2. Noite de caça 2.0
𝚄𝚖 𝚍𝚒𝚊 𝚊𝚗𝚝𝚎𝚜 𝚍𝚘 𝚜𝚎𝚞 𝚙𝚛𝚒𝚖𝚎𝚒𝚛𝚘 𝚝𝚞𝚛𝚗𝚘, Richard se encontrava sentado à mesa da cozinha, separando pedaços de jornal com ofertas de emprego.
Por mais que ele insistisse que aquilo estava organizando, não passava de uma grande bagunça. Pedaços de papel recortados cobriam toda a superfície do móvel, que já chegava a transbordar. Havia também lixo no chão.
O relógio marcava uma da manhã, mas Richard continuava concentrado, sempre tirando os cabelos do rosto quando caiam sobre os olhos.
Não fazia muito tempo desde que ele havia chegado a Vulpine Beach. Uma semana, no máximo. O rapaz estava alojado na casa dos tios, que eram os únicos parentes próximos que moravam naquela região.
Aquela pequena parte de sua família possuía uma casa no subúrbio, e sempre que fosse preciso chegar ao centro, era necessário pegar um ônibus. Dependendo da disponibilidade, a espera poderia ser de regular a longa... No mínimo, eram vinte minutos, mas em alguns casos, poderia chegar a demorar uma hora. Um padrão imprevisível de qualquer maneira, que Richard já tinha desistido de entender.
A casa era bem antiquada. Possuía dois andares e um tom acinzentado nas paredes externas, que um dia já foram brancas. O que mais destacava o domicílio das outras construções da vizinhança era o grande quintal, que se assemelhava mais a um matagal de um terreno baldio. A causa disso, obviamente, era a falta de cuidado e manutenção do jardim, que estava abandonado há anos, uma vez que ninguém se dispunha a trabalhar nele. Os tios não tinham dinheiro de sobra para contratar um jardineiro, ou simplesmente, não se incomodavam com isso. Apesar de tudo, o lugar ainda tinha grande conforto. Richard tinha até mesmo um quarto próprio no segundo andar.
Havia apenas poucos meses desde que o rapaz se formara, e, ele ainda não tinha a mínima ideia de que rumo profissional seguir. Sua real intenção era somente arrumar um emprego de verão provisório para conseguir ganhar algumas pratas. Só não tinha feito isso em sua cidade natal porque achou que fosse melhor mudar um pouco os ares. E agora, lá estava ele.
Richard, primeiramente, escolheu algumas opções que tinha separado por eliminatórias, que no total eram cinco. O que mais lhe chamou a atenção foi o emprego de guarda-noturno em Oz Park, também conhecido popularmente como Blueberry's Oz Park. O local consistia em um grande parque de diversões, umas das únicas atrações turísticas que ainda restavam na cidade. Em contraste, só iam para lá turistas mesmo, todos forasteiros, porque os próprios moradores de Vulpine Beach evitavam aquele lugar a todo custo.
Surpreendente, o rapaz nunca havia ido ao parque, apesar de ter passado quase todas as suas férias de verão da sua infância na cidade. Pelas escassas lembranças que tinha, sempre acontecia algum tipo acidente que acabava interditando o lugar, e quando não era isso, seus pais sempre arrumavam alguma outra desculpa para não o levar.
Tinha noção dos desaparecimentos de anos atrás, mas ainda sim, Richard não temia aquele lugar como os outros. De qualquer jeito, eram muitos rumores. Era impossível diferenciar o que tinha realmente acontecido do inventado, sem falar que ele não tinha medo de fantasmas. A verdade é que as pessoas sempre tiveram a tendência de exagerar nos fatos, e também, o rapaz não tinha nada com que se preocupar. Haviam mais prós do que contras: o salário era relativamente alto e o cargo não requeria especialização. Qualquer um poderia ser um guarda-noturno desde que seguisse as regras.
Quando Richard foi dormir e acordou no dia seguinte, pela manhã, ele achou melhor pedir uma última opinião de alguém importante sobre o emprego. E estava falando de um amigo.
Tinha um único amigo na cidade. Seu nome era Johnny e ele vivia em Vulpine Beach desde sempre. Era o tipo de pessoa que ele só via nas férias, mas nem por isso, eles tinham perdido contato.
Acabou ligando para ele. A princípio, como os seus tios, o amigo não gostou muito da ideia, mas também não tentou impedi-lo. E, para a sua surpresa, Johnny até citou depois que tinha tido um colega de classe que uma vez tinha trabalhado naquele mesmo cargo antes, mas que agora, trabalhava de dia em um escritório, na administração do parque. Mil exemplos foram dados de como aquele colega não batia bem da cabeça depois disso, e de que ele insistia que "os animatrônicos tinham um comportamento estranho durante a noite". Richard acabou ignorando de qualquer jeito. Era típico do amigo desde criança sempre tentar assustar os outros com bobagens.
