XXXVI
O rapaz se virou de um lado para o outro até sentir que estava em um lugar macio demais para ser o covil de Zalgo. Abriu os olhos com dificuldade, pois estes estavam inchados e sua cabeça doía mais do que deveria. Em circunstâncias normais, descobrira quem o fizera desmaiar e acertaria as contas, no entanto a dor tomou conta de seu peito novamente ao se lembrar de Blader.
Foi ao banheiro jogar água no rosto. Ao olhar o próprio reflexo, viu a mancha de sangue da garota em sua testa e mais lágrimas transbordando do Danúbio Azul que era seu olhar. O sofrimento que esperava ter ao perder Lydia estava castigando-o agora e, apesar de insuportável, lhe mostrava que sua outra metade era, de fato, a morena.
Saiu do banheiro, tentando engolir o choro enquanto ia até a ala médica. Ery e Smiley faziam de tudo para dar um jeito nos estragos causados por Zalgo, mas algo dizia para o rapaz que seus esforços não estavam dando tão certo quanto parecia.
— Como ela... — Ele precisou engolir o nó em sua garganta. Não gostaria de fazer aquela pergunta por temer a resposta, mas mesmo assim acabou cedendo à pequena fagulha de esperança — Está?
A loira levou alguns segundos para responder:
— A energia demoníaca em excesso não está reprimindo só a invisibilidade, mas também a regeneração que ela herdou do Slender. E, sem isso, as coisas ficam... difíceis.
Ele pensou em se aproximar, mas a outra segurou seu braço, balançando a cabeça em negativa.
— Você não vai suportar ver os estragos — advertiu ela.
— Mas eu preciso.
Lins seguiu em frente, fazendo Ery soltar um suspiro pesado. Ao se aproximar da maca, sentiu ainda mais dor, coisa que não achava possível. Através da ferida grotesca, o jovem viu que o fígado e o estômago de sua amada haviam sido perfurados. Todo o tronco dela estava coberto de sangue, manchando as escamas e as roupas, que agora haviam sido cortadas para poderem dar um jeito na situação.
— Mein Herz... — Sua voz estava trêmula, bem como o queixo.
Uma lágrima dele caiu na bochecha de Blader, que respirava cada vez mais devagar. O ruivo foi até a cabeceira da maca, de forma a não atrapalhar os médicos, e tomou o rosto da morena entre as mãos. Apoiou sua testa na dela e respirou fundo, tentando inutilmente afastar o choro.
— Por favor, me leve com você — sussurrou. — Não sei o que vou fazer se te perder.
Slenderman finalmente resolvera aparecer. Smiley ia lhe passar o relatório clínico da morena, porém o outro balançou a cabeça em negativa. A situação de sua algoz, querendo ou não, era autoexplicativa.
— Podemos tentar um transplante de órgãos e transfusão de sangue — Ery quebrou o silêncio do cômodo —, mas ainda assim...
— Façam o que acharem adequado — decretou o homem de terno. — Estou aqui para colaborar. Coloque os órgãos danificados em mim e deem os meus a ela. Minha regeneração pode cuidar dos estragos em pouco tempo.
Os demais presentes o encararam, ainda processando a informação. Esperavam literalmente qualquer pessoa se oferecer para isso, menos o dono da mansão.
— Não faço mais que a obrigação fazer isso depois de todas as minhas ações — continuou, indo em direção à maca que ficava ao lado da filha. — Por mais que a face demoníaca dela tenha a intenção de me matar também, Blader é sangue do meu sangue e a culpa é minha por ela sentir tanto ódio.
Os dois médicos se entreolharam e assentiram, dando início ao transplante. O músico, por sua vez, se manteve ali o tempo todo, alternando olhares entre sua amada e seu líder. Embora não houvesse garantia de sucesso, queria acreditar que não perderia Blader para sempre.
**
Após horas, Ery e Smiley se jogam nas cadeiras mais próximas, exaustos. Conseguiram terminar o procedimento depois de perderem várias agulhas tentando fechar o ferimento de Blader, pois as escamas dela eram mais grossas do que esperavam, mas agora só restava esperar e torcer para que tudo desse certo.
Slenderman se levantou da maca como se nada tivesse acontecido. Voltou a face vazia para a proxy desacordada um instante e acariciou o topo da cabeça de sua cria antes de desaparecer.
— Podem ir descansar — disse Lins, trazendo água para os médicos. — Se algo acontecer, chamo vocês.
