Capítulo 22

Frank Sellers. 

Mesmo no escuro, deitada em minha cama, encarando as sombras projetadas no teto pelas fracas luzes vindas da janela, aquelas eram as únicas palavras que eu via. Mesmo ao amanhecer do dia seguinte, tão esvaziado de qualquer outro sentimento a não ser ansiedade quanto as horas que o precederam, aquelas eram as únicas palavras que reverberavam em minha mente. Mesmo durante o trajeto de trem até a estação mais próxima à casa de Elliot, onde nos encontramos para seguir viagem por mais meia hora de carro como eu instruira ao telefone na noite anterior, aquelas eram as únicas palavras que me orientavam. 

Frank Sellers... Poderia eu estar enganada? 

Não... Mas com toda a certeza do mundo, eu gostaria de estar. 

– Você não vai mesmo me contar o que está acontecendo? 

A voz de Elliot, transmitindo um misto de irritação e preocupação, rompeu o silêncio que já durava vinte minutos dentro do veículo. Apertei os papéis em minhas mãos, os mesmos que apertei com incredulidade há cerca de doze horas, e que eram a causa de nosso trajeto misterioso. 

– Logo você saberá – foi o que pude dizer, e o que se seguiu foi mais uma reafirmação para mim mesma do que uma continuação de minha resposta – E eu também. 

Elliot não teve coragem de insistir. Agradeci mentalmente sua desistência. Meus nervos já estavam em frangalhos com todo aquele suspense; a última coisa de que precisava agora era dar explicações que não tinha. Precisava de alguém que confiasse em mim, pelo menos só até que minha dúvida fosse sanada, e então ele obteria todos os esclarecimentos que quisesse. 

– Uma coisa eu posso adiantar – suspirei, antes de voltar a me calar, na tentativa inútil de parar de sentir, de parar de existir – Esta é a minha última esperança.

Ele lançou um olhar ainda mais receoso do que antes em minha direção, porém manteve sua atitude resignada e apenas continuou dirigindo. Mais vinte minutos se passaram, novamente imersos em silêncio, até que Elliot estacionou o carro em frente ao nosso destino. Respirei fundo ao observar a fachada do prédio, e por um momento o desejo de desistir e voltar para casa, fingir que nada acontecera, foi tão forte que eu quase implorei para que ele nos levasse embora dali. Meus lábios chegaram a articular a primeira palavra da frase, embora nenhum som tenha saído, mas outras duas, muito mais pesadas, ancoraram-me diante do edifício. 

Frank Sellers. 

– Vamos? – Elliot indagou, ao perceber que eu estava presa em meus próprios pensamentos, temerosa demais para dar o primeiro passo, que sua curiosidade o motivou a dar. Após uma breve hesitação, durante a qual reuni todas as evidências, concretas ou abstratas, de que estava tomando a decisão certa, enfim abri a porta do carro. 

– Vamos. 

Cada passo dado até a entrada do prédio precisou de reafirmação. O caminho mais fácil insistia em agarrar-me as pernas, fazê-las pesarem o triplo do normal, esforçando-se para me afastar do caminho mais difícil, do caminho que eu acreditava ser verdadeiro. Relutante, segui em frente, disposta a ir até o fim para revelar o segredo tão cuidadosamente encoberto há anos. Se não houvesse segredo a descobrir, menos mal; seria um baque difícil de aguentar, saber que minha intuição falhara tão significativamente, mas eu me recuperaria. Talvez Zayn tivesse razão... Talvez Matthew tivesse conseguido entrar em minha cabeça, manipular minha visão dos fatos... Tudo ficaria bem se eu estivesse errada. 

Mas se eu estivesse certa... Se eu tivesse razão, tudo viraria de cabeça para baixo. Eu também sobreviveria, com alguns arranhões e hematomas. O pior de tudo, naquela que já era a pior das hipóteses, seria o estado em que as outras partes envolvidas se encontrariam quando soubessem. 

Eu estava prestes a cortar o fio vermelho. Bastaria saber se ele desativaria a bomba, ou faria tudo ir pelos ares de uma vez por todas. 

Chegamos à recepção, e com a voz um pouco mais firme do que antes, fruto de minha persistência e também curiosidade, ainda que mórbida, perguntei à atendente onde poderia encontrar a pessoa que procurava. Ela me indicou o andar e a sala, e ao me dirigir ao elevador, percebi no rosto de Elliot uma confusão ainda maior. 

– Por que você está procurando... – ele começou, mas desistiu de continuar ao ver minha mão erguida entre nós, logo depois de apertar o botão na parede. 

