XLIII

Llafn levou algum tempo para processar a informação que acabara de ouvir, porém balançou a cabeça negativamente em seguida. Ele tinha medo, porém não tinha vergonha. Era fácil assumir a própria covardia depois de ter feito tudo aquilo. Isso é, se de fato todos esse temores existissem.

— Trazer isso à tona não vai te livrar da morte, Slenderman — declarou, por fim. — Na verdade, por ter todos esses medos, deveria ter usado outra abordagem para evitar ser odiado como é agora. Se tivesse se preocupado mais com o que ela sente e com o que ela pensa, talvez eu não fosse obrigada a chegar a esse extremo.

— Desde sempre, fui ensinado pelo avô de vocês que há duas formas de garantir que alguém de grande poder se manter subalterno... — Era claro para a demônio que não viria nada de útil daquilo e, nesse instante, se perguntou por que não o matava de uma vez — Um deles é usar a fraqueza psicológica a seu favor e não se mostrar tão surpreso com as habilidades de seu alvo. A outra, por outro lado, é a estratégia da empatia, como você mesma sugeriu.

— E o que te faz pensar que o primeiro método pode trazer resultados positivos?

— De fato não trouxe. — Um riso sem humor escapou de Slenderman — No fim, acabei tratando você como meu pai tratou Rhith e terei o mesmo destino dele: a morte.

Durante o tempo em que esteve no covil, Blader leu alguns livros e, dentre eles, um que falava a respeito do tal Rhith, por isso Llafn sabia de quem se tratava: antigo guarda-costas de Am Dhaegar e Zalgo que, descontente com o modo como conduziam as coisas, decidiu se voltar contra eles por ter grande poder.

Admitia que gostaria de conhece-lo pessoalmente. Afinal, não eram tão diferentes assim, pois tinham os genes de Zalgo e, pelo que parecia, portavam grande poder a ponto de conseguirem se voltar contra seus superiores. Porém, um ponto crucial separava a motivação de ambos para tal revolta.

— Mas seu fim poderia ser diferente. — A demônio finalmente disse, voltando a encarar a face vazia do genitor e apertando um pouco mais o nó da grava dele — Era só ter sido um pai melhor. — Pensar nisso fazia as emoções aflorarem novamente, coisa que não lhe agradava tanto. Porém, não poderia negar a realidade — Tenho certeza que você sabia o modo como Blader era tratada no meio dos humanos, e mesmo assim decidiu agir igual à família materna dela, talvez até pior!

— Llafn, eu não tinha ideia de como foi a criação dela. Quando me afastei há exatos vinte e um anos, o fiz totalmente — explicou o dono da mansão. — Não deixei qualquer subordinado para observá-la e também não poderia arriscar estragar meus planos caso a visitasse. Quando finalmente voltei a vê-la e enviei Lins para cuidar dela, os estragos já haviam sido feitos.

— Faça-me rir — rebateu ela, com desdém. — Por que não assume que apenas ignorou tudo isso ao invés de mentir e dizer que não sabe de nada?

— Porque essa é a verdade.

Não adiantava de nada falar, disso o homem de terno já sabia. Dessa forma, em vez de contar suas motivações, optou por compartilhar as memórias do passado.

**

Assim que recebeu a notícia de que sua companheira esperava uma criança, Slenderman imediatamente tomou a frente da situação para se acertarem. Se casaram e providenciaram um lar entre os humanos, visto que a mulher não queria morar na mansão do marido em hipótese alguma.

Quando a menina veio ao mundo, o homem sem face sentiu-se aliviado e maravilhado ao vê-la com traços humanos normais, pois dessa forma ela não seria vista como um monstro como ele por lhe faltar o rosto.

No entanto, notou uma mudança de comportamento por parte da esposa, que entrou em depressão em pós-parto e se negava a amamentar a própria filha e ficava extremamente furiosa ao ouvi-la chorar, independente do motivo. Por conta disso, o homem sem face e a avó materna da criança precisaram se encarregar de cuidar dela.

Embora a depressão da mulher já tivesse passado, ela ainda não fazia tanta questão de cuidar da pequena. Assim sendo, o homem sem face permaneceu como maior responsável pela cria, ainda mais quando sua esposa decidiu trabalhar, mesmo sem necessidade.