Com sua decisão já tomada, o rapaz foi em busca da entrevista de emprego.
Quando ele chegou no escritório indicado no prédio de administração, parou em frente da porta e olhou ao redor. Surpreendeu-se com o fato de que, por sorte (ou não), ele era o único candidato.
Não tardou para que ele fosse chamado. Entrou no cômodo e conforme o gesto do homem acomodado do outro lado da mesa, sentou-se na cadeira a sua frente, aguardando pela entrevista que iria começar.
A sala era espaçosa e cheia de tralhas temáticas do parque, mas o que mais chamava a atenção era a pelúcia de um guaxinim azul em cima da mesa, que devia ser uma das mascotes do parque. Aquilo não combinava nada com o dono daquela sala. Chegava a ser ridículo.
O sujeito que iria realizar a avaliação tinha um ar quase severo e uma profunda expressão de cansaço, que, ainda, sim, conseguiram deixar Richard um pouco intimidado.
– Então, você é o que se interessou pelo cargo? – começou ele, em uma voz rouca.
– Sim, sou eu – Richard respondeu em um ar simpático, desviando o olhar do brinquedo e entregando-o um documento.
Não havia muita coisa escrita no papel, mas aquilo era só para manter as formalidades.
O homem deu uma olhada rápida sem muito interesse. Em seguida, abriu a gaveta de sua mesa, tirando de lá uma folha.
– Preencha os formulários se você realmente quiser o emprego – o homem entregou o papel – recomendo que leia com atenção, é uma norma da empresa.
– Então... E só eu assinar que estou contratado? Não há outros candidatos? – Richard perguntou, surpreso com a facilidade daquilo.
– Contratado? Sim, sim,... É só assinar o formulário. E... É, você é o único.
Estava óbvio que o homem não queria entrar em detalhes, mas Richard não se incomodou com isso. Voltando ao que realmente importava, o rapaz deu uma olhada no papel, que, por conveniência, tinha apenas uma página e letras grandes. Se tratavam apenas de regras simples... E estranhas. Coisas como "Não nos responsabilizamos por acidentes de trabalho, ferimentos, etc." ou "Evite conversar com os animatrônicos".
– Os robôs ficam... Digamos que, estranhos, a noite, mas nada com que você precise se preocupar. Apenas os evite para não causar problemas e você ficará bem – o sujeito esclareceu, lendo a expressão confusa do novato.
Fazia tempos desde que o setor não via um rosto novo, mesmo oferecendo um salário alto. Os últimos quatro guardas-noturnos tinham pedido demissão logo no primeiro dia. Mas todos eles tinham algo em comum: nenhum deles era morador de Vulpine Beach. Os candidatos sempre eram de fora, porque os próprios cidadãos da cidade evitavam até mesmo pisar no parque, tudo graças à Vixen e seus feitos. Quem diria então trabalhar lá, ainda por cima à noite? Quanto tempo aquele novato iria durar?
Bem, não posso ajudar esse jovem ou sequer falar algo, mas garanto que ele vai se sair bem. Provavelmente, vai largar o emprego por si mesmo em um ou dois dias, pensou o homem, admirando a "coragem" do rapaz. De qualquer maneira, ele tinha coisas mais importantes para se preocupar.
– Estranhos? Como assim estranhos? – Richard piscou confuso e entregou o documento assinado.
– Provavelmente só um mal-funcionamento no sistema ou coisa parecida – ele pausou por alguns segundos, logo depois dando um sorriso aberto e radiante, porém tão falso que seria distinguível a vários quilômetros de distância – você começa hoje mesmo. Seja bem-vindo oficialmente a nossa família – e estava com um tom de entusiasmo tão forçado que quase parecia sarcástico.
***
Dois dias depois desde a sua entrevista, Richard iniciou a sua noite de trabalho pela segunda vez, entrando no seu escritório.
No turno anterior, ele havia conhecido Oliver e Oscar, dois dos vários mascotes do parque (embora ele estivesse convencido de que tudo aquilo não tinha passado de um sonho).
O vigia não ainda não tinha visto, mas sabia que existiam muitos outros robôs lá, de diversos tamanhos e cores diferentes. Os dois que tinha conhecido, Oliver e Oscar, não ultrapassavam o tamanho de uma criança de dez anos, mas os que tinha observado por cartazes pareciam maiores do que um adulto de estatura mediana.