– Logo você saberá – repeti, retraindo a mão ao notá-la levemente trêmula. Pela terceira vez, ele não insistiu, porém seus olhos não abandonaram meu rosto durante todo o tempo de espera pelo elevador, nem durante nosso trajeto ascendente. 

Chegando ao andar desejado, caminhei com Elliot em meu encalço pelo corredor branco em busca do número apontado pela recepcionista, ignorando as pessoas espalhadas pelo caminho, sentadas ou de pé, aguardando atendimento. Toda a minha determinação encontrou mais uma vez um obstáculo ao reconhecer os números que procurava estampados numa placa ao lado da porta correspondente. Meus pés se agarraram ao chão, numa última e desesperada súplica para que eu não seguisse adiante e consequentemente não pudesse mais voltar atrás, já que o que estava em jogo mudaria tudo. 

Frank Sellers. Frank Sellers. Frank Sellers. 

As pontas frias de meus dedos encontraram a manga da jaqueta de Elliot inconscientemente. Para minha surpresa, ele a substituiu por sua própria mão, percebendo minha necessidade de apoio. Nossos olhos se encontraram por um instante, no qual ele assentiu uma vez, encorajando-me a continuar. Assenti de volta, respirando fundo para evocar toda a minha coragem e determinação. 

Frank Sellers. 

Minha mão se afastou da dele, e dirigiu-se à maçaneta. Assim que a porta rangeu, indicando sua abertura, o homem que organizava a papelada em sua mesa olhou em nossa direção, e suas sobrancelhas se ergueram em surpresa. 

– Filha? 

Meu coração disparou dentro do peito, desenfreado, despejando adrenalina em minha corrente sanguínea a cada batimento frenético. Não existia outra possibilidade a não ser ir em frente. Elliot colocou uma mão em minhas costas discretamente, lembrando-me de que estava ali, de que eu não estava sozinha, de que eu estava fazendo a coisa certa. Um sorriso nervoso surgiu em meu rosto, e eu enfim pude responder. 

– Oi, pai. 

Alguns segundos de estranhamento se seguiram, logo superados por ele, que se levantou da cadeira e veio até mim. Elliot praticamente me empurrou sala adentro, fechando a porta atrás de nós para que os pacientes não partilhassem do encontro. 

– Entrem, entrem – disse, abraçando-me sem cerimônias, ato que tentei retribuir da melhor forma possível – O que você está fazendo aqui, querida? Ainda mais assim, sem avisar? 

Papai demorou a me soltar, e quando o fez, seus olhos logo pularam para meu acompanhante, como se ainda não o tivesse visto. De imediato, suas feições mudaram da água para o vinho; o sorriso que surgiu em seu rosto deu lugar a uma linha reta, e a alegria em seu olhar virou desconfiança. 

– E quem é esse? 

Elliot devolveu a encarada de meu pai com uma expressão constrangida que teria sido cômica, se a situação não fosse tão trágica. Desfiz o mal entendido o mais rápido possível. 

– Esse é Elliot, meu amigo. Ele só veio me acompanhar. 

Ao ouvir a palavra mágica (“amigo”), papai voltou a sorrir, cumprimentando-o com um aperto de mão e alguns tapinhas no ombro. 

– Como posso ajuda-los? – ele perguntou, caminhando de volta à cadeira e sentando-se – Ou melhor, ajuda-la, já que ele “só veio te acompanhar”? 

Com um gesto, ele indicou as duas cadeiras vazias do outro lado da mesa, que logo ocupamos. Os olhares dos dois caíram sobre mim quando o silêncio se instaurou no consultório. Ainda com os resultados dos exames nas mãos, comecei a explicar da melhor maneira que pude. 

– Você se lembra de quando te liguei na semana passada? 

Papai confirmou com a cabeça. 

– Bem... Eu te pedi para acompanhar uma análise de DNA. Para se certificar de que ninguém alteraria o resultado. Certo? 

A resposta positiva demorou uma fração de segundo a mais do que o esperado para vir. Elliot se remexeu desconfortavelmente em seu assento, já prevendo a dimensão do estrago que aquela conversa inocente poderia tomar. 

– Certo. 

Um suspiro tenso escapou de meus pulmões. Agora viria a parte difícil. 

– Meu amigo Elliot é tio do menino cuja amostra foi analisada, junto com as da mãe e do suposto pai – falei, indicando-o com um aceno de cabeça – Você pode imaginar como toda a situação é bastante estressante para todos os envolvidos. 

