Capítulo 9
Nem que o mundo acabasse naquele momento, a Bia conseguiria desviar os olhos dos dedos do Lourenço soltando cada botão da camisa branca. Ela se encheu de arrepios debaixo do sol escaldante relembrando as vezes em que ele tinha tirado a roupa só para ela, e aqueles mesmos dedos deslizaram na sua pele, exploraram seu corpo, despertaram sensações que, depois de tantos anos, ainda eram tão vívidas que faziam seu estômago dar cambalhotas.
Aos poucos, os músculos do peito onde ela tinha descansado a cabeça mais vezes que saberia contar, foram aparecendo e quando ele deslizou a camisa por cima dos ombros, seu olhar foi atraído para a única tatuagem que o enfeitava, a homenagem da mãe reinando absoluta, sem outros desenhos para ofuscá-la, diferente dos braços, quase todos tomados de tinta.
— Bia... — ele interrompeu sua inspeção e virou o bíceps esquerdo de lado, mostrando a ela o que ele queria que ela visse
O ar faltou e a praia a sua volta, sumiu. O único som no silêncio ensurdecedor do seu choque era seu coração bombeando o sangue com violência, e ela firmou as pernas no chão, que tinha se transformado em areia movediça, para continuar de pé.
Ali, na sua frente, estava uma versão menor e monocromática do seu quadro. O quadro que ela tinha pintado depois da noite em que ela não se lembrava de ter entregado sua virgindade a ele. O quadro que ela tinha levado de presente para ele no dia da sua segunda primeira vez.
Com medo de piscar e a imagem sumir da sua frente, ela levantou a mão e tocou a pele macia que cobria os músculos de aço. Só podia ser uma alucinação ou uma miragem.
Mas não, não era.
O desenho continuou lá enquanto ela deslizava a ponta do indicador pelos cabelos esvoaçantes da mulher de costas, sem camisa, pela barra da saia comprida escorrendo pelo chão, pela paisagem de montanhas cortadas pelo rio diante dela. Muito detalhes foram sacrificados na transformação do quadro em tatuagem, mas a essência, a alma, estava lá.
O Lourenço tinha tatuado seu quadro!
A Bia tirou os óculos e limpou as lágrimas que desfocaram a imagem que ela ainda não conseguia acreditar estar ali, na sua frente.
— Você não gostou. — A afirmação do Lourenço a fez dar um pulo.
Por alguns segundos ela esqueceu que era o braço dele que ela tocava, que ela não estava sozinha no mundo, de tão envolvida no redemoinho de emoções e lembranças que aquele quadro lhe trazia.
— Não... não é isso... — ela mal conseguiu falar. — Eu... eu... tô sem palavras.
Sem palavras. Sem estrutura. Sem reação.
— Quando a Mari e a Alexa me perguntaram o que eu queria que elas fizessem com as coisas do apartamento, eu disse que eu não me importava. Que elas podiam vender, doar, queimar, eu não estava nem aí pra nada. A única coisa que eu queria que elas guardassem pra mim, era o seu quadro.
— Mas os policiais quebraram ele todo — a Bia sussurrou, a imagem da tela pisoteada, destruída no chão, clara na sua mente como se ela a tivesse visto no dia anterior, e não dez anos antes.
— Foi o que a Alexa me contou. — Ele enfiou o dedo pelo lado dos óculos escuros e esfregou a cicatriz. A Bia tentou enxergar as emoções nos olhos por trás das lentes, mas tudo o que viu foi a sua própria face, chocada e incrédula, a olhando de volta no reflexo. Ela recolocou seus óculos e ele soprou o ar com força, antes de continuar. — Eu estava numa merda sem tamanho, preso pela segunda vez pelo mesmo crime e precisando escolher entre confiar minha defesa a um outro defensor público desinteressado ou tirar as minhas irmãs de casa pra poder pagar um advogado, mas, por incrível que pareça, foi perder o seu quadro que me jogou no chão. Você me disse, uma vez, que todas as suas pinturas tinham um pedacinho seu, eu achei que pelo menos aquele pedacinho, era meu pra sempre.
Ele parou, respirando fundo e pesado, quase que igual a ela. A Bia se concentrou em fazer seu exercício de respiração até suas emoções voltarem a um nível aceitável.
— E você fez a tatuagem depois que foi pra Porto Alegre?
O Lourenço balançou a cabeça, confirmando.
— Eu tinha passado muito tempo olhando aquele quadro e depois, lembrando dele. E enchi o saco do tatuador até ele conseguir chegar o mais perto possível do que eu lembrava. — Ele baixou os olhos para o próprio braço. — Não ficou igualzinho, mas ficou bem parecido.
