XIX
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Depois de Slenderman me mostrar o retrato de sua filha, ele nos levou até a casa onde a garota vivia. Ao contrário do que imaginei, era um lugar simples que não chegava aos pés da mansão de meu chefe. Pelo visto não era mentira o fato de ele ter deixado a própria cria sem amparo...
O segui pela sala de estar até adentrarmos o quarto da moça, coincidentemente o cômodo mais escuro da casa. Slender acendeu o abajur por um instante, revelando mais detalhes da pessoa que estaria sob minha vigilância de agora em diante.
Se antes senti inquietação apenas com uma fotografia, agora esse sentimento era ainda maior. Sua expressão era tranquila e os longos fios castanhos emoldurando seu rosto a deixavam com uma beleza incapaz de ser ignorada. Durante minha vida toda sempre achei que Lydia fosse a garota mais bonita do mundo, porém minha opinião foi severamente balançada ao colocar os olhos naquela jovem diante de mim.
Por um instante, me senti culpado por prestar tanta atenção na filha de meu líder, ainda mais porque, em questão de hierarquia, ela estaria acima de mim de certa forma. No entanto, era impossível deixar de observar cada detalhe dela.
Voltei à realidade quando a vi se virar para o outro lado. Temi que ela acordasse e nos visse, porém seu suspiro pesado reforçou o fato de ainda estar em sono profundo.
— Sabe o que deve fazer, Lins — disse Slenderman, desligando o abajur. — Mas em hipótese alguma mencione meu nome ou qualquer informação capaz de revelar minha existência a ela.
— Sim, senhor.
Ele desapareceu, me deixando sozinho. Antes de adentrar o sonho dela, a analisei por tempo suficiente até ter certeza de que ela não acordaria e me pegaria de surpresa. Achei curioso o fato de ela ser um tanto quanto inquieta, sempre se virando de um lado para o outro, no entanto a respiração continuava profunda e isso para mim foi o suficiente.
Não sei por qual razão o cenário de seu sonho ser um parque de diversões, mas meu trabalho não era questionar esse tipo de coisa. Com o violino a postos, fiquei no canto mais isolado e comecei a tocar, aguardando pacientemente até encontra-la.
Em questão de minutos, vi a mesma jovem do retrato se aproximando. Os cabelos estavam presos em um rabo de cavalo, usava uma camiseta vermelha, jeans escuro e um par de tênis. Parecendo não notar minha presença, ela se acomoda no chão à minha frente e só então parece se dar conta de que havia mais alguém ali.
Nossos olhares se cruzaram por um mísero instante, pois suas íris castanhas passaram a encarar um ponto fixo e distante. No entanto, esse momento foi suficiente para um arrepio percorrer minha espinha. O que era isso, afinal?
**
Acabei abrindo os olhos, dando de cara com três rostos familiares em torno de mim.
— Como se sente, cunhado? — Ery estava com as sobrancelhas franzidas de preocupação.
Aquela pergunta e a pontada de dor em minhas costas foram o bastante para que eu me lembrasse dos últimos acontecimentos. Tentei me levantar da maca, porém algo no meu braço me fez parar.
— Ei, ei, não pode ir a lugar algum até esses ferimentos cicatrizarem — Doutor Smiley advertiu, me ajudando a ficar sentado. Em seguida, me entregou um comprimido e um copo d'água — Tome, isso vai impedir que a dor volte por enquanto.
— Blader está bem? — Foi a única coisa que conseguia pensar naquele instante.
— Fisicamente, sim, graças a você — Minha cunhada respondeu e aquilo valeu por uma frase toda.
— Você sabe que não precisava disso, não é? — O médico de olhos avermelhados voltou a falar — Se Blader tivesse levado essas duas facadas, as coisas teriam sido mais simples. Ela consegue se regenerar e ainda teria usado a face demoníaca para inibir a dor dos golpes até receber os devidos cuidados.
Nurse Ann lhe deu uma cotovelada e Ery o fuzilou com o olhar.
