IX

— Você saiu de uma maré de azar para entrar em outra, veja só — Blader comentou, levantando a cabeça e depositando um beijo no rosto do rapaz.

— Embora estejamos trancados em um porão decorado com poeira, espelhos e correntes quebradas, ainda não considero azar. Você me salvou e serei grato por isso eternamente.

Ela balançou a cabeça em negativa, porém antes que pudesse dizer qualquer coisa se coloca em pé no mesmo instante, fechando os punhos e engolindo em seco. Lins se levantou rapidamente, preocupado com outro possível descontrole da jovem, só que a presença de seu chefe no cômodo serviu para mostrar o real motivo de a garota estar tensa daquela forma.

— Te procurei por todos os lados, Lins. Não me lembro de ter lhe concedido folga e muito menos permissão para vir aqui.

O dono da mansão deixou os tentáculos à mostra, evidenciando seu descontentamento. Blader se colocou na frente do violinista, encarando o pai a todo instante.

— Se encostar nele, juro que mato você — ameaçou ela.

— Disso não tenho dúvidas, afinal conseguiu se livrar por completo das correntes, coisa que jamais imaginei ser possível. No entanto, não cabe a você se envolver nisso.

Um dos tentáculos foi na direção do ruivo, mas acabaram enroscados no pulso direito da morena.

— Me dê mais um tempo, senhor. — Lins tomou a frente — Não vê que ela está cansada? Estou aqui justamente para ajuda-la a descansar ao menos um pouco e não vou sair daqui antes disso.

— Sim, você vai. — O homem de terno segurou o antebraço do austríaco com outro tentáculo — Ainda tem trabalho a fazer e preciso dar uma palavrinha com Ery, então não me faça perder tempo resistindo aqui.

Slenderman foi surpreendido com um puxão, que o fez perder o equilíbrio um instante. Ao voltar a face vazia para a filha, a viu com os olhos escarlates mais uma vez.

— Vai mesmo me desafiar, Blader?

— Estou na função de dar conta dos seus moradores — respondeu ela. — Portanto irei puni-los e protege-los na mesma medida. Mas, no momento, a ameaça aqui é você.

A voz dela permanecia sem qualquer distorção, mostrando para a criatura sem face que Blader tinha plena consciência e controle de suas ações. Entendendo que estava em uma situação complicada, usa os tentáculos restantes para segurar a garota pela garganta e pelos braços, trazendo-a mais perto de si enquanto a via se debater.

— Mesmo que tenha conseguido se manter consciente até agora, não pense que isso significa alguma coisa. — Embora ela não sentisse dor naquele instante, ele amentou o aperto no pescoço da garota — Você deve obediência a mim, se lembra? Por acaso sua avó não lhe ensinou isso direito?

Lins tentava se livrar de seu líder, porém uma energia pesada lhe chama a atenção. Olhou para a garota imobilizada e notou mais escamas escuras nas bochechas dela.

— Sempre fui obediente a quem cuidou de mim, mas agora não devo nada a ninguém! — vociferou, com um tom distorcido no final de sua fala — Principalmente a alguém como você!

Ela aproveitou que suas pernas estavam livres e acertou um chute no peito de seu pai. O homem não conseguiu ignorar a dor quando suas costas encontraram a parede com violência.

— Já é o suficiente, Blader. — Lins a segurou pelos ombros — Compreendo seu ódio, mas acho que você não vai querer herdar essa mansão tão logo, certo?

— Tem razão — concordou a moça, sem deixar a distorção na voz. — Acho que o susto foi o suficiente.

— Não deveria se distrair assim, minha filha. — Ela podia ouvi-lo, mas não vê-lo — Isso pode lhe custar caro.

O ruivo observou a leve agitação da poeira do chão e empurrou a garota, sendo suspenso pela garganta no lugar dela. Blader se levantou o mais depressa que conseguiu, sentindo o sangue ferver quando o violinista foi solto, porém se esforçava para recuperar o oxigênio e tinha o pescoço marcado.

A partir daquele instante, sua visão se tornou um clarão, indicando que por fim perdera o controle por estar cansada. Sua outra face, no entanto, ainda tinha alguma reserva energia e avançou na direção das correntes arrebentadas. Pegou uma delas e passou a chicotear o vazio, na esperança de acertar o pai.

— Esse porão não é tão grande, até quando acha que vai se safar ficando invisível?

A estática começou a incomodar o outro "eu" de Blader e, assim como aconteceu na sala de treinamentos, seu nariz começou a sangrar e sua visão passou a ficar turva.

— Chega, senhor! — Lins se precipitou ao lado da garota, que estava ajoelhada. Embora ele não tivesse recuperado totalmente o oxigênio, não ficaria apenas observando dessa vez — Veja, ela está voltando ao normal.

