Capítulo 8

— Biatriz... — O Lourenço suspirou e colocou as mãos no quadril, olhando o monte de coisas que ela tinha juntado perto da porta. — Quando eu disse praia, eu quis dizer essa aqui na frente do seu condomínio e não no Havaí.

Ela não ficou com pena. Ela tinha sugerido a piscina, não tinha? Mas nããão, ele quis ser democrático e ela tinha perdido a votação, e não era sua culpa se ir à praia com duas crianças significava carregar o equivalente à bagagem de uma pequena viagem, mesmo que a dita cuja estivesse a menos de dez minutos de distância, a pé. E ele não tinha visto a quantidade de malas da última vez que ela tinha viajado para o exterior, ou não estaria reclamando.

— E você tem certeza que você não tá indo pro trabalho? — a Bia respondeu ao sarcasmo dele com sua própria alfinetada. — Eu nunca vi ninguém ir à praia com camisa de manga comprida.

Da cintura para baixo, ele era o perfeito turista-de-férias, chinelo e bermuda colorida, mas ele não tinha trocado a camisa branca de botões, com as mangas dobradas que tinha usado no café da manhã. Devia ter alguma coisa errada com ele, só podia. E muito em breve a Bia ia descobrir o quê. A não ser que ele pretendesse ficar de camisa na praia também. O que seria um pecado. Não que fosse relevante se ele tirasse ou não a camisa. Mas que seria um pecado, seria.

— A gente precisa levar tudo? — Ele coçou a cabeça como se não tivesse escutado o que ela falou.

— Eu preciso dos meus brinquedos. — A Amanda se agarrou à alça da bolsa quase maior que ela cheia de bonecas, panelinhas, copinhos e mais um monte de tralha, além do baldinho na outra mão.

— E você disse que eu podia ter uma cadeira só pra mim, mamãe — a Alícia completou.

— Tudo bem. — O Lourenço abaixou o queixo e a olhou por cima dos óculos escuros, levantando uma garrafa térmica azul de cinco litros. — Mas isso é água? Não vende água na praia?

— Vende — a Bia confirmou. — Água de torneira que os ambulantes colocam nas garrafinhas usadas e põe uma tampa nova e não dá pra perceber a diferença até você pegar uma infecção intestinal, ou uma hepatite A, ou uma leptospirose...

— Entendi. — Ele colocou a garrafa de volta no chão. — A água vai.

— Lourenço. — A Mariana deu um passo à frente. — Não é a primeira vez que a Bia sai com as meninas, se ela tá dizendo que precisa de tudo, é porque precisa.

A defesa da ex-cunhada foi inesperada, mas muito apreciada. E tudo bem, talvez fosse um pouco de exagero, a quantidade de coisas, mas a Mariana estava certa, várias idas à praia ensinaram a Bia a valiosa lição de que era melhor carregar aquilo tudo do que fazer trezentas viagens até em casa cada vez que as meninas pediam algo.

— Eu sei, mas...

— Eu acho que a gente devia votar — a Bia o interrompeu. — Quem acha que a gente deve levar tudo, levanta a mão.

Todo mundo levantou a mão, menos o Lourenço.

— Quatro contra um, hã? — Ele não gostou de estar do lado perdedor, acostumado que era a sempre conseguir tudo o que queria.

— Lourenço, eu te entendo — a Bia concedeu. — É demais pra você carregar, né? A gente pode ir de carro, se você quiser.

— De carro? Daqui até ali? — Estreitando os olhos na direção da Bia, ele pendurou a bolsa de brinquedos da Amanda num ombro, a bolsa com as frutas e os biscoitos no outro, agarrou duas cadeiras com uma das mãos, e conseguiu juntar a garrafa térmica com as outras duas cadeiras na outra mão. — Demais pra mim? Não é demais pra mim.

A Bia abriu a porta, e ele passou resmungando.

Os homens eram tão fáceis. Bastava você duvidar da capacidade deles de fazer algo e pronto! Estava feito. Era no mínimo engraçado, ver um homem como o Lourenço irritado por ter que defender sua masculinidade, e a Bia e a Mariana trocaram um sorriso — quem diria que um dia elas seriam cúmplices em algo! — enquanto dividiam entre as duas o pouco que tinha sobrado.