Caso o ocorrido da noite passada fosse real, Richard realmente desejaria que nenhum outro animatrônico aparecesse em sua sala, coisa que, para a sua infelicidade, tanto da saúde mental, e muito provavelmente física, iria acontecer pelo menos mais de uma vez.
O clima ainda estava fresco e úmido lá fora, e o céu, nublado, por conta da tempestade da noite passada, mas, dentro da sala, o ar estava surpreendentemente quentinho e aconchegante, quase como um secador de cabelo depois de um banho.
Iniciando o trabalho, é claro, o guarda foi fazer o que fora contratado para fazer, em outras palavras... Vigiar. Richard observou as gravações das câmeras de segurança por horas naquele velho monitor. Um único barulhinho irritante de tique-taque de relógio se destacava no silêncio, e isso o deixava sonolento, uma vez que ele ainda não havia se acostumado com a vida noturna. Lentamente, o som que antes era insuportável foi ficando reconfortante. Tique-taque... Tique-taque..., e com suas pálpebras pesando cada vez mais e as horas mal dormidas fazendo efeito, pouco a pouco ele foi ficando mais cansado, até que não pode mais resistir e caiu no sono ali mesmo, permanecendo largado na cadeira.
***
Bang!
Richard despertou no susto, com um estrondo de pancada de metal vindo da porta.
Confuso, o guarda-noturno olhou ao redor e conferiu as horas: eram 5:30 da manhã. Ele havia dormido praticamente o turno inteiro. Antes que ele pudesse processar mais do que isso, o barulho se repetiu, ainda mais forte. O chão e as paredes tremeram sob o ataque.
Mas o que diabos...? O vigia sacudiu a cabeça, para se livrar da sonolência remanescente.
A porta continuava recebendo pancadas, e pelo visto, algo nada amigável queria entrar. O que quer que fosse, a superfície de metal não iria aguentar muito mais tempo como barreira, e o rapaz, tinha juízo o suficiente para não ficar parado, assistindo aquilo acontecer.
Ele olhou ao redor, à procura de uma rota de fuga. Haviam três portas no escritório: a primeira, que era a entrada externa, a segunda, o banheiro, e a terceira, que consistiam em uma saída para dentro do prédio de administração. Se esconder no toalete não parecia uma boa ideia, a não ser que ele coubesse dentro da privada (o que não era o caso), e a coisa tentava entrar pela parte de fora, o deixando encurralado. Só lhe restava aventurar-se pelo edifício e fugir dali de algum jeito.
Richard disparou até a terceira e única opção, e, por sorte, a porta estava destrancada. Isso significava menos tempo perdido e mais tempo para vantagem. Assim, ele se deparou com um longo corredor repleto de portas, provavelmente, mais escritórios.
Como a luz que saía da sua sala só ia até certo ponto, deixando todo o resto na escuridão, ele foi forçado a usar sua lanterna.
O rapaz ao menos sabia o que fazer dessa vez: ele tinha que seguir pelas passagens até conseguir sair do edifício, porque esconder-se lá dentro era pedir para ser encontrado, ainda mais quando ele nem sabia se as outras salas estavam abertas e o que teria dentro delas para usar de abrigo.
O vigia andou rápido e em passos cuidadosos pelo chão de mármore dos corredores. Ele temia correr e fazer barulho, revelando a sua posição, mas, assim que dobrou o fim da passagem, ele ouviu o barulho da sua porta se espatifando no chão.
A coisa havia entrado. Manter a discrição seria inútil. No fim das contas, a presença do rapaz já era conhecida e ele não tinha nada a perder.
O guarda-noturno correu sem saber ao certo onde ficava a saída. Dependia puramente da sua intuição para sair vivo dessa.
Novamente, em mais um golpe de sorte, encontrou, mas... Havia outro problema: o monstro estava bem perto. A criatura era rápida, e mesmo que Richard ainda não tivesse a visto, sabia que estava na sua cola. Ouvia os passos rápidos e pesados aumentando gradativamente conforme se aproximava. Apostar corrida com aquilo e ganhar? Impossível! Sua única chance de sobreviver era se escondendo.
De qualquer maneira, ele saiu do prédio, usando as suas chaves para abrir a única porta trancada. Ficou até surpreso por ter funcionado, porque na realidade tinha enfiado a chave na fechadura no puro desespero. Uma chave-mestra, talvez?
Ele alcançou a saída dos fundos com sucesso.