— Resumindo: Blader é mais resistente do que você, lembre-se disso antes de fazer loucura — arrematou Smiley, ignorando as duas moças furiosas.
— Vai calar a boca ou vou ter que usar seu cadáver para estudo? — inquiriu a loira.
— Tudo bem, não está mais aqui quem falou. — O outro levantou as mãos em rendição, se afastando.
Ele e Nurse Ann deixaram o cômodo. Olhei para o relógio de parede, que marcava sete da noite, e então voltei minha atenção para Ery.
— Por quanto tempo estive desacordado?
— Vinte e quatro horas — respondeu, tirando o soro do meu braço. — Conseguiu bater o recorde da Blader.
Dei um meio sorriso, que logo se desfez quando pensei nela. Como deveria estar agora? O que estaria fazendo?
— Slender a ocupou o dia todo, mas ela vai aparecer assim que puder — afirmou ela, dessa vez me encarando.
A porta do cômodo se abre e, como se tivéssemos feito um ritual de invocação, Blader aparece e sua expressão abatida fez meu coração se apertar.
— Vai ficar aqui a noite toda? — A morena concordou e a loira prosseguiu: — Então estou indo avisar Smiley e Ann que podem tirar o restante da noite de folga, mas chamem caso precisem.
Com isso, Ery nos deixou a sós. Minha namorada desprendeu as lâminas dos braços e veio ao meu encontro, levantando os óculos e secando as lágrimas. Abri os braços, pronto para acolhê-la, quando a vi hesitar ao me observar com mais atenção e se dar conta de que eu estava sem camisa. Uma pontada de timidez surgiu em seu olhar enquanto se sentava na beirada da cama.
— Como se sente, meine Liebe? — perguntei, abaixando os braços e me limitando a acariciar seu rosto.
— Como você se sente? — Ela devolveu o questionamento.
— Em breve ficarei novo em folha, não se preocupe.
— Me perdoe por não ter impedido isso, Lins. — Sua mão fria me tocou, mantendo minha palma próxima à sua face — Não consegui perceber a aproximação daquele maldito a tempo.
— Não quero que peça perdão por algo assim. A decisão de fazer isso foi somente minha e vou arcar com as consequências. — Quando suas adoráveis íris castanhas encontraram meu olhar, prossegui: — Estava apenas protegendo meu maior ponto vital: você.
Sua expressão ficou mais leve ao ouvir aquilo. Como resposta, afastou minha mão do rosto e a beijou.
— Sabe que tenho mais condições de apanhar do que você, certo? — Blader constatou e revirei os olhos levemente. Era como se ela e Smiley tivessem combinado suas falas. — Mas te agradeço de verdade. — Aqueles lábios doces e delicados buscaram os meus em um selinho, se tornando uma tentativa de beijo desajeitado e o melhor que já recebi até então.
Nos afastamos, porém ainda estávamos próximos o bastante para nossas respirações se mesclarem. Beijei a ponta de seu nariz e segui uma linha até sua testa. Quando voltei a encará-la, vi o sorriso que eu tanto amava em resposta, confirmando o fato de eu jamais ficar parado enquanto os outros tentavam ferir a coisa mais preciosa desse mundo.
— Está tudo bem mesmo? — indagou, acariciando minha bochecha. — Você parece estar mais quente do que o normal.
— Não se preocupe, mein Herz.
Ela tomou meu rosto entre as mãos, me fazendo abaixar a cabeça para aferir minha temperatura como uma mãe faz com o filho. Se levantou, indo até a mesa de Smiley e voltando com um termômetro. O colocou perto de minha testa e, quando o objeto apitou, vi a expressão preocupada transparecer.
— Está em estado febril, meu amor — declarou, por fim.
— Vou ficar bem, Florzinha.
Seu olhar transmitia a clara mensagem de "não tenho certeza disso", mas acabou voltando para perto de mim quando a chamei de volta. Estado febril não significava febre propriamente dita, então poderia ficar despreocupado por enquanto.
