Capítulo 6

A Bia pousou o tablet na mesinha ao seu lado, desistindo do livro depois de reler o mesmo parágrafo várias vezes sem conseguir registrar nada, e deixou o olhar se perder nas águas azuladas e imóveis, da piscina, passando os dedos pela testa levemente suada.

Sem o sedativo, sua muleta para dormir por mais de um ano, ela ficava inquieta, conseguindo poucas horas de um sono agitado, acordando tão, ou mais, exausta que antes. As horas que deveriam trazer o alívio do esquecimento temporário, viravam um tormento, sua mente trabalhando sem parar, remoendo e analisando o passado e planejando e tentando prever o futuro.

Pura perda de tempo.

Impossível mudar o passado, como ela mesma tinha dito ao Lourenço, e o futuro dependia de tantas variáveis e ações imprevisíveis de tantas pessoas, que não importava o quanto se seguisse as regras, que se fizesse tudo exatamente como se devia fazer, que se tomasse todas as precauções necessárias, a criança ralava o joelho, a melhor amiga cometia uma traição imperdoável ou o avião caía.

Saber daquilo, porém, não adiantava nada. A Bia não conseguir evitar o turbilhão de pensamentos, seus fiéis companheiros noturnos e, seguindo o conselho da doutora Clarisse, ela tentava distrair a cabeça com um livro, ou um filme, até o sono chegar.

Mas naquela noite, sua concentração estava rebelde.

A Bia não conseguia parar de pensar em como as meninas tinham ficado à vontade com as visitas com tanta rapidez. Surpresa nenhuma, no caso da Amanda. Quase impossível acreditar, no caso da Alícia.

Depois do jantar, eles tinham jogado Uno, e a filha mais velha tinha se aberto como uma flor, brincando e aceitando as implicâncias do Lourenço como se eles fossem velhos conhecidos, o que era bom e ruim ao mesmo tempo.

Talvez, de uma maneira inconsciente, a Alícia estivesse reagindo à semelhança física entre eles? Sentindo algum tipo de confiança em estar, pela primeira vez, com pessoas que fossem mais parecidas com ela do que a família com que ela estava acostumada? E quanto tempo até algum desavisado de fora também percebesse aquilo e fizesse um comentário inconveniente?

E a Bia passava e repassava maneiras de se proteger e ensaiava cenários e reações para não ser pega de surpresa e ficar congelada como uma estátua como na hora em que a Alícia viu a Mariana pela primeira vez.

A luz da cozinha acendeu, seguida pelo som da porta da geladeira abrindo. A Bia se encolheu na espreguiçadeira e parou de respirar, relutante em dividir a sua solidão, mas quando o Lourenço apareceu na porta que dava para a pequena varanda nos fundos da casa, onde ela estava, emoldurado pela luz atrás dele, sua reação foi automática e instintiva.

— Ei — a Bia chamou.

Os olhos dele a procuraram no escuro e ele deu um passo à frente, quando a achou. Ele segurava um copo de água e vestia um short de malha, larguinho, que ia até os joelhos e uma camiseta preta justa, de mangas curtas, os braços cobertos de tatuagens — até que enfim! — à mostra. Infelizmente, ele continuou andando e foi engolfado pela escuridão, não permitindo que a Bia distinguisse os traços dos desenhos.

— Ei — ele respondeu. — Sem sono?

— Eu ando tendo um pouco de dificuldades pra dormir, e se eu fico na cama, eu fico me revirando e atrapalho as meninas.

— Quer companhia? — Ele hesitou, apontando com o polegar por cima do ombro. — Ou eu posso ir embora, se você preferir ficar sozinha?

— Senta aqui. — Ela apontou a espreguiçadeira ao seu lado. — Você também tá sem sono?

— Eu trabalho à noite, lembra? Quando eu tô de férias, eu demoro uns dias pra entrar num esquema mais... normal.

O silêncio entre eles se estendeu por alguns minutos.

— Eu...

— Não...

Os dois falaram ao mesmo tempo, e se interromperam, rindo.

— Pode falar. — O Lourenço bebeu o resto da água e colocou o copo no chão.

— Era bobagem. Fala você.

— Eu ia te pedir desculpa pela bagunça com o suco na hora do jantar. Eu acho que eu peguei meio pesado.

— Tudo bem. Fui eu que peguei pesado com a Amanda. Às vezes, eu preciso de alguém pra me ajudar a colocar o que é importante em perspectiva. O problema não foi o suco, foi...

— O que a sua prima falou — ele terminou por ela.