A praia estava cheia para uma quinta-feira, e não poderia ser diferente — combo de férias, verão e Rio de Janeiro — mas ainda era cedo e eles não demoraram a achar um espaço na areia para montar acampamento. Descrição do Lourenço, claro.

Com o trabalho em conjunto, num minuto a Amanda estava virando sua bolsa de brinquedos na canga que a Bia estendeu debaixo de um guarda-sol, as bolsas e a garrafa de água protegidas na sombra de outro e as quatro cadeiras distribuídas em volta.

A Bia deixou os olhos se perderem no azul do mar e respirou fundo, a mistura de sal com protetor solar, o sol esquentando sua pele na confusão de vozes e risadas das crianças e gritos dos vendedores e o barulho das ondas. Piscina era bom e confortável, mas uma praia de vez em quando, fazia bem à alma. Pena que dava tanto trabalho.

A Mariana e a Alícia tinham corrido para a beira da água e estavam pulando as ondas, de mãos dadas. A Bia puxou uma das cadeiras para a sombra, perto da filha caçula, procurando um ângulo que desse para ficar de olho na mais velha. Não é que ela não confiasse na Mariana, mas, bom... no atual momento, só com o Fred, ela fosse capaz de deixar as meninas e relaxar totalmente.

Depois de achar a posição perfeita, ela ajeitou os óculos escuros no rosto e puxou a barra da saída de praia, cobrindo o máximo das pernas que conseguiu. Ela era um hipócrita, isso sim, por ter implicado com a bendita camisa do Lourenço se ela mesma tinha toda a intenção de continuar vestida. Desde que se viu no espelho de biquíni, quando estava se arrumando, ela não conseguia parar de pensar no que a mãe — que tinha escutado inúmeras vezes ela repetir em tom de brincadeira, mas nem tanto, que não existia 'magra demais' — diria ao vê-la praticamente pele e osso.

Na democracia da praia, que aceitava todos os tipos e formatos de corpos, era estranho que a Bia, que nunca tinha se achado a mulher mais perfeita do mundo, mas também nunca tinha tido problemas com sua aparência, se sentisse autoconsciente. A verdade era que, se ninguém em volta deles fosse perder mais que dois segundos reparando nela, tinha o Lourenço. Claro que ele ia olhar. E comparar. E não tinha como um corpo que passou por duas gestações, foi castigado por uma tonelada de remédios e sofria os efeitos de uma crise de abstinência que roubava todo o seu apetite, pudesse ser comparado com as curvas e a exuberância dos seus dezoito anos. Ou com os das mulheres que ela tinha visto ao lado dele nas fotos da internet.

A Bia não queria ver o julgamento nos olhos dele, ou pior, a tentativa de disfarçar a pena. Ainda mais quando ele era como um vinho que passou dez anos envelhecendo nas melhores condições e se tornou uma bebida rara e cobiçada, perto da garrafa de vinagre que era ela.

— Ei. — O Lourenço se ajoelhou ao seu lado. — Vocês não querem ir na água? Eu fico tomando conta das coisas.

— Eu tenho medo da onda — a Amanda explicou sem levantar os olhos do monte de buracos que estava cavando na areia.

— Eu fico com ela. Pode ir você — a Bia ofereceu.

— Eu preciso te fazer uma pergunta. Vem comigo aqui um minutinho? — Ele deu uma olhada para a Amanda, indicando que era um assunto que ela não podia ouvir.

Com a curiosidade atiçada, e Bia o seguiu por alguns passos e se posicionou de modo que ficasse com um olho em cada filha e desse atenção ao Lourenço e a pergunta que parecia importante, a julgar pela gravidade da expressão no rosto dele.

— O que eu falo, sobre isso? — Ele bateu a mão no peito, por cima do tecido branco.

Claro! Como a Bia podia ter se esquecido da tatuagem com o nome que a Alícia veria quando ele tirasse a camisa?

Ele esperou pacientemente enquanto a Bia organizava seus pensamentos, formulando a resposta.