A jovem piscou algumas vezes e balançou a cabeça de um lado para o outro, tentando entender onde estava.

— Te deixar aqui não vai nos levar a lugar algum — afirmou Slenderman para a filha. — Além do mais, sua irmã e seu príncipe encantado continuarão desobedecendo minhas ordens. — Ele logo virou a face vazia na direção do ruivo — Eu disse a vocês que o castigo por não me ouvirem chegaria, certo? Pois ele virá agora.

Lins tensionou o músculo do maxilar, se mantendo em silêncio enquanto aguardava pela sentença de seu chefe.

— Tentei lhe dar conselhos sobre como conduzir essa relação, rapaz. — A criatura sem face continuou — Porém você não quis me dar ouvidos. Levando em conta o modo como as coisas estão, só me resta uma saída para colocar um ponto final nesse caos: se despeça de sua amada, Lins, pois você ficará sem vê-la por um bom tempo.

— O senhor pode me levar a onde quiser, mas não vai adiantar. Enquanto ela estiver trancada aqui, saberei como voltar.

— E quem disse que é você quem vai deixar a mansão? — O dono da casa deu atenção para a filha logo em seguida — Espero que goste da ideia de passar um tempo aos cuidados de seu tio avô, Blader.

Os olhos de ambos os jovens se arregalaram, porém a jovem não tinha forças para falar e protestar por conta da energia gasta há pouco. O violinista, por sua vez, ficou em pé e deu dois passos para perto do líder, mantendo a expressão incrédula.

— Que tipo de castigo é esse?! — inquiriu. — Ninguém além de Blader será punida com essa decisão. Posso aceitar qualquer coisa que faça comigo, mas enviá-la ao covil de Zalgo é como condená-la à morte!

— Ele não vai fazer mal a um único fio de cabelo dela, Lins. Pelo menos não enquanto ela for portadora da Vela de Luz e Sombras. E além disso... — Slenderman levantou a mão, pedindo silêncio e impedindo o ruivo de interrompê-lo — É meu último recurso para ela lidar com os poderes que tem. Por herdar isso de Zalgo, nada mais justo do que ele ajuda-la nisso.

— Não consigo ver sentido nisso nem se eu estivesse sob efeito dos anestésicos do Doutor Smiley.

— Não preciso de sua aprovação ou entendimento para isso — ditou o outro em tom mais alto e grave. — Ela vai para lá e ponto final.

Ele levou os dois proxies consigo do porão, reaparecendo na sala de estar, para a surpresa de alguns moradores que lá estavam. Deixou o violinista e desapareceu com a filha até o local desejado.

**

— O que significa isso? — Zalgo se levantou do trono, avançando a passos lentos na direção dos dois recém-chegados — Não me lembro de lhe dar direito para vir aqui com tanta informalidade, Slenderman.

A criatura conteve seu proxy, que estava presente no salão, e passou a analisar o homem de terno.

— Não é do seu feitio andar por aí com o terno desalinhado e sujo desse jeito — provocou. — Me pergunto o que aconteceu.

— Não se faça de tolo. Com certeza você conseguiu sentir que Blader despertou seus poderes.

— Sim, e daí? Por acaso está abrindo mão dela e a entregando a mim como deveria ter feito no passado?

— Não. Só gostaria que a instruísse pelo tempo necessário até que ela aprenda a se controlar.

— E por que não usou seus métodos infalíveis de tortura? Não é o que você faz de melhor? — O silêncio do sem rosto fez Zalgo soltar uma gargalhada — É um momento único você admitir sua própria falha, mas melhor do que isso é recorrer a mim para consertar as coisas.

— Vai aceitar meu pedido ou não?

— Por que aceitaria? Não ganharei nada treinando uma soldadinha do inimigo.

— Em troca deste favor, pode tentar tomar a Vela. Uma vez devidamente treinada, Blader conseguirá dar conta de você no futuro de qualquer forma.

— Olha só, quanta confiança... — Os olhos escarlates de Zalgo fez a morena recuar um passo — Mas aceito seu pedido. Vai ser divertido vê-lo ir à ruína por ser tão prepotente em relação à sua prole.

Slenderman assentiu e desapareceu, deixando a jovem por conta própria no covil.

— Ora, vamos, você não está em condições de arrumar confusão nem se quisesse — constatou a criatura, achando graça na tentativa da outra de acessar os poderes. — Está mais acabada do que o nosso caro amigo Rake, e olha que para chegar nesse ponto a situação é deveras preocupante.

Zalgo tocou a testa da jovem com o indicador esquerdo, recitando algo em uma língua desconhecida e fazendo-a cair em sono profundo. Ele a segurou antes que fosse de encontro ao chão, carregando-a para fora da sala.

— Anuncie aos demais a novidade, Profeta — disse. — Depois de muito tempo de tédio, teremos uma nova atração um tanto quanto promissora.

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