— A Vivi fica falando essas coisas perto das meninas porque sabe que, uma hora ou outra, o recado vai chegar até mim. — A Bia mordeu o lábio inferior e respirou fundo. — Eu tento não me irritar, porque é isso o que ela quer, mas eu não consigo. A Vivi me conhece, ela sabe direitinho como me atingir.

— Eu sei que é fácil falar agora que a sua prima mostrou quem ela é, de verdade, mas eu sempre tive a impressão... — O Lourenço fez uma pausa. — Eu não conversei com ela mais que cinco minutos, naquele dia na festa dos seus pais, mas pelo que você me falava, eu sempre tive a impressão que ela tinha inveja de você.

O olhar da Bia se perdeu nas águas da piscina outra vez. Depois que a Vivi tinha mostrado quem ela realmente era, como o Lourenço disse, a Bia tinha voltado no tempo várias vezes, tentando analisar o relacionamento delas sob aquela nova luz e um acontecimento em especial, não parava de martelar na sua cabeça.

— Lourenço, o meu pai falou que os policiais, naquele dia, na sua casa, que eles tinham um mandado de busca. Que foi uma denúncia.

— Uma denúncia anônima — ele confirmou.

— Às vezes, eu fico pensando se não foi a Vivi.

— Mas você não tinha contado pra ninguém que a gente tinha voltado a namorar. Ela não sabia de nada, sabia?

— Eu contei pra ela uma noite antes. A gente saiu e discutiu. Eu te falei, lembra?

Enquanto eles estavam embolados no lençol, ela ainda sob o efeito do último orgasmo que ele tinha lhe dado. Dois minutos antes de ela ter a oportunidade de confessar que desconfiava estar grávida. E dois minutos antes dos policiais invadirem o apartamento e o Lourenço, de quem a Vivi nunca tinha gostado, ser arrancado da sua vida.

— Lembro, mas, Bia? Uma operação daquelas não é organizada do dia pra noite.

— Eu sei. Eu sei — ela concordou. — Mas eu acho que ela já desconfiava que a gente estava junto. Ela não ficou surpresa quando eu contei e... Claro que eu não me lembro as palavras exatas da briga, mas ela fez um comentário tipo, quando tudo estourasse, que a culpa ia ser só minha. Como ela podia saber que alguma coisa ia estourar?

— Não sei. — O Lourenço balançou a cabeça algumas vezes, coçando a cicatriz perto do olho. — Mas, não faz diferença, faz? Porque mesmo que tenha sido a sua a prima, ela podia ter feito quinhentas denúncias, se eu não tivesse com aquele bagulho em casa, ninguém ia ser preso.

Como discordar?

— Você tá certo. Sobre isso e sobre ela ter inveja de mim. Eu só acho que antes... antes ela tentava me proteger um pouco dela mesma. Nem sempre ela conseguia, mas ela tentava. Mas, depois... — A Bia se desencostou e sentou de frente para o Lourenço, com as pernas cruzadas em cima da espreguiçadeira. — O que eu vou te contar é segredo. Eu sei que é ridículo eu ainda querer proteger os segredos da Vivi, mas...

— Não é ridículo. — O Lourenço se inclinou para a frente e segurou sua mão, que ela nem tinha percebido, retorcia a bainha da camisa do pijama.

Olhando para baixo, ela percebeu também que estava usando o último presente de dia das mães das meninas, um pijama estampado com a rena de Frozen com cara de bobão e meio metro de língua de fora. Pelo menos o short não era curto e a blusa não era decotada e fazer o quê? O Sven era o seu personagem favorito do filme que as meninas não se cansavam de assistir.

Ele deu um leve aperto na mão dela antes de a soltar e voltar a se encostar.

— É quem você é. Sempre generosa e fiel.

O pesar que sua mão sentiu por perder o toque da dele foi compensado pelo calor que o elogio espalhou pelo seu peito, mas a Bia se obrigou a não desviar sua atenção da conversa, seguindo caminhos que não iam levar a lugar nenhum.

— Pouco antes do acidente dos meus pais, a Vivi teve um relacionamento com um cara de São Paulo — a Bia contou. — Ela ficou grávida e quando falou pro namorado, ele confessou que já era casado, pai de dois filhos e nenhuma intenção de se separar. Ele forçou a barra e ela acabou fazendo um aborto, que foi supercomplicado e enfim... ela não pode mais ter filhos. Depois disso, ela mudou. Bom... — Uma risada irônica escapuliu pelos seus lábios. — Depois disso, ela me tomou o marido e agora tá querendo tomar as minhas filhas, então a sua teoria da inveja, faz todo sentido.

— Ela e o seu marido estão juntos?