– Claro – papai concordou, arriscando um breve olhar para Elliot antes de voltar a focar em mim – Lamento muito que tamanhas medidas devam ser tomadas em alguns casos para o reconhecimento paterno. 

Engoli em seco diante de sua postura profissional. Por um segundo, imaginei ter visto um sinal de fraqueza em sua atitude... Talvez eu estivesse tão desesperada para encontrar uma resposta que se adequasse ao meu modo de pensar a ponto de distorcer os fatos. De qualquer maneira, prossegui, encurralada, embora um pensamento ainda persistisse em meio à descrença. 

Frank Sellers. 

– Realmente... Ainda mais quando um fator bastante curioso entra na equação. 

Ambos franziram a testa, aguardando o resto de minha fala, que não tardou a vir. 

– Um outro exame de DNA já tinha sido feito há alguns anos, quando o bebê nasceu – expandi, mostrando os papéis em minha mão e desdobrando-os sobre a mesa entre nós – Dessa vez, com outro homem apontado como pai. Os resultados foram diferentes, o que não é necessariamente uma surpresa... No entanto, o nome do médico responsável pela análise é o mesmo. 

Observei com atenção à reação de meu pai durante a pequena pausa que se seguiu. Seus olhos despencaram de meu rosto para os papéis à minha frente, e neles se fixaram, enigmáticos, ilegíveis. Dei voz às palavras que assombravam minha mente, fazendo questão de lê-las diretamente da fonte para ter certeza de que não eram produto de minha imaginação. 

– Frank Sellers. 

Papai não se manifestou. Nem sequer uma palavra, nem ao menos um movimento. A cada segundo a mais de silêncio e inércia, a hipótese que eu construíra durante a noite anterior ganhava força, expandia-se em meu peito, forçando as palavras a saírem, agora quase num fluxo ininterrupto, sem o peso esmagador da insegurança que as atrofiava até então. 

– Pode não parecer muito relevante de início, mas se considerarmos que as clínicas onde os exames foram feitos são diferentes, algo já começa a ficar estranho, embora não seja impossível. O que mais me intriga, porém, é algo que não pode ser mera coincidência. 

Percebendo o rumo da conversa, ele rapidamente tentou argumentar – em vão. As palavras já estavam na ponta de minha língua, e eu não seria capaz de conte-las mesmo que quisesse.

– Blair, eu não sei do qu... 

– Eu conheci Frank Sellers quando era pequena. 
Elliot arregalou os olhos, movendo a cabeça de um lado a outro para acompanhar a discussão como se assistisse a uma partida de pingue-pongue. 

– Ele era seu amigo – adicionei, repassando as memórias nítidas, ainda que esparsas, do homem como fizera repetidas vezes desde o primeiro momento em que vi seu nome escrito nos dois exames – Trabalhava no mesmo hospital que você quando ainda morava conosco em Londres. 

– O que você está dizendo, minha filha? 

– Não adianta mentir agora. Eu sei quem ele era. Você sabe que eu sei. Sabe que eu já tinha idade suficiente para me lembrar dele. Você só não contava com a minha capacidade de lembrar o nome dele, muito menos com a chance de que eu tropeçasse por acidente em alguma menção impossível dele. 

Ele se recusava a ceder, por mais que sua expressão denunciasse, sob a frágil camada de contenção, um pânico crescente. Eu o conhecia bem o suficiente para saber que estava tocando justamente a ferida, e agora que recebera ao menos um vestígio de confirmação, não desistiria até revelar toda a verdade.

– Chega! Não admito que você venha até meu local de trabalho e me desrespeite dessa forma! 

– Pai, não se faça de desentendido – suspirei, deixando a exaltação de lado, porém não a veemência, e adotando um tom franco ao me levantar da cadeira – Nós dois sabemos que Frank Sellers está morto. 

Elliot não pôde evitar demonstrar seu choque com a revelação, cobrindo a boca com uma mão. A convicção de meu pai foi consideravelmente abalada por minha constatação. Como eu dissera antes, ele não contava com minha lembrança do ex-companheiro de trabalho. Não demonstrei um mísero sinal de incerteza ao sustentar seu olhar, e voltei a falar quando percebi que ele não se manifestaria tão cedo. Agitada demais depois de tantas horas de tensão para ficar parada, passei a andar de um lado para o outro da sala enquanto detalhava os registros que sobreviveram ao tempo em meu cérebro. 