Tinha ficado bem parecido. Inclusive o B manuscrito que ela costumava colocar no canto inferior das suas pinturas, como assinatura.
O Lourenço tinha tatuado seu quadro! E mais, ele tinha tatuado sua inicial. Não um B qualquer, mas a sua inicial!
Era de dar um nó na cabeça de qualquer um. Sempre que ele se olhasse no espelho, sempre que uma mulher acariciasse aquele braço e elogiasse as tatuagens dele, sempre que ele passasse a mão por cima daquele B, era dela que ele iria se lembrar. Pelo resto da vida.
Ele podia voltar para o Rio, ou podia decidir continuar em Porto Alegre. Ele provavelmente, um dia, iria se casar, ter outros filhos, construir uma família longe da Bia. E mesmo quando atendesse o pedido da esposa e fizesse outra tatuagem por cima da sua — que mulher ia querer conviver com a lembrança de uma ex-namorada no braço do marido? — mesmo assim, seu desenho continuaria lá. Coberto e camuflado, mas lá. Até ele morrer.
— A próxima pessoa que quiser me tomar o seu quadro, vai ter que arrancar o meu braço — ele terminou, como se tudo o que ele disse até ali, não tivesse sido o suficiente para acabar com ela.
— Foi a coisa mais bonita que alguém já fez por mim, na minha vida — ela repetiu as palavras que ele tinha dito poucos minutos antes, terminando com um soluço e com o estouro da barragem de lágrimas que ela não conseguiu conter.
— Bia... — ele sussurrou antes de puxá-la para os braços dele.
Ele a envolveu e ela se apoiou na fortaleza inabalável que ele era, enquanto seus ombros balançavam com o choro silencioso, que ela tentou manter discreto. No calor e no conforto daquele abraço, o chão se moveu, o mundo mudou de posição, saiu de eixo.
Não. Mentira.
O mundo voltou para o eixo, tudo de volta no lugar de onde nunca devia ter saído, como quando a última peça do quebra-cabeças se encaixa e a figura fica completa, clara e nítida.
Mas sua vida continuava tão bagunçada como antes, os problemas não tinham sumido. Então, de onde vinha aquela sensação de tudo estar exatamente como deveria estar? De sua sensibilidade exagerada naquele momento, óbvio, criando uma ilusão que ela não podia levar a sério.
Ela se agarrou a ele, os dedos fincados nos músculos firmes das costas do Lourenço, e se suas unhas estavam machucando, ele não reclamou e simplesmente a segurou de volta.
— Mamãe. — A Bia sentiu um puxão na barra da sua saída de praia e se afastou do Lourenço, limpando o rosto antes de se virar para a Amanda.
— Que foi, meu amor?
— Você tá chorando?
A Bia se ajoelhou na frente dela, respirando fundo, encarando a filha assustada e confusa.
— Eu tô, mas lembra como eu te disse que nem sempre chorar é ruim? Às vezes, a gente chora de alegria, ou porque ficou emocionada com alguma coisa bonita.
— Igual como você chora no começo daquele filme que a casa voa com um monte de balão?
— Acertou, dona espertinha. Agora, vamos sair do sol. Anda.
A Bia levantou e guiou a filha de volta para debaixo da barraca. Mesmo besuntada de protetor solar, não dava para dar bobeira com aquela pele branquinha.
— Eu tô com sede — a Amanda anunciou assim que a Bia se sentou, mas antes que ela pudesse levantar de novo, o Lourenço levou a garrafa térmica até elas.
— Obrigada — a Bia agradeceu e encheu a tampa da garrafa que também servia de copo.
— E tio Lôro? Eu preciso de água do mar. — A Amanda estendeu o baldinho para ele.
— Ei, mocinha — a Bia chamou a atenção da filha. — Como é que a gente fala quanto tá pedindo um favor?
— Tio Lôro? — a Amanda recomeçou. — Por favor, eu preciso de água do mar, obrigada.
— Claro, princesa. — Ele colocou um joelho no chão e pegou o baldinho com as duas mãos, como se estivesse recebendo uma missão superimportante. — Seu desejo é uma ordem.
Acabando de enxugar as lágrimas com um lencinho de papel que pegou dentro da bolsa, a Bia acompanhou os passos do Lourenço em direção ao mar, o anjo de asas abertas tomando as costas largas quase inteira, mas ela não foi a única. Junto com ela, todas as mulheres acima de quinze anos que tinham a sorte de estar no caminho dele, também olharam. Discretamente, algumas. Descaradamente, a maioria.
Uma risada escapou pelos lábios da Bia.
Elas podiam olhar.
Elas podiam até babar.
Mas não era um pedacinho delas que ele sempre levava com ele, onde quer que ele fosse, era?
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