— Ei, até quando vai ficar nessa banheira? — Slenderman indagou quando Blader, já com seis meses, chorou pela terceira vez ao começar a ser tirada da banheira. Suspirou e acabou cedendo mais uma vez à exigência de sua cria — Tudo bem, mas só mais cinco minutos.

Como se um bebê tivesse noção do que isso significava, disse para si mesmo ao observar outra vez sua criança bater as mãozinhas na água enquanto ria, ensopando seu terno. No entanto, aquilo não importava, pois estava preocupado em entender o calor que tomava conta de seu coração mais e mais à medida que passava o tempo com a pequena.

Seria isso o que as pessoas chamam de "amor paterno"?

Durante esse tempo todo acusou Offenderman de ser parte do infame grupo de "pais babões", porém agora o homem de terno se via aderindo a esse arquétipo. Geralmente era ele quem encantava crianças e as levava consigo, porém agora estava sendo cativado por um simples bebê.

— Desse jeito vai acabar virando um peixinho — comentou, ignorando mais gotas d'água encharcando suas roupas e até mesmo seu rosto.

Blader então bocejou, levantando os bracinhos para que o pai finalmente a tirasse da banheira. Após embrulhá-la em duas toalhas e mais um pequeno cobertor, foram para o quarto da bebê para vesti-la. Ao terminar, a pegou nos braços e se teleportou até a cozinha, apressando-se em preparar a mamadeira antes que a menor caísse no sono.

— Chegou cedo — Slenderman observou quando ouviu os passos da esposa.

— Banco de horas — respondeu ela.

Ele deu de ombros e desligou o fogo, indo com a filha até o quarto dela para alimentá-la e niná-la.

— Veja só... — Uma voz conhecida chamou a atenção de Slenderman, que já estava deixando o cômodo — Que bela criança você teve, não é mesmo?

Zalgo estava debruçado na beirada do berço da pequena, observando-a dormir, porém se endireitou quando o outro o agarrava violentamente com os tentáculos.

— Vai me dizer que justamente a criatura que sequestra crianças quer proteger um bebezinho? — questionou, com a voz carregada de deboche. — Por que protegê-la sendo que há uma demônio adormecida no fundo dessa pequena consciência?

— Não me diga que...

— Já que não notou, então é meu dever avisar... — O demônio começou, porém abriu um largo sorriso ao ver a mãe da criança se aproximando, com os olhos arregalados — Bom, já que estão todos reunidos aqui, vamos ao que interessa: a filha de vocês herdou algo de mim, porém não saberei lhes dizer o que é ainda. Dessa forma, quero a criança para cria-la e ver de perto o que ela adquiriu. Vocês não vão sentir falta dela, vão?

— Só por cima do meu cadáver.

— É melhor fazer o que ele diz — A esposa do homem de terno sugeriu, abraçando o próprio corpo e estremecendo ao imaginar sua filha no futuro com algo demoníaco. — Não temos como saber o que ela vai virar, então é melhor deixa-la aos cuidados dele.

— Você é louca, Andressa?! — Slenderman vociferou, acordando o bebê sem querer. De imediato, usou dois tentáculos para aninhá-la em seus braços e então prosseguiu: — Ele não vai tocar na minha filha enquanto eu estiver vivo.

— Te dou três anos para pensar, Slenderman. Depois desse tempo, vou cobrar uma decisão sua e do seu irmão.

— E o que Ery tem a ver com isso?

— Ela é parte demônio também, então eu poderia muito bem cuidar das duas — respondeu Zalgo, desaparecendo em seguida. — Vai ser melhor para vocês. — A voz da criatura ainda ecoou em sua mente.

**

Durante esses anos, Zalgo nunca mais apareceu, fazendo o homem de terno acreditar que ou o outro mudara de ideia, ou tudo não passava de um blefe. Porém, sua esposa se fixou na possibilidade de entregar Blader e insistia nisso sempre que podia, fato esse que acarretou na separação do casal quando a pequena completou um ano.

Desde então, ela passava um período de tempo com o pai e o restante do tempo com a mãe. Os genitores da criança raramente conversavam ou mesmo se viam, a menos quando um precisava entregar a filha aos cuidados do outro.

Era o primeiro dia de primavera e Slenderman combinara com o irmão de levar Blader e Ery até uma parte calma da floresta para fazerem um piquenique. E as crianças, por já terem três anos na época, adoraram a ideia. Almoçaram e brincaram o quanto puderam, sempre sob supervisão dos pais.

