XXXII

 Não conseguiu ir atrás dela, pois a perdeu de vista em questão de segundos. Ficou parado no lugar, olhando a direção que a garota tinha passado antes de sumir, depois encarou o cadáver de Rake. Por um instante, o violinista se perguntou se ele é quem era dócil ou ela quem insistia em se privar de ter sentimentos. A Blader original já possuía uma barreira ao seu redor, porém a face demoníaca parecia ter aprimorado essa proteção. Como conseguiria convencê-la a fazer o pacto se ela não era aberta a emoções, nem a diálogos?

Seguiu o caminho de volta para a mansão, parando quando viu duas pessoas do lado de fora da residência. Pelo que estava vendo, não poderia culpar ninguém por ter má impressão de Lydia...

Embora ela tenha voltado a esse plano no covil de Zalgo, Lins não imaginaria que sua ex-namorada tivesse de fato uma relação pacífica com eles. A jovem conversava tranquilamente com Profeta Risonho e, por alguma razão, acabou beijando-o.

Decidiu continuar sua caminhada em direção à mansão. Quando estava perto dos dois, ignorou o nojo que sentiu por aquela cena. Não eram mais namorados, então era direito dela decidir quem beijaria. No entanto, Lins se sentiu traído. Havia acreditado no desejo dela em querer ficar próximo dele e jurava ter visto uma pontada de esperança naqueles olhos mel para que reatassem a relação, mas aparentemente não passava de imaginação. Quando Lydia havia se tornado esse tipo de pessoa dissimulada?

Foi impossível conter o desgosto que o dominou em seguida. Já estava lutando para não sentir rancor dela pelo fato de ter prejudicado Blader e fazê-la perder o controle do corpo para a face demoníaca, mas o que via agora era demais. O fizera de tolo e, além do mais, se fez de coitada para permanecer na mansão, enganando a todos. Teria sido melhor se a morena tivesse a matado na floresta ao invés de poupá-la, pensou o ruivo. Por mais que uma parte de si doesse ao pensar nisso, pois Lydia sempre esteve presente em sua vida desde cedo, sabia que, naquele instante, aquela teria sido a melhor solução.

Quando se deu conta, já estava entrando na mansão. Ficou tão imerso em pensamento que sequer notou haver percorrido o caminho até lá.

— Lins! — Pela primeira vez em seus vinte e seis anos, a voz da austríaca lhe trouxe náuseas.

— Não encoste em mim — disse entredentes. — E acho bom ir embora daqui imediatamente.

— Escute, eu... O Profeta... Se você viu aquilo...

— Você não tem que me dar satisfações de sua vida amorosa, Lydia. — O rapaz finalmente se virou para encará-la — Mas deveria ter o mínimo de bom senso e consideração. Se está com eles, por que aceitou ficar aqui? Blader já perdeu o controle de si e a essa altura deve chegar ao covil de Zalgo em breve para lutar sozinha. Sua missão aqui está cumprida, meus parabéns.

— Foi por impulso! — O queixo dela tremia e as lágrimas chegaram rapidamente — Quando voltei para esse plano, foi o Profeta quem cuidou de mim do covil, e arrisco dizer que foi a única pessoa que demonstrou ao menos um décimo de preocupação comigo! — Um soluço lhe escapou, mas a garota prosseguiu: — Não estou colaborando com nada e nem tenho missão nenhuma! Só vim para cá porque queria ficar perto de você! Mas, pelo que pude ver, sou tão importante quanto uma mobília, não é? No seu mundo só existem os deuses no Céu e Blader na Terra.

Em outras circunstâncias, Lins teria a abraçado e secado suas lágrimas com toda calma do mundo. No entanto, agora só queria distancia, pois, se esse beijo aconteceu para lhe causar ciúme, a garota havia caído muito em seu conceito. Respirou fundo enquanto se sentava no mesmo sofá onde Blader dormiu e massageou as têmporas. Se queria ter uma conversa séria com Lydia, aparentemente agora era o momento.

— Lydia, não faz ideia do quanto sofri quando perdi minha mãe e você praticamente ao mesmo tempo. — Seus olhos azuis se fixaram nos pequenos cacos do copo quebrado que ainda estavam no tapete — Fiquei absolutamente sem chão e sem ninguém. Meu pai ainda estava vivo, porém vivia trancado no quarto depois de perdemos a mamãe, então ele não me deu apoio nenhum nesse período... Por um instante, tudo o que eu quis era morrer e Slenderman sabe disso, pois decidiu me trazer para esta mansão. — Ele então direcionou o olhar para a garota, que enxugava as lágrimas e continuava em pé — Por um ano inteiro, meu único pensamento ao dormir e acordar era que você estivesse ao meu lado, sabia?

— Então por que está agindo assim, de forma tão distante?

— Slenderman me pediu para tomar conta da filha dele, que estava entre os humanos — prosseguiu, fazendo Lydia entender que sua pergunta seria respondida mais adiante. — Era madrugada e Blader estava dormindo, mas... por Johann Walpoth... aquela mulher dormindo conseguiu e ainda consegue ser mais linda do que qualquer escultura que ele já tenha feito. — A garota viu um sorriso se formar no rosto dele e um brilho diferente surgindo em seu olhar — Foi impossível não me apaixonar. — Lins fechou os olhos um instante, soltando um suspiro — Nesse instante, me senti como se tivesse nascido de novo, Lydia. Entende onde quero chegar? O vazio em mim havia desaparecido e qualquer ferida deixada pelo passado foi curada.

