acinzentadas.

— Uma parte de mim preferiu achar que ela tivesse morrido, já que ela não voltou, mas não foi bem assim. Encontrei ela trabalhando numa sorveteria do outro lado da cidade uns sete anos depois. Ela parecia ... feliz sem mim.

"Na escola, nada muito melhor: todo mundo sabia o que o meu pai fazia e me taxava como manipulador e mentiroso. Não queriam me emprestar nada ou sequer ficar comigo durante o intervalo. Eu não tinha muito dinheiro p'ra merenda, então sempre trazia pouca coisa, e eles achavam que eu fazia de propósito p'ra terem dó de mim e dividirem o lanche deles comigo.

     A droga do meu cabelo de duas cores chamava a atenção, e também me tachavam de aberração. Me chamavam de 'Cruella', 'Dálmata' e coisas assim. Pode parecer idiotice, mas isso machucou bastante.

     Fora as suspeitas de que eu fosse bissexual quando eu entrei pro segundo fundamental e todas as brincadeiras e apelidos que isso acarretou: 'bichinha', 'menininha', 'vadiazinha', 'galinha' e merdas assim. Os meninos nem chegavam perto de mim e as meninas riam da minha cara.

     Eu não tenho facilidade nenhuma com a maioria das matérias da escola, então eu estudava muito, muito mesmo a todo momento, porque o meu pai continuava alcoólatra e eu não queria dar motivos p'ra ele me bater como batia na Mamãe. E eu ajudava com tudo o que qualquer um precisasse: regar plantas, fazer orçamentos, organizar a biblioteca e coisas assim.

Eu achava que, se eu fosse bom e dedicado e esforçado e prestativo e gentil, isso tudo ia parar. Que era só uma fase.

Acontece que não foi."

Escondeu o rosto entre os joelhos. Soluços mudos faziam seu corpo todo tremer.

— Eu continuei motivo de chacota até entre os professores. Eu continuei sendo o falso, o estranho, o aproveitador, a bicha nojenta. Mesmo com minhas notas boas e todo o esforço colossal que fazia p'ra ajudar a todos os ingratos naquele inferno.

"Nunca namorei. Ninguém nunca mostrou interesse em mim pelo que eu sou. Na única vez em que me declarei, a garota picou a merda da carta em pedacinhos, riu da minha cara e me olhou como se eu fosse um verme. O único quase namorado que eu tive gostava de mim pelo meu físico, mas eu 'tava machucado demais p'ra dar uma chance de ele me conhecer. Tudo foi por água abaixo de vez quando um estagiário desgraçado me confundiu com o ex dele e tirou o meu BV e BVL na frente do cara."

     Silêncio e silêncio e mais silêncio.

     Respirou fundo, levantando a cabeça e enxugando o rosto com a manga de sua yukata. Vestiu mais um de seus sorrisos falsos, O Vazio latejando.

— Mas isso aconteceu antes da petrificação. Eu 'to melhor, agora! Quer dizer, eu não sinto mais nada quando lembro disso! Isso é uma grande melhora. Eu já até aceitei que sou uma pessoa desprezível, má e horrível. E, de qualquer jeito, o que você faz quando se tem dezenove anos de trauma? — soltou uma risadinha nervosa ao perceber a incredulidade no olhar de Saionji — Você- ...

     O albino tomou-o pelos ombros, a voz tão firme que O Vazio foi ao chão de novo:

— Você CHORA, Gen Asagiri! — orbes verdes como pradarias encontraram as azul-acinzentadas feito o céu nublado, rasgando-lhe a alma ao meio — Você conta pros seus amigos te ajudarem. Você não engole a merda dos traumas e definha lentamente, porquê adivinha: se antes ' 'tava sozinho, agora tem um monte de gente que quer te ver sentindo coisas boas!

     Um tsunami de água e emoções descontroladas saiu de onde O Vazio ruiu pela segunda vez.

     Ukyo abraçou ao amigo, que deixou-se chorar o que ainda precisava.

— Você chora, seu idiota. — repetiu-se, a voz embargada por ver Gen de tal forma.

Por não ter notado antes. Por ninguém merecer uma dor tão grande. Por ser um sensível de merda.

     Por Gen ver apenas seus cascalhos e ignorar suas pérolas – que foram desprezadas por porcos nojentos e cruéis durante tempo demais.

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