— Qual é a palavra final de vocês? — Zalgo os surpreendeu, aparecendo em um canto escondido das meninas.

— Já disse antes e vou repetir: só vai tirar minha filha de mim por cima do meu cadáver. — O homem de terno já se preparava para agarrar a garganta do intruso com os tentáculos.

— Faço a resposta de meu irmão a minha — Offenderman disse logo em seguida. — Suma daqui, Zalgo, senão as coisas vão ficar complicadas para você.

— Se não vão entrega-las por bem, então as levarei à força — ditou o demônio. — No lugar de vocês, eu tomaria cuidado.

Quando a criatura desapareceu, os dois acharam melhor interromper o passeio e levarem suas crianças embora, temendo que algo acontecesse. Slenderman então se viu obrigado a relatar o ocorrido à ex esposa, que novamente insistiu na ideia absurda de abrir mão da filha.

— Não vou mais dizer o quão repugnante é essa ideia, Andressa. Apenas saiba que, para a segurança de minha filha, é melhor que ela fique com você e com sua mãe a partir de agora — determinou ele, engolindo o nó na garganta e fechando as mãos trêmulas para não chamar a atenção da mulher. — Se ela continuar vindo até aqui ou mantendo contato comigo, Zalgo pode leva-la.

— Quer dizer então que vai abrir mão dela?

— Se eu for até a casa de vocês para vê-la, corro o risco de ser seguido. Sei que não está mais na casa em que vivíamos antes, então ele não vai conseguir encontra-la.

Blader olhava para o pai, sem entender o real significado daquela conversa. Este, por sua vez, ajoelhou-se e abrigou a filha em um abraço apertado.

— Se dependesse de mim, jamais a abandonaria — murmurou, porém mais para si mesmo do que para a menina. Segurou o rosto dela entre as mãos por um instante e então prosseguiu: — Se cuide, meu amor. Você é especial, nunca deixe ninguém te dizer o contrário.

— Te amo, papai — A pequena respondeu, abraçando a criatura.

— Eu te amo, minha pequena peixinha.

Ao cair da noite naquele mesmo dia, Slenderman aparece na casa da avó de Blader, a fim de apagar as memórias que a pequena tinha sobre ele e qualquer coisa relacionada ao seu lado da família, pois temia que Zalgo pudesse ser atraído caso a menor mantivesse as lembranças.

**

— Slenderman, trago notícias. — Offenderman o procurou depois de quase dezessete anos — Ery e Blader se reecontraram.

— Espero que isso não seja uma brincadeira sua — advertiu o homem de terno.

— Estou falando sério — insistiu o outro. — Também não se explicar como aconteceu, mas quando fui visitar Ery às escondidas novamente, a vi trocando mensagens com sua filha. Você acha que isso pode atrair Zalgo de alguma forma?

— Não duvido de nada — respondeu Slenderman, massageando as têmporas. — Vou instruir os proxies a tomarem conta delas e também ficaremos de olho com mais frequência. Se algo acontecer, ao menos estaremos por perto.

**

Quando finalmente pode rever a filha, mesmo que de longe, não sabia como reagir. Não havia mais qualquer resquício de sua "peixinha", aquela criança sorridente e brincalhona de antes. Blader já havia atingido a idade adulta e se mostrava uma cópia do que o próprio homem de terno havia se tornado ao longo desses anos: fria, preocupada em trabalhar compulsivamente e capaz de afastar as pessoas ao seu redor sem proferir uma única palavra.

Aos poucos, foi lendo a mente da jovem para acessar o máximo de memórias que ela tinha desde a época em que ele não conseguiu mais vê-la, e ficou horrorizado. Arrependeu-se amargamente por ter confiado na ex esposa para cuidar da filha, porém não tinha como apagar todos os traumas e feridas que causaram na mente e coração de sua única cria.

Nesse instante, sua esperança de ser bem recebido pela garota ao se apresentar como pai dela foi por água abaixo. Como se reaproximaria de uma pessoa fechada e sem memórias do que ele era? Pelo modo como a haviam criado, Blader agora era tão estranha para ele quanto Timothy, Brian ou Tobias. Não conseguia achar uma brecha para tentar reestabelecer aquele laço de anos atrás e, temendo estragar mais ainda a cabeça da morena, acabou optando por se manter distante, tratando-a da mesma forma que tratava os demais proxies.

"Andressa, o que você fez?" era só o que conseguia se perguntar.

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