– O dr. Sellers morreu de trombose coronária. Eu me lembro perfeitamente de te ouvir conversar com mamãe a respeito. Lembro que investiguei o que isso significava na Internet logo depois, assim como também procurei o nome dele ontem à noite e encontrei notícias a respeito de seu falecimento. Eu tinha dez anos... Eu me lembro, pai. Eu sei exatamente do que estou falando, e você também. 
Mais silêncio. Papai agora não ousava me encarar; fitava os papéis sobre a mesa, como se desejasse incendia-los com o poder da mente e assim reverter a situação. Seu derrotismo só serviu para inflamar ainda mais meu discurso. 

– Agora, o que eu realmente quero saber é: como pode um médico morto há quase nove anos ter realizado não apenas um, mas dois exames de DNA, o primeiro há seis anos, e o segundo há uma semana? Um pouco difícil de compreender, para dizer o mínimo, não? 

– Você... Você passou dos limites – ele gaguejou, balançando a cabeça em reprovação. Soltei um risinho debochado, reaproximando-me da mesa e apoiando as duas mãos sobre ela. 

– Se alguém aqui passou dos limites, definitivamente não fui eu. Tudo o que quero é uma resposta para um garoto que tem direito de saber quem é seu pai. Tudo o que quero é a verdade, que, segundo os seus ensinamentos, muito bem guardados em minha memória, é o principal objetivo da ciência. Onde está ela agora, pai? Porque nesses exames é que não estão. 

Empurrei os papéis em sua direção, cansada de sua postura dissimulada. Toda a ansiedade acumulada desde a noite anterior agora corria livremente por minhas veias, impedindo-me de agir de forma contida. Se ele não queria abrir o jogo, eu o faria mudar de ideia sem pensar duas vezes. Diante de seu silêncio vergonhoso, dei-lhe um ultimato. 

– Você vai falar, ou teremos que exumar os restos mortais do dr. Sellers para perguntar o que ele sabe a respeito disso? 

– Está bem, está bem, acalme-se! – ele suspirou enfim, tirando os óculos e esfregando os olhos em sinal de cansaço – É melhor eu falar de uma vez antes que você faça uma besteira. 

– Por favor, sou toda ouvidos – concordei, retomando meu lugar na cadeira e olhando-o com atenção. 

Alguns segundos de preparação precederam suas palavras. 

– Mas com uma condição: isso não pode sair daqui. 

Cerrei os olhos, verdadeiramente confusa, e não pude evitar rir mais uma vez, agora de incredulidade. 

– Você não entendeu o que eu disse? Um menino de seis anos não sabe quem é o próprio pai porque alguém está acobertando a verdade. Não posso prometer isso. Essa é a sua chance de se redimir por saber do esquema e ajudar a mante-lo em segredo. 

– Eu posso ir preso por isso, Blair! – ele murmurou, entre dentes. Dei de ombros, com toda a sinceridade do mundo. 

– Se foi burro o bastante para não seguir seu próprio conselho sobre ética profissional, não é uma criança quem deve pagar por seu erro. 

Meu pai bufou, recostando-se na cadeira. Elliot apenas assistia a tudo, boquiaberto, chocado e intimidado demais pela atmosfera pessoal da conversa para se intrometer. Apenas cruzei os braços, aguardando uma resolução para seu conflito interno. 

– Se eu não contar, o que você vai fazer? 

– Casualmente informar ao Conselho Geral de Medicina que dois exames de DNA foram falsificados por um médico, e aproveitar para casualmente mencionar que você era amigo do médico cujo nome foi usado na manipulação dos resultados. 

Com um sorrisinho cínico, esperei que ele digerisse o peso de minha resposta. Após engolir em seco, ele voltou a me questionar, apelando para a sentimentalidade. 

– Você teria coragem de entregar seu próprio pai? 

Ergui uma sobrancelha, forçando-me a manter minha postura desafiadora apesar da dor que aquela possibilidade trazia. 

– Claro, assim como você teve coragem de se submeter a um esquema vergonhoso desses. 

Meu esforço se mostrou eficiente, a julgar pela súbita seriedade em seu rosto. 

– E se eu contar? 

– Garanto que as autoridades nunca saberão disso... Mas você terá que confessar tudo para a família do garoto, ou nada feito. 

– Como você sabe que eles não me entregarão? – ele perguntou, de olhos arregalados. 

– Porque eu não vou deixar – Elliot enfim se pronunciou, olhando rapidamente para mim e confirmando sua participação no esquema – A verdade sobre Ben é só o que importa para nós. Além do mais, sua filha é amiga da família, e em consideração a ela, nada será feito contra o senhor. 