— Lourenço, quando a Alícia começou a chamar o Diego de pai, eu procurei uma psicóloga, procurando conselho sobre como agir. Eu nunca tive a intenção de mentir pra Alícia, eu te disse isso uma vez, até porque, se pouca gente sabe quem é o pai dela de verdade, é só olhar o Diego perto dela pra ver que nem por um milagre eles compartilham DNA. O que a psicóloga me aconselhou foi o seguinte: que as crianças perguntam de acordo com a necessidade que elas têm de saber, e que elas têm mais facilidade com pequenas doses de informação, pra poderem absorver um pouquinho de cada vez. E que seria a curiosidade da Alícia mesmo que ia me guiar com as perguntas dela, que eu devia responder sem mentir, mas sem ir além do que ela tinha capacidade pra entender naquele momento.

O Lourenço balançou a cabeça algumas vezes, o olhar perdido no horizonte.

— A verdade, então. — Ele se virou para a Bia. — Se ela perguntar, eu digo que é uma homenagem que eu fiz pra minha mãe, que já morreu.

— Perfeito — a Bia aprovou. — O mais provável é que ela nem vai perceber, mas se ela achar estranho, a coincidência, você fala pra ela vir falar comigo. Fui eu que dei o nome, eu que tenho que explicar.

— E o que você vai dizer?

— Que eu te conheci antes de ela nascer, que eu vi sua tatuagem e achei o nome bonito. Essa é a verdade que eu posso contar pra ela, agora.

— E depois? O que você vai falar pra ela?

O olhar do Lourenço desceu como um peso sobre a Bia. Ele não precisava especificar depois do quê. E a pergunta não era mais por causa da Alícia. Era ele quem queria saber. E com ele, não havia necessidade de meias informações.

— Eu vou dizer que um dia, numa conversa, você falou que se a gente tivesse uma filha, ela ia ter o nome da sua mãe, e que desde o minuto que eu soube que eu ia ter uma menina, não existiu outra possibilidade de nome pra ela.

O Lourenço respirou fundo, massageando o peito por cima da tatuagem, e quando falou, a voz saiu engasgada.

— Foi a coisa mais bonita que alguém já fez por mim, na minha vida. Eu nunca vou conseguir retribuir sua generosidade.

Ele abaixou o queixo e a olhou por cima dos óculos de um jeito tão familiar, tão como ele a olhava antes, que a Bia não conseguiu sustentar e procurou pela Alícia, com a água pela cintura do lado da Mariana, mas as duas ainda estava de mãos dadas e o mar estava calmo, e não havia necessidade de ir salvá-la.

— Você tem sorte de a sua mãe ter um nome bonito — a Bia brincou para dissipar a tensão. — Talvez eu não tivesse sido tão generosa se ela se chamasse... sei lá... Astrogilda?

— Ou Eva Gina — ele contribuiu, fazendo a Bia explodir numa gargalhada.

— Ninguém chama Eva Gina.

— Claro que chama. — Ele a olhou como se ele fosse louca. — Ela vai no meu restaurante direto. Eu só não entendo porque ela não pede pra companhia do cartão de crédito abreviar pra Eva G. Barata.

— O nome dela é Eva Gina Barata? — A voz da Bia saiu alta, atraindo alguns olhares e ela baixou o tom. — É invenção sua. Fala sério.

— Claro que é sério! Pergunta pra Mariana. Ela conhece a dona Eva.

A Bia deu um passo para o lado, com a intenção de voltar para sua cadeira, ainda rindo do que só podia ser brincadeira do Lourenço. E até parece que ela teria coragem de perguntar para a Mariana se ela conhecia alguém chamada Eva Gina e morrer de vergonha quando ela achasse que a Bia queria fazer hora com a cara dela e a trégua entre elas acabasse antes mesmo de começar.

— Peraí. — O Lourenço segurou o braço dela. — Tem outra coisa.

A Bia deu uma checada na Amanda, concentrada em enterrar suas Barbies como ela sempre fazia, deixando só a cabeça das pobres coitadas de fora, e na Alícia, ainda no mesmo lugar, antes de voltar sua atenção para o Lourenço. A diversão de alguns segundos antes tinha desaparecido do rosto dele, sério e compenetrado, de novo.

— Quando eu cheguei em Porto, eu fiz uma tatuagem... — Ele apalpou o bíceps do braço esquerdo com a mão direita. — É melhor eu te mostrar.

Finalmente, o mistério das camisas de manga comprida ia ser revelado!

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top