A austríaca não tinha mais dúvidas. Embora não tivesse passado por isso, ela teve certeza de que Blader era a Lebenslanger dele.

— Foi aí que percebi que o relacionamento que você e eu tivemos talvez tenha sido equivocado — afirmou ele, encarando-a com cuidado dessa vez.

— Do que está... — Ela ia perguntar, tentando ignorar seu coração acelerando, mas foi interrompida.

— Eu te amei sim durante cada minuto que passamos juntos, em cada beijo, em cada carinho e em cada momento de intimidade. Mas agora, depois de seis longos anos, me pergunto se deveríamos mesmo ter transformado nossa amizade em algo a mais. — Ele engoliu em seco, deixando o violino na mesa de centro e passando a mão nos cabelos — Quando você se foi, a dor que ficou em mim não foi a de ter perdido minha alma gêmea ou algo do tipo, como imaginei que seria, e sim o vazio de quem perde alguém da família. Meu sofrimento quando te vi fechar os olhos foi o mesmo de ter perdido uma irmã, mas só depois fui entender isso. E ver você de volta à vida foi um choque. Teríamos sim conversado melhor e até colocado seis anos de assunto em dia, mas a situação não me permitiu, pois minha namorada estava doente e precisava de mim. E, como uma pessoa adulta, esperava que você tivesse compreendido isso.

Ouvir aquilo assim doeu em uma parte do coração de Lydia,  pois nunca havia levado os sentimentos muito a sério enquanto estavam juntos. Sabia sim que ele sentia amor e se esforçava para ser um bom namorado, já ela... 

Nunca pensou que teriam esse tipo de conversa e, menos ainda, que o remorso iria consumi-la com tanta intensidade. Esse sentimento corroía como ácido e, naquele momento, pensou que morreria novamente.

— Certo, esse beijo de agora foi um pouco para te deixar incomodado sim, pois te vi chegando e queria alguma reação sua... Sabe, eu... fui uma idiota. — Ela caminhou até o outro sofá, se acomodando e olhando para as próprias mãos, que tremiam. Ele a odiaria pelo que iria dizer, mas se estavam colocando as cartas na mesa, então se sentia na obrigação de fazer o mesmo. Já havia levado tudo isso longe demais — Deixei meu ciúme tomar conta e acabei não enxergando de fato as necessidades da sua namorada. Na verdade... — Seu olhar encontrou o do rapaz, que analisava a expressão dela atentamente — Queria você de volta para aproveitar o prazer carnal que tinha quando estávamos juntos.

Ele franziu o cenho, como se não entendesse onde ela queria chegar, o que tornou a situação pior. As lágrimas rolavam pelo rosto dela mais uma vez, fazendo-a fungar e respirar fundo.

— Aceitei ser sua namorada não por achar ter algum sentimento a mais, como você. — disparou, incapaz de sustentar contato visual — Na verdade, por sermos tão próximos, me aproveitei disso para explorar sensações que nunca tive, porém sempre desejei saber como era. Você sabe que, antes da nossa relação, eu nunca tinha ficado com ninguém, então...

— Você me usou como mero brinquedo sexual o tempo todo? É isso mesmo que estou ouvindo? — Lins precisou lutar muito consigo mesmo para não sair dali e deixa-la falando sozinha. Só podia ser brincadeira — Se não ouviu o que eu disse antes, vou repetir: eu te amei, Lydia. Como teve coragem?

— Foi a curiosidade! — A essa altura, a austríaca soluçava. — Além do mais, não dá para controlar o desejo, dá? Eu estaria mentindo se não dissesse que sempre te achei lindo e isso foi o gatilho que me faltou para ter mais vontade de... Você sabe. Por isso, quando vi que Blader era sua namorada, me corroí por dentro ao imaginá-la tendo seu corpo tão perfeito só para ela a hora que quisesse e...

— Tem ideia dos absurdos que está falando, Lydia?! — O ruivo ficou em pé instintivamente — Blader eu nunca tivemos esse tipo de relação ainda, para começar. Em segundo lugar: saiba que você conseguiu destruir totalmente a imagem que eu tinha a seu respeito. Durante aquele tempo, acreditei que meus sentimentos, embora confusos, fossem correspondidos, por isso sempre cedi aos seu desejos sem pensar duas vezes, pois achava que aquela era a sua forma de me amar. — A dor era evidente nos olhos azuis do jovem — Mas você só me usou... Se tivesse sido franca desde o começo, poderíamos até ter tido algo entre quatro paredes sem compromisso, já que você só queria "aquilo" e nós dois éramos solteiros. Afinal de contas, estaríamos aprendendo juntos, mas cientes de que cada ato era por curiosidade.

— Me perdoe.

— Como se eu pudesse. — Um gosto amargo subiu pela garganta do violinista — E pensar que estava me sentindo culpado por superar sua morte e me dedicar a outra pessoa...

— Mas espero que não tenha se esquecido de que morri por sua causa. — Ela já não estava mais disposta a filtrar o que dizia — Se eu só tivesse te usado e feito como brinquedo, não teria morrido para ter dar um presente como conforto pela morte da sua mãe!

— Isso não justifica sua falta de empatia e consideração nem aqui, nem no Inferno ou em lugar algum.

Pegou o violino de volta e subiu os degraus. Se sentia usado, traído e feito de idiota por quem mais tinha consideração e carinho no passado. É o preço que se paga por ser tão ingênuo, disse para si mesmo.

No fim, deveria dar razão à face demoníaca de Blader: ele era dócil demais.

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