Papai analisou a proposta por um momento, lançando-me um último olhar suplicante, que obviamente não surtiu qualquer efeito. Ao perceber que não encontraria escapatória, um suspiro pesado deixou seus pulmões, e ele se rendeu. 

– Está bem. 

Elliot e eu nos entreolhamos, nervosos com o que estava por vir, e voltamos a prestar atenção em meu pai, que, sem mais delongas, solucionou o mistério. 

– Sim, fui eu que falsifiquei os resultados usando o nome do dr. Sellers como disfarce. 

Ouvir as palavras saindo de sua boca foi infinitamente mais doloroso do que eu imaginava que seria, mesmo tendo previsto o teor de sua confissão com várias horas de antecedência. Controlei o frio desapontamento que brotou em meu peito, e deixei que ele prosseguisse. 

– Quando o primeiro exame foi feito, uma mulher chamada Emily me procurou. Ela estava desesperada... Disse que o pai de seu filho a ameaçava, que não queria a criança, e pediu... Pediu para que eu forjasse o resultado do teste, ou então algo terrível poderia acontecer. 

Estremeci ao me recordar das palavras de Matthew sobre como ele manipulara Emily a falsificar o exame. Imaginar o medo e a repulsa que ela deve ter sentido por ele naquela época, e que ainda devia sentir, apenas tornou aquele momento ainda mais difícil. As versões batiam até ali... Tudo indicava que ele tinha razão. 

– Tentei argumentar, expliquei que não seria possível fazer o que ela me pedia, até que... Até que ela me ofereceu dinheiro. Muito dinheiro. 

Ao visualizar a cena, meu estômago automaticamente protestou contra a imagem mental repugnante. Meu próprio pai, aceitando dinheiro em troca da adulteração de exames... E como se aquilo já não fosse suficiente, da família de Zayn... Só podia ser um pesadelo. 

– Eu estava com dificuldades financeiras na época... Meu primeiro filho do segundo casamento tinha acabado de nascer, o hospital estava em crise... Filha, procure entender... 

Ele tentou colocar sua mão sobre a minha, mas eu a retraí de imediato, voltando a ficar de pé ao sentir lágrimas de decepção e vergonha embaçarem minha visão. 

– E então você aceitou o suborno – falei, sem cerimônias, e minha sinceridade o fez fechar os olhos – Você aceitou manipular não só a vida daquela criança, mas a vida do homem sobre cujos ombros a falsa paternidade caiu, e as vidas de todos os outros familiares diretamente envolvidos no caso, como, por exemplo, Elliot. 

Não tive coragem de olhar para o lado e descobrir o que ele estava pensando ou sentindo. Apenas mencionei seu nome para que meu pai sofresse ainda mais, para que percebesse o impacto de seu deslize, e sentisse o desprezo por si mesmo que eu sentia naquele instante. 

– Nada, pai... Nada justifica o que você fez. 

– Eu não queria! Mas... Mas eu nunca tinha visto tanto dinheiro na vida... 

– Por favor, poupe-me dos detalhes sórdidos! – exclamei, absolutamente enojada, afastando-me da mesa com as mãos sobre as orelhas – Uma criança teria passado a vida inteira achando que o próprio tio era seu pai! Um homem teria passado a vida inteira achando que dormiu com a própria prima! O verdadeiro responsável por tudo isso teria saído impune se a vida não tivesse dado seu jeito de faze-lo pagar por seu erro! E você vem me falar de dinheiro? Desculpe-me por não conseguir engolir esse papinho furado. Eu e mamãe também sofremos financeiramente quando você saiu de casa, e isso não quer dizer que ela se tornou uma criminosa para colocar comida na mesa! 

À essa altura, lágrimas rolavam por meu rosto, que eu mais que depressa enxuguei, recusando-me a demonstrar fraqueza diante daquele homem que eu definitivamente não conhecia. Ele abriu e fechou a boca algumas vezes, buscando palavras para se redimir, mas não as encontrou; apenas devolveu meu olhar com um penalizado, arrependido. Estava transtornada demais para sequer considerar a possibilidade. 

– Por que você manipulou também o segundo exame? – indaguei, buscando reprimir ao máximo meus sentimentos e focar nas informações restantes para completar o quebra-cabeça – Foi a pedido de Emily ou por conta própria, para encobrir o rastro da primeira falsificação? 

– Assim que você me passou o número do protocolo do exame e eu li o nome dos pacientes, entrei em contato com Emily, como ela me pediu para fazer caso alguém tentasse realizar outro teste sem o seu conhecimento. Acredite, essa foi a única vez que fiz isso, nunca mais aconte... 

