"A minha bola de cristal quebrou, sabe?"
Senku ficou encarando a porta do observatório por onde Ukyo saiu até que Yuzuriha irrompeu desde o mesmo lugar.
Ela estava pálida, ofegante e preocupada.
Senku detestava vê-la assim. No entanto, tudo o que saiu de sua boca, entre um tossido ou outro, foi:
— Também veio me dar pito? Acho que o Ukyo já fez um trabalho decente quanto a isso uns minutos atrás, sabe?
A castanha nem se incomodou em rebater. Foi sentar-se à sua frente a passos largos, questionando sem delongas:
— O que aconteceu?
— O Ukyo não te contou? — desdenhou, voltando a fazer seus cálculos para não ter que encará-la.
— Não. E mesmo que tivesse contado, eu ia querer escutar o seu lado da história também.
Durante um minuto inteiro, o único som emitido naquele observatório foi o riscar do carvão no papel, fora o burburinho e a agitação porta afora.
Yuzuriha esperou pacientemente, sem desgrudar o olhar do amigo. Afinal, queria respostas, e apenas Senku poderia dá-las.
Suspirando com resignação, perguntou:
— Eu não tenho nem um milímetro de chance de escapar dessa falta de lógica toda, né?
— Dez milhões de pontos pela sua percepção, Senku.
Suspirou, massageando as têmporas.
— Não faz sentido.
— O que não faz sentido? — inquiriu, incisiva — A briga? A raiva do Gen? A raiva do Ukyo? O que não faz sentido p'ra você, Senku?
O albino não respondeu de cara. A castanha perpetuou o silêncio. Orbes castanhas encontraram-se com as rubi por um momento antes que as últimas tornassem a se desviar até os cálculos complicados nos papéis.
Ishigami engoliu em seco.
— O Mentalista teve tudo o que quis. — começou, observando o céu nublado desde a janela, brincando com o lápis — Pais que não deixaram ele p'ra trás, fama, dinheiro ... o que eu poderia falar que deixaria ele mal assim? Eu sou tão insensível assim?!
Yuzuriha procurou a mentira no rosto dele.
Não a encontrou.
Deu um sorriso muito, muito triste.
— Senku ... qual é a especialidade do Gen?
Franziu a testa, confuso, tornando a encara-la.
— Ser um mentiroso de merda?
— Exatamente. — entrelaçou aos próprios dedos, encarando-os e questionando-se como ela própria não confrontou ao bicolor quanto a isso — E um bom mentiroso faz o quê?
— Mente p'ra conseguir o que quer. — fechou ainda mais a cara — Como ele sempre fez. Onde quer chegar com isso?
Respirou profundamente, não querendo acreditar no que estava pensando, mas vendo-se incapaz de ignorar os sinais e pistas que o amigo mais velho deixou para si. Apertou os olhos, sentindo o peito contrair dolorosamente ao dizer:
— Quem garante que essa vida fácil e feliz dele não passe de lorota?
— E quem não garante?
— Eu tive ... uma conversa com ele enquanto eu usava o tear, uns meses atrás. — revelou, tensa — Chegamos a falar sobre terapia em grupo por causa de questões com nossos pais. Ele ... ele disse que não iria participar para não arruinar a imagem que temos dele.
— ... 'Cê 'tá de brincadeira, não 'tá?
— Quem dera ...
Senku lembrou de todas as vezes que ele desviou do assunto quando perguntavam detalhes sobre o seu ensino médio.
Lembrou de algo diferente nos olhos dele quando falava sobre sua mãe – e que a mesma só estava presente em anedotas que datavam de seus cinco anos para baixo.
Lembrou de colegas de classe, anos atrás, pontuarem como sua vida privada e familiar era misteriosa e completamente desconhecida pelo público.
Lembrou de como ele falou dos biscoitos de hortelã da mãe e do Papai Noel.
Lembrou de orbes azuis com uma dor muito, muito grande direcionadas a si em um borrão no fundo de sua memória.
Lembrou do tratamento distante e frio que trocaram durante semanas.
Lembrou das lágrimas que viu se acumularem nos olhos do bicolor antes que saísse correndo do observatório.
Lembrou da raiva e desespero de Ukyo.
Nada fez sentido, mas fez sentido também.
Trincou a mandíbula, segurando o lápis com força.
— Que ... que ... merda! — apertou a ponte do nariz, falando entredentes de raiva.
Yuzuriha tombou levemente a cabeça, analisando ao amigo.
— Você se lembra do motivo de vocês terem brigado? Não agora, mas antes?
— Não. — forçou-se a recordar aquela fatídica madrugada, não conseguindo nada além de um olhar machucado num borrão turvo — E quando eu fui perguntar, o Mentalista não quis me dizer.
— Imagino ... que ele não queira reviver isso.
— Por que ... por que emoções são tão ilógicas!?
— Não acho que sejam necessariamente ilógicas. — deu de ombros, divagando ao observar o céu pela abertura do observatório — Acho que o ser humano que é muito idiota e não consegue entender a lógica por trás delas.
Muitas coisas envolvendo "Gen Asagiri" e "emoções" passaram pela cabeça de Senku de uma vez só. Não soube verbalizar nenhuma delas, muito menos teve coragem de mostrar tamanha vulnerabilidade a Yuzuriha.
Não tinha coragem de assumir suas vulnerabilidades nem a si mesmo, na verdade.
Não depois daquela noite borrada a qual fazia questão de empurrar para os confins de sua mente.
Estalou a língua no céu da boca, quebrando o lápis ao meio de tanto apertá-lo.
— Ele não te odeia, Senku.
A troca de olhares seguida de tal comentário foi tão tensa que, mais um pouco, o ar trincava.
— Como é?
— O Gen não te odeia. Não ainda. — inclinou-se em sua direção, séria — Por isso, você tem que pedir desculpas.
— Como eu vou me desculpar se eu não tenho nem um milímetro de certeza do que machucou ele p'ra começo de conversa!? A minha bola de cristal quebrou, sabe?
— Sinceridade deve bastar, Senku.
— Não teve uma vez que eu fui sincero e que as pessoas não me detestaram, Yuzuriha.
— Eu e o Taiju te odiamos? O Chrome te odeia? A Suika e a Kohaku te odeiam? O Kaseki te odeia? — inclinou-se ainda mais para frente, buscando o olhar do amigo — Porque você nunca fez questão de agradar nenhum deles, muito menos fingiu algo p'ra isso. Mesmo assim, ninguém te odiou.
O garoto mordeu as bochechas internas, apertando a ponte do nariz. Seus olhos fugiram dos dela, com medo do que poderia confessar caso trocassem olhares.
— Não deixa o seu orgulho matar a sua amizade com o Gen. — pediu com voz suave, chegando ainda mais perto — Ou, pelo menos, não deixa o Gen odiar você e a si mesmo por uma briga.
Quando, depois de quinze longos minutos de silêncio, Ishigami continuou sem se manifestar, Yuzuriha suspirou com resignação e foi-se embora.
— O Gen provavelmente vai voltar ainda mais doente por conta da neve e do vento. 'To indo ajudar a preparar tudo p'ra receber ele.
Assentiu, sabendo que ela não havia visto. Encarou seus cálculos inacabados, como se eles tivessem a resposta para seus "problemas ilógicos".
Senku não soube o que fazer com as novas informações e coisas desenterradas de sua memória. Pior ainda: desta vez, jogar tudo para debaixo do tapete e fingir que elas não existem ou machucam (tanto a si mesmo quanto aos outros) não era uma opção.
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