— Quer algumas bolachinhas salgadas? — ofereceu, apontando para o pote de vidro sobre a mesa ao lado da cama.
Balancei a cabeça em negativa, tentando ignorar meu estômago se embrulhando só por imaginar qualquer alimento caindo nele. Pedi um abraço e minha namorada acabou concedendo. A princípio, ficou tensa quando sua mão tocou minha pele, porém foi abaixando a guarda aos poucos.
Blader me ajudou a deitar e permanecemos abraçados. Mantive a cabeça apoiada em seu ombro e os braços enroscados em sua cintura enquanto aproveitava o carinho que ela fazia em meus cabelos.
**
Permanecemos os minutos seguintes em silêncio, quando acabei estremecendo e arrepios de frio tomaram conta do meu corpo. E, é claro, que isso não passaria despercebido.
— Não preciso do termômetro dessa vez para saber que sua temperatura subiu — constatou depois de aproximar os lábios da minha testa novamente.
Parecia pensativa sobre chamar ou não alguém e assim permaneceu por um tempo. Em pé ao lado da cama, a garota colocou os óculos para observar melhor os arredores.
Resolveu então remexer nas gavetas até encontrar uma cartela de remédios. Encheu o copo com água e veio até mim.
— Suponho que não tenho escolha... — murmurei mais para mim do que para ela.
— A teimosa da relação sou eu, Lins. — Sua resposta deixou minha afirmação óbvia.
Tomei o comprimido e a vi pegar uma toalha pequena e limpa sobre uma prateleira, indo até o banheiro. Em alguns minutos estava de volta, colocando o tecido molhado em minha testa sem dizer nada, me fazendo entender que não havia espaços para protestos.
— Danke, mein Herz — agradeci por seu cuidado.
— Se sentir alguma coisa a mais, me avise — respondeu, tirando os óculos e se deitando ao meu lado outra vez.
Como uma criança deveras manhosa, voltei a me aninhar nela, adormecendo pouco depois enquanto ela voltava a me acariciar.
**
Quando acordei, me surpreendi ao vê-la de olhos bem abertos enquanto aferia minha temperatura com os lábios.
— Demorou, mas finalmente a febre cedeu — disse, parecendo mais aliviada.
— Meine Liebe... — Suas olheiras deixavam evidentes que ela havia passado a noite em claro para tomar conta de mim e aquilo cortou meu coração.
Me desvencilhei de seus braços, abrigando-a nos meus. Beijei sua face e sua testa repetidas vezes até vê-la fechar os olhos e descansar como merecia. Não importava quanto tempo levasse, contanto que ela acordasse disposta.
— Só poderia estar aqui. — Slenderman apareceu de repente, com a face voltada para a filha.
— Deixe-a descansar, senhor. Blader ficou acordada a noite toda para cuidar de mim, não acho justo que ela trabalhe sem dormir ao menos um pouco.
— Dessa vez abrirei uma exceção porque acabei descobrindo algo a respeito da faca usada por Hobo Heart. — Era claro que não seria uma boa notícia — Estava envenenada — anunciou, sem rodeios.
— Como pode ter tanta certeza? — Me esforcei para engolir o nó em minha garganta.
— O que precisa saber é que tirei a informação da própria Zero. Quando Blader acordar, peça para ela me procurar no escritório.
— E quanto tempo de vida eu tenho?
— O suficiente até resolvermos isso, confie em mim.
Dito isso, ele desapareceu e um misto de sentimentos tomou conta de mim. Ao mesmo tempo em que sentia alívio por ter sido atingido no lugar de Blader, me preocupava com meu destino, pois não queria abandoná-la.
Observei aquela face serena e adormecida, me lembrando da primeira vez em que a vi pessoalmente. Não poderia deixar nosso futuro ruir dessa forma, mas o que me restava no momento era confiar em uma pessoa de opinião e planos duvidosos.
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