– E ela te pediu para manipular o resultado mais uma vez? – perguntei, sem condições de aceitar explicações naquele momento – Por dinheiro também dessa vez? 

Cabisbaixo, meu pai apenas assentiu. Suspirei profundamente diante de tamanho absurdo, e cobri o rosto com as mãos, desejando mais do que tudo poder sumir dali, voltar no tempo e corrigir toda aquela bagunça. Elliot se levantou e veio até mim, segurando meus braços como se temesse um desmaio meu ou algo parecido. 

– Chega, chega... Vamos embora daqui – ele murmurou, mas eu logo me desvencilhei dele, reaproximando-me da mesa com o rosto vermelho de raiva. 

– Eu sempre tive a maior admiração por você – falei, incapaz de continuar lutando contra o choro entalado em minha garganta – Sempre me interessei pelo seu trabalho, porque para mim salvar uma vida é a coisa mais incrível que alguém pode fazer... Você sempre foi um exemplo de retidão para mim, mesmo depois do divórcio. Mas agora... Agora eu não sei mais o que pensar. 

– Me perdoe... Minha filha, me perdoe... – ele implorava, com os olhos cheios de lágrimas, mas eu não conseguia sentir nada além de decepção. 

– Elliot, por favor, escreva o endereço da sua casa – pedi, pegando um papel e uma caneta da mesa e entregando-os a ele antes de voltar a me dirigir a meu pai – Você tem até a meia-noite de hoje para ir até lá e explicar tudo para a família, ou então eu o entregarei. Nem pense em fazer alguma gracinha. 

Elliot obedeceu, entregando o papel a meu pai, que o aceitou e concordou com a cabeça. Sustentei seu olhar desolado por alguns segundos, tentando encontrar nele o carinho e a confiança sempre presentes, mas a sensação de traição era forte demais para ignorar. Com a voz grave, sem qualquer vestígio de emoção, pronunciei minhas últimas palavras antes de deixar sua sala. 

– Se realmente quer o meu perdão, prove para mim que ainda existe algo de admirável em você. 

Dei-lhe as costas sem olhar para trás, e Elliot me seguiu em silêncio durante o breve trajeto até a rua. Meu corpo inteiro tremia, ainda processando o peso da descoberta e a indignação que ela trouxera, mas só sucumbi às emoções quando entrei no carro, acompanhada por seu proprietário. Encarei o painel diante de nós por alguns segundos, com a respiração entrecortada, até que o baque dos últimos minutos enfim me atingiu e eu desmoronei. Elliot me abraçou, murmurando palavras de conforto, e embora eu tentasse me recompor, tudo doía muito. 

Meu próprio pai foi cúmplice de toda a confusão na vida de Zayn. Como eu poderia sequer começar a explicar tudo isso? Como eu poderia sequer começar a aceitar tudo isso? 

– Tente se acalmar – Elliot disse, enxugando algumas lágrimas de meu rosto – Tenho certeza de que ele não fez por mal. Procure entender o lado dele também. 

– Entender? – solucei, incrédula – Ele aceitou falsificar um exame de DNA que mudou a vida de várias pessoas por dinheiro... Não me peça para tentar entender o lado dele. 

– Minha família também teve culpa... Minha irmã, mais especificamente. Mas acima de tudo, Matthew foi o principal responsável por tudo isso, não se esqueça. 

– Mesmo assim... Nunca imaginei que uma coisa dessas fosse acontecer – insisti, procurando recuperar o fôlego – Não sei nem como você ainda está me consolando, agora que sabe que meu pai faz parte dessa sujeira. 

– Não se martirize desse jeito, Blair, pelo amor de Deus – Elliot exclamou, chacoalhando-me de leve pelos braços – Você não tem culpa de nada disso! Pelo contrário, sem você, essa mentira teria permanecido encoberta por muitos anos, se não para sempre! Eu sou é grato por você ter insistido em trazer a verdade à tona desde o início. 

Devolvi seu olhar sincero com um emocionado, ainda que não me sentisse merecedora de sua consideração. 

– Obrigada... Mas duvido que sua família pense da mesma forma – respondi após me recuperar do efeito de suas palavras – Especialmente um membro dela. 
Elliot bufou, soltando-me como se eu tivesse uma doença contagiosa. 

– É claro que ele vai concordar comigo, não seja ridícula. Ele te ama, todo mundo sabe disso! Além do mais, que motivo ele teria para não concordar, se você vai tirar um peso enorme de seus ombros, um peso que ele carrega há anos? 