— Ela não pode ficar sem a observação de um de nós, Lins — respondeu Smiley. — Dessa vez teremos que dispensar sua boa vontade. — Os olhos escarlates dele foram para a loira — Eu fico aqui. Quando descansar o suficiente, trocamos.
— Tem certeza? — Ery indagou e o outro assentiu. Se levantou da cadeira e se aproximou da morena, segurando a mão dela. Respirou fundo e fechou os olhos, não querendo deixar as lágrimas caírem — Vê se acorda logo, maninha.
Ela se retirou. Smiley começou a fazer os relatórios e Lins se deitou na maca ao lado da namorada, abraçando-a com todo cuidado. Apoiou a cabeça dela em seu peito e contraiu o músculo do maxilar. Por um instante, achou que não teria mais lágrimas sobrando, porém elas voltaram a salgar suas bochechas. Nem na morte de sua mãe havia chorando tanto e nunca pensou que algum dia essa seria a única coisa que lhe restaria fazer.
Pela primeira vez, se sentiu impotente e culpado. Será que algo havia mudado caso tivesse ido atrás dela quando a encontrou lutando na floresta? Provavelmente não. Afinal, não tinha aptidão para combater e poderia acabar dando trabalho para a morena, resultando nessa mesma desgraça.
Aproximou o rosto do dela, tocando seus lábios por um momento. Onde estavam os contos de fadas agora para fazê-la abrir os olhos? Não era isso o que acontecia quando o príncipe beijava sua princesa?
— "du wirst für mich, immer heilig sein" — Começou a cantar, acariciando o rosto da garota e tomando uma decisão: se ela não voltasse para ele, o ruivo era quem a alcançaria na vida pós-morte.
**
Em seu escritório, Slenderman massageava as têmporas enquanto suspirava pela terceira vez desde quando saíra da ala médica, pois não conseguia se concentrar nos afazeres. Voltou a face vazia para o retrato de sua cria na mesa e depois remexeu na gaveta, tirando um pequeno álbum de fotos de lá.
— Estou atrapalhando? — Ery indagou ao ver o tio com o álbum sobre a mesa.
O dono da mansão negou com a cabeça sem dizer nada, causando estranhamento na loira.
— Vim até aqui para pedir que não traga os demais moradores ainda. Não sei os outros proxies, mas Lins e eu não estamos em condições de lidar com a casa cheia de novo, pelo menos não enquanto a Blader estiver nesse estado.
— Não é minha intenção trazê-los tão logo — respondeu ele. — Também preciso de um pouco de paz e silêncio. — A criatura levantou o rosto na direção da sobrinha e indicou uma cadeira — Sente-se, acho que vai gostar de ver essas fotos.
Se antes a loira achava que ele não estava em seu estado normal, agora tinha certeza. Ainda custava a acreditar que justamente o homem que tratou a filha como escrava esse tempo todo estava balançado nesse momento. De toda forma, acabou se aproximando da mesa.
— São todas da época em que você e ela eram pequenas. — Slenderman virou o álbum de lado para que ambos pudessem observar as fotos. A primeira mostrava Blader e Ery na cozinha de Offenderman e ambas estavam sentadas sobre a bancada, com os rostos sujos de brigadeiro — Vocês têm essa obsessão por doces desde cedo e até hoje me pergunto como não desenvolveram diabetes.
Ele passou para a próxima foto, na qual as duas meninas estendiam uma toalha xadrez de piquenique no chão. Blader usava um vestido branco com laços e desenhos em rosa enquanto Ery estava com a mesma peça de roupa, porém os detalhes eram lilases.
— Por que vocês tiveram a brilhante ideia de nos vestir com roupas iguais? — A loira indagou.
— Trenderman tinha obsessão em fazer isso — explicou o homem de terno. — Inclusive, quem fez os dois vestidos foi ele, assim como todas as roupas que vocês usavam desde bebês até o momento da separação.
— E precisavam mesmo nos deixar? — Ela não conseguiu conter a vontade de perguntar.
— Pensei que fosse melhor para vocês, pois imaginei estarem seguras e que Zalgo não saberia onde estavam. No entanto...
— Se enganou feio — completou a garota, que depois encarou o tio de soslaio, esperando uma repreensão por tal comentário.
— Sorte sua que não estou no meu normal, senão já sabe — replicou Slenderman, fechando o álbum e o guardando novamente. Rever momentos do passado traziam sentimentos que lhe incomodavam, pois não estava mais acostumado a senti-los. — Preciso tentar trabalhar agora e você deveria descansar depois do transplante. Se tiver qualquer novidade, me avise imediatamente.
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