O vento continuava fresco e o céu já clareava, assumindo um tom azul-escuro, porém, não havia sinal do sol nascente. O rapaz guardou a lanterna e olhou ao redor mais uma vez, agora à procura de um esconderijo, mas fracassou. Os melhores lugares, ainda que dentro de seu campo de visão, estavam longe. Morreria no meio do caminho se tentasse os alcançar. Por fim, quando estava prestes a se desesperar, bateu os olhos no contêiner do lixo. Era definitivamente um lugar desconfortável, além do cheiro terrível que impregnava o ar, mas ainda era uma opção.
O rapaz foi até lá e abriu a tampa, mas neste momento, ele teve que se segurar para não vomitar. O fedor tinha triplicado a sua intensidade. Ao menos, a caçamba não estava cheia, o permitindo ter espaço o suficiente para se esconder.
Ele se instalou e logo em seguida, fechou a tampa por cima de si. Só precisava agora esperar o seu perseguidor passar e ir embora. Ficou parado por alguns minutos, no escuro e no mau odor sufocante, mas nada aconteceu. Nem passos, Richard conseguiu ouvir. Será que a coisa tinha ido embora por onde havia entrado?
De repente, o vigia bateu com a cabeça na parede de latão e revirou com o resto do conteúdo ali dentro. A lixeira havia sido erguida e estava sendo chacoalhada pelo lado de fora.
O esconderijo fora um completo fracasso.
Garras perfuraram o metal, abrindo um buraco no contêiner, e, da abertura, a criatura espiou com um de seus olhos negros. A pupila branca minúscula que brilhava intensamente, tinha encontrado o seu alvo.
Antes mesmo que o humano se recuperasse do choque, a lixeira novamente foi sacolejada, e em seguida, virada de cabeça para baixo. O tampão, que não tinha sido feito para aguentar tanto peso, cedeu, jogando Richard e todos os sacos com restos no chão.
Estabacando-se no solo de cascalho, a sua primeira reação foi cobrir a cabeça para se proteger.
Porém, nada aconteceu.
Richard, ainda, sim, não ousou sair do lugar, apenas esperou pela morte certa. Mas... O tempo de seus últimos momentos parecia devagar. Devagar até demais. Onde estaria o golpe fatal?
Confuso e ainda por cima tonto, o vigia abriu lentamente os olhos, esperando ver algum monstro, mas não havia nada. Estava sozinho.
Ainda sem entender o que fora aquilo, ele conferiu o seu relógio de pulso, limpando o visor e vendo que seu turno tinha finalmente acabado.
***
Do lado de fora do parque, Richard decidiu revistar os bolsos, para conferir se não havia perdido nada. O telefone estava intacto, apesar de sujo, e o cartão de trabalho continuava lá, igual como a lanterna, mas as chaves... Não as encontrava.
Talvez eu não tenha procurado direito, pensou Richard, tirando a jaqueta do uniforme para facilitar a busca. Ainda sim, não as encontrou, coisa que não fazia sentido já que ele tinha usado o objeto à alguns minutos atrás.
De qualquer forma, o melhor a se fazer no momento era voltar para casa e retomar o sono, mesmo tendo certeza que não conseguiria dormir quando chegasse, mas era melhor do que nada.
Com uma caminhada cheia de pensamentos turbulentos e uma ida de ônibus igualmente desconfortável, onde todos tinham se afastado por conta do cheiro, Richard conseguiu chegar ao seu lar. Isso quase sendo atropelado em um certo trecho à pé, porque tudo que se passava na sua mente envolvia ranger de garras metálicas prestes a o pegar, ou olhos negros com sede sangue, e por isso, ele não prestou atenção no trânsito.
Quando subiu as escadas para o seu quarto, suas pernas chegaram a fraquejar um pouco, mas Richard conseguiu alcançar a sua cama a tempo. Desabou no colchão apesar do cheiro de lixo para ter seu sono tão merecido, mas aquelas monstruosidades metálicas não concordavam com isso e voltaram a o atormentar.
O rapaz virou de um lado para o outro, ficando sempre desconfortável. Nesse troca-troca, ele até mesmo chegou a derrubar uma latinha de refrigerante que se encontrava em cima do seu criado mudo, e, o som, fez com que seus instintos de sobrevivência ativasse e o fizessem se levantar com toda a velocidade, batendo a cabeça na parede.
Se recuperando do choque, ele se levantou devagar, ficando sentado. Sua cabeça ainda zumbia.
O jovem encarou a janela e deixou escapar um suspiro. Aquilo realmente não estava funcionando.
Cansado de tentar descansar, Richard decidiu ir conversar com Johnny. Talvez ele soubesse o que fazer. Fora sempre ele quem lhe contara sobre as lendas de Oz Park. Ele deveria saber também de informações mais úteis.
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