Balancei negativamente a cabeça, enxugando os olhos com as mangas da blusa. 

– Ele se apegou a Ben, eu sei disso. Não será fácil para ele descobrir a verdade. 

– Não estou falando de Ben. Estou falando da culpa que ele sente por não tê-lo assumido antes. 

Um momento de silêncio se seguiu, até que dei voz às minhas reflexões. 

– Ben merece saber a verdade... Mas não sei se ele merece essa verdade. Não sei se Matthew pode ser um bom pai. 

Elliot respirou fundo, partilhando de minha preocupação, porém não se deixou abalar por muito tempo. 

– Não se preocupe com o futuro – ele sorriu, segurando minhas mãos – Você já fez mais do que deveria por nós. Deixe que cuidemos do resto agora. 

– Mas... 

– Sem “mas”, garota. É sério. Olhe só o seu estado. Você precisa relaxar depois de tudo isso. 

Agradeci a gentileza com um esboço de sorriso, embora soubesse que não seria tão simples assim. 

– Não. Ainda tem mais uma coisa que preciso fazer. 



– Elliot! Chegou bem na hora do almoço. 

Fechei os olhos ao ouvir a voz afetuosa de Audrey assim que ele surgiu na sala de jantar. Eu estava a alguns passos da entrada, esperando o momento certo para aparecer. Isto é, se eu conseguisse desgrudar da parede e resolver minha última pendência com aquela família. 

– Por favor, escutem – Elliot começou, parado em frente à mesa ao redor da qual todos os familiares já esperavam pela refeição – Eu trouxe uma pessoa comigo, e... Tem uma coisa de que vocês precisam saber. Ouçam o que ela tem a dizer. 

Esperei até que ele me olhasse e permitisse minha entrada com um aceno de cabeça. Quando ele o fez, reuni toda a coragem que ainda me restava e caminhei até ele, revelando minha presença a todos. De início, fitei o chão, incapaz de encarar os vários pares de olhos que imediatamente se fixaram em mim; no entanto, uma voz me fez erguer o rosto e procurar sua origem. 

– Blair? 

Meus olhos arderam com mais lágrimas ao devolver o olhar completamente confuso de Zayn. 

– Oi. 

– Oi... O que está... O que está fazendo aqui? – ele gaguejou, ficando de pé assim que assimilou o que estava acontecendo. Balancei a cabeça em negação, num pedido mudo para que ele ficasse onde estava. 
– Prometo que não vou demorar. 

Enquanto me preparava para começar a falar, meus olhos encontraram os de Emily, bem ao lado de Zayn. O medo que vi neles, similar ao de um animal encurralado, prejudicou ainda mais minha firmeza, ou falta dela. 

Logo ao seu lado, identifiquei o rostinho de Ben, encarando-nos com inocente curiosidade. Toda a determinação que me levara até ali voltou com força total ao reafirmar para mim mesma que ele seria o principal beneficiado por tudo aquilo. Contudo, aquela não era a hora nem a ocasião apropriada para que ele descobrisse a verdade sobre seu pai; lancei um olhar rápido a Elliot e discretamente indiquei seu sobrinho com a cabeça, mensagem que ele logo compreendeu. 

– Por favor, leve-o para dar uma volta no jardim – ele pediu a uma das empregadas que aguardava a permissão para servir o almoço, e somente quando ela se retirou com o pequeno é que comecei a falar. Emily não se manifestou, apenas acompanhou a sequência de eventos sem mover um músculo. 

Expliquei tudo. Do dia em que Matthew me procurou para contar sua versão da história ao momento em que meu pai confessou ter adulterado os resultados, há pouco menos de uma hora, tudo o que importava para o entendimento dos fatos foi relatado com o maior detalhamento possível, e com a confirmação de Elliot, que por vezes também tomava a palavra. Alguns momentos foram particularmente difíceis, mas não me deixei abalar, sabendo que todos ali mereciam parar de viver uma mentira. 

– Eu... Eu sinto muito – disse por fim, sem saber mais como encarar aquela família que agora sabia de tudo, embora ainda estivesse chocada demais para reagir – Eu nunca quis prejudicar nenhum de vocês... Nem mesmo você, Emily. 

Ao ouvir seu nome, ela engoliu em seco, pega de surpresa por minhas palavras de apoio. Lutando contra as lágrimas que se acumulavam em seus olhos, ela me observou atentamente enquanto eu prosseguia. 