— Ex-marido — a Bia corrigiu. — Eles estão tentando manter o relacionamento em segredo. A Vivi não quer ficar conhecida como a vilã que separou a 'a família mais perfeita do Brasil', mas eles vão se casar depois que o divórcio sair. E longe de mim, defender o Diego, mas o trabalho dele é super desgastante, os horários são doidos e ele viaja muito. Ele podia até fazer exigências, me pedir pra fazer algum tratamento depois do meu acidente com os remédios, mas eu tenho certeza que é a Vivi que tá por trás desse pedido de guarda unilateral. Eu tô só esperando pra ver o que ela vai inventar pra tentar me tirar da minha casa também.

— Ela tem chance? — O tom de voz do Lourenço misturou indignação e raiva.

— Nenhuma. — A Bia voltou a se recostar na espreguiçadeira. — O meu pai me deu essa casa de presente e colocou no meu nome antes do casamento. Ela não vai entrar na partilha, mas eu tenho certeza que a Vivi vai pedir pro Diego tentar comprar ela de mim. De preferência, com a mobília. Minha família e minha casa. Eu saio de mansinho e ela assume o meu lugar.

— Eu sei que você tem o seu irmão. — O Lourenço colocou os pés no chão e apoiou os cotovelos no joelho, se inclinando na direção da Bia. — Mas você sabe que você pode contar comigo, né? Eu tô do seu lado, pro que der e vier.

— Eu sei. — A Bia sorriu, esperando que ele pudesse ver na escuridão. — Afinal, você pulou dentro de um avião só porque eu pedi pra conversar com você.

— Então. Tem uma coisa que eu queria falar com você... É uma ideia que eu tive e que eu ainda preciso amadurecer, mas eu queria a sua opinião.

— Pode falar. — A Bia também pôs os pés no chão e se sentou de frente para o Lourenço, seus joelhos quase tocando os dele, pressentindo, pelo tom grave, que o assunto era sério.

— Eu tô pensando em voltar pro Rio.

O coração da Bia foi parar na boca, pulando de surpresa com a última coisa que ela tinha esperado ouvir.

— Mas, Lourenço, você tem uma vida inteira em Porto Alegre, a sua família, os seus negócios, e você deve ter alguém? Uma namorada? Alguém?

—Não, eu não tenho nenhuma namorada. — Ele deu uma risada e a Bia ficou feliz pelo breu que escondeu o seu rosto queimando de vergonha pelo comentário impensado e totalmente inapropriado e que não era nem um pouco da sua conta, mesmo que uma estranha sensação de alívio tivesse ameaçado tomar conta dela. — Os bares e o restaurante, eu posso vender. Eu não tenho medo de recomeçar tudo de novo aqui.

— E a suas irmãs? O seu tio?

— Essa parte ia ser a mais difícil, mas eles não são a minha única família, são? — O Lourenço massageou a nuca e suspirou, antes de continuar. — Hoje, brincando com vocês, depois do jantar, eu percebi que eu não quero fazer isso com a Alícia só de vez em quando. Eu queria participar da vida dela, ir nas festinhas da escola, sei lá... estar mais perto. Depois que a gente contar pra ela, claro. O que só vai acontecer quando você achar que é a hora.

— Lourenço, se é essa a sua vontade, você tem o meu apoio total. Se eu ficar com as meninas, você vai poder ver a Alícia sempre que você quiser, e se eu... — A Bia ignorou o embrulho no estômago e apertou uma mão contra a outra. — Se o Diego ficar com a guarda, eu acho que você deve fazer como o doutor Lemmer falou e procurar seus direitos, e eu vou ficar do seu lado também. Pro que der e vier.

— Obrigado. — Ele enfiou a mão entre as dela. — Eu já fiquei longe mais do que eu devia. Eu não quero mais perder tempo.

Mesmo no escuro, foi impossível não ver a intensidade do olhar do Lourenço prendendo o seu. Uma chuva de arrepios, que há muito tempo a Bia não sentia, cobriu seu corpo.

Tudo culpa dos remédios!

Ou da falta deles, que deixava suas emoções à flor da pele e provocava reações fora de contexto e absurdas.

A decisão do Lourenço de virar a vida dele do avesso só tinha a ver com a Alícia. Simples assim. Qualquer outra possibilidade traria complicações que a Bia não queria, nem tinha condições, de enfrentar no momento.

— Você tem razão. — Ela deu dois tapinhas na mão do Lourenço. — Você e a Alícia têm muito pra colocar em dia.

Viu? Pôr o que é importante em perspectiva por conta própria nem era tão difícil...

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