– Sei que você não tem culpa. Sei que Matthew te ameaçou, e você, tendo a idade que tenho hoje naquela época, sozinha, arrependida, assustada, com uma responsabilidade tão grande nas costas, fez o que achou melhor para seu filho. Não consigo me imaginar em seu lugar, e exatamente por isso não posso te julgar pelas decisões que tomou. Mas Ben não deve ser prejudicado... Nem Zayn. Quanto antes todos souberem a verdade, menos sofrimento será causado. 

Ela fechou os olhos por um momento, derrubando duas lágrimas pesadas, e então assentiu, compreendendo que eu tinha razão. Elliot sorriu para a irmã quando seus olhos se encontraram, e ela devolveu o gesto, aliviada por não ser condenada pela própria família por um erro que não poderia ser atribuído somente a ela. 

– Meu pai virá até aqui ainda hoje confirmar e esclarecer a situação – falei, voltando a me dirigir a todos, e evitando uma pessoa em especial, ainda de pé, abalada demais para reagir – Novamente, peço desculpas por seu comportamento inaceitável, e desculpas também por causar tanto transtorno em suas vidas. Eu sinto muito. 

Respirei fundo, sentindo-me trêmula e fraca, prestes a desabar diante de todos. Sem saber mais como agir e precisando me esconder do mundo por algumas horas depois de resistir a tantos impactos, simplesmente saí por onde havia entrado. 

Antes disso, examinei a expressão estarrecida de Zayn, e guardei na memória seu olhar distante, perplexo, sem saber quando poderia fazer aquilo outra vez. 

– Espera! – Elliot exclamou, quando eu já descia os degraus externos da casa; relutei a atender seu chamado, mas ele me alcançou e me segurou pelo braço – Aonde você vai? 

– Para casa... Preciso... Preciso respirar – murmurei, tão exausta emocionalmente que minhas pálpebras pesavam – Você pode cuidar do resto sozinho, não pode? 

– Claro, mas... Você não vai falar com ele? 

Neguei com a cabeça sem pestanejar. 

– Ele precisa de tempo para processar tudo isso, e eu também. Não sei nem como olhar para ele agora. 

Elliot abriu a boca para contestar, mas, vendo que eu não estava em condições de discutir, desistiu. 

– Vou chamar um motorista para te levar. Espere aqui. 

Quis negar sua oferta, mas o cansaço e a tremedeira que se apoderavam cada vez mais de mim foram mais fortes. Terminei de descer a escada e aguardei seu retorno, com o rosto coberto por minhas mãos geladas. Minha cabeça latejava depois de tanto estresse, e a noite em claro enfim manifestava seus efeitos colaterais. 

– Blair... 

Por um instante, pensei ter alucinado, mas bastou olhar por sobre meu ombro para saber que estava enganada. Meus joelhos quase cederam ao meu peso quando me deparei com Zayn a apenas alguns metros de distância. Seus olhos estavam vermelhos, e uma lágrima solitária escorria devagar sob um deles. 

Por longos segundos, apenas nos encaramos, tentando encontrar palavras para expressar o que sentíamos, porém estávamos tão revirados, tão bagunçados por dentro que nenhum de nós emitiu um som sequer. Desisti de dizer qualquer coisa quando ele abaixou a cabeça e levou uma mão ao rosto, para depois voltar a me olhar. Notei Elliot se reaproximar com o motorista, e fiz a única coisa em que consegui pensar. 

– Eu sinto muito – repeti, vencendo a distância entre nós e levando meus lábios até sua bochecha, de onde enxuguei sua lágrima numa demonstração singela de amor. Zayn procurou meus olhos com os seus quando me afastei, ainda atordoado com tudo o que acabara de descobrir, mas ligeiramente consolado por meu beijo. Forcei um sorriso fraco antes de dar meia volta e acompanhar Elliot e o motorista até o carro estacionado a alguns metros dali, com o coração dolorido e o gosto salgado de sua tristeza ainda nítido em minha boca. 

– Cuide-se – Elliot disse ao me abraçar, quando o motorista abriu a porta para mim – Obrigado por tudo. 

– Cuide-se você também – suspirei, apertando-o contra mim com toda a força que pude convocar, o que não era muito dadas as circunstâncias – E por favor, cuide... 

–Pode deixar – ele confirmou, sabendo exatamente a quem me referia – Ele sabe onde te encontrar. 

Concordei com a cabeça antes de entrar no carro, e com mil pensamentos disputando espaço em minha mente cansada, observei o extenso jardim e a alta cerca viva da mansão ficarem para trás. 

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