Capítulo 4
— Me diz de novo, por que é que eu concordei com isso?
A esperança no rosto do Fred fez a Bia respirar fundo. Apesar da vontade de ser malcriada e dizer que não importava quantas vezes ele fizesse a mesma pergunta, a resposta não ia mudar, ela se preparou para repetir tudo para o irmão pela milésima vez.
Depois da conversa com o Lourenço, como um detetive analisando as pistas de um crime, ela repassou cada palavra trocada, revirou gestos, expressões e reações. Não era porque ela estava disposta a confiar nele, que o faria de olhos fechados.
Os dias de sofrimento e desespero que se seguiram à separação deles eram como uma mancha escura nas suas lembranças. Pela primeira vez na vida, ela entendeu que ter o 'coração partido' não era uma expressão figurativa. Doía de verdade. Doía no peito, doía no corpo inteiro. Doía na alma. E ela não tinha a menor intenção de reviver aquele inferno.
Como é que se dizia? Me engana uma vez e o idiota é você, me engana a segunda vez e o idiota sou eu. O que ela seria se permitisse que o Lourenço a enganasse pela terceira vez?
Sua investigação minuciosa, porém, não revelou nada além de sinceridade e uma aparente vontade genuína do Lourenço em ajudar. E mesmo que ela estivesse enganada e tudo não passasse de manipulação, o que ele poderia querer dela?
Dinheiro? Se ele nunca tinha tentado tirar vantagem da sua situação financeira superior quando os dois eram mais novos, não havia motivo para ele fazer aquilo quando ele era um empresário bem-sucedido, em pé de igualdade com ela.
Razões ocultas para lhe tomar a Alícia? Ele não precisava enganar a Bia para aquilo. Um advogado, uma ação judicial obrigando a filha a fazer um exame de DNA e ele teria a prova necessária para abrir um processo similar ao do Diego.
Vingança? Chantagem? Aplacar a consciência?
O último até fazia sentido, mas, tirando o fato de ser uma motivação egoísta, o Lourenço querer consertar os erros do passado, não era um aspecto negativo, pelo contrário.
Todo aquele debate interno teve uma boa consequência, pelo menos. Ela conseguiu encontrar um meio-termo entre o sufoco de não enxergar a luz no fim do túnel e o otimismo exagerado que tinha tomado conta dela depois da conversa. Agir com cautela nunca fez mal a ninguém.
Foi naquele estado de espírito, mais tranquila por ter conseguido um aliado importante, porém, consciente de que ele não era, de maneira nenhuma, o cavaleiro montado num cavalo branco que fazia todas as dificuldades desaparecerem por milagre, que ela e o Lourenço foram se encontrar com o advogado dela.
E se suas próprias reflexões não tivessem colocado seus pés no chão, a visita ao escritório do doutor Lemmer teria cumprido a tarefa. Depois de providenciar a papelada para o exame de DNA, o advogado tinha repetido para o Lourenço tudo o que ele já tinha explicado antes para a Bia: que o resultado do exame ficaria pronto a tempo da audiência, mas mudar a certidão de nascimento da Alícia seria mais demorado e irrelevante para o processo de guarda das meninas; que um juiz de família sempre tinha como prioridade o bem-estar da criança e que a vitória da Bia dependia essencialmente dela mesma conseguir se apresentar com calma e equilíbrio durante a audiência; e que, na pior das hipóteses, se a Bia perdesse e o Lourenço quisesse lutar pela guarda da filha, a chance de um juiz desconsiderar um laço de convivência de nove anos com o Diego em favor de um laço de sangue e entregar a menina para um desconhecido, que morava em outro estado e afastá-la de tudo o que lhe era familiar, inclusive da irmã, era zero.
Ouvir tudo aquilo novamente foi um exercício de moderação para as esperanças da Bia, mas ela deveria ter previsto que o Lourenço, prático do jeito que era, não ia se conformar em doar sangue e esperar. Depois de insistir com o advogado que não era possível que não houvesse mais nada que ele pudesse fazer, eles acabaram ouvindo do doutor Lemmer que pai e filha se conhecerem não seria má ideia. Qualquer convivência era melhor que ser um desconhecido, ainda mais se o Lourenço quisesse buscar os direitos de visitação na justiça se o Diego ficasse com a guarda.
O sangue da Bia tinha gelado nas veias. A Alícia tinha sentido profundamente a morte dos avós e estava passando pelo divórcio dos pais com o agravante de precisar encarar a troca de papel da Vivi de madrinha para madrasta. Aquele não era o momento de colocar a menina frente a mais um rearranjamento de vida.
Depois de várias argumentações de um lado e de outro, eles acabaram decidindo que o Lourenço viria passar uns dias no Rio e que ele iria conhecer a Alícia, não como pai, mas como um antigo amigo da Bia. Entre a necessidade de o Lourenço de estar em Porto Alegre na virada do ano por causa do trabalho — com três festas de réveillon para organizar e supervisionar — e a viagem de férias que a Bia tinha marcado para ela, o Fred e as meninas em janeiro, uma semana antes do Natal foi o que eles tinham conseguido em matéria de tempo. A expressão de pura felicidade no olhar do Lourenço ao receber tão pouco, comparado a tudo o que ele tinha direito, impulsionou o convite da Bia para ele se hospedar na sua casa e ter a chance assim, de conviver bem de perto com a filha.
E era por isso que ela e o Fred estavam sentados no sofá, as meninas na sala ao lado, distraídas com a TV, enquanto esperavam pela chegada das visitas. O Lourenço tinha mandado uma mensagem do aeroporto dizendo que estava só esperando pelo carro alugado. Isso tinha sido há mais de uma hora, e eles deviam estar chegando a qualquer momento.
— Até aí, eu entendo. — O Fred soltou um suspiro resignado, coçando a barba. — Concordar é outra coisa, mas eu aceitei que não tem como você mudar de ideia. Agora, me explica outra vez, por que a irmã dele tá vindo com ele? Pelo que eu entendi vocês não se dão muito bem?
Mariana.
Um leve, e desagradável, tremor passou pelo corpo da Bia. O Lourenço tinha precisado voltar a Porto Alegre porque não tinha vindo preparado para ficar por mais que dois ou três dias e, quando ligou confirmando a data de retorno ao Rio, tinha sugerido que a irmã viesse junto. Seu argumento foi que a Bia estava se divorciando e receber a visita de um ex-namorado, sozinho, podia pegar mal.
Sem conseguir pensar numa desculpa boa o bastante para rebater o Lourenço, ela graciosamente concordou, embora desconfiasse que o motivo da vinda da Mariana fosse outro.
— Sabe aquela história da galinha que gosta de ficar com os pintinhos protegidos debaixo da asa? — A Bia bateu a palma da mão na testa. — Claro que você sabe. É a sua especialidade.
Sem alterar a expressão de paisagem, o Fred levantou um dedo.
— Primeiro, eu não sou, nem nunca fui, galinha. — Ele virou o dedo para a Bia e a cutucou no ombro, abaixando a voz. — Segundo, a gente precisa mesmo lembrar aqui quem fez quem ser preso e deixou a namorada grávida, sozinha?
A Bia não podia tirar a razão do Fred naquele ponto, mas ela também, a contragosto, entendia a Mariana.
— E quem apareceu de repente, depois de dez anos e tem direito a um monte de dinheiro de pensão atrasada?
A Bia tinha se recusado com veemência a receber um tostão do ex-namorado quando o doutor Lemmer os lembrou das obrigações que vinham com assumir a paternidade. O Lourenço também tinha batido o pé e insistido que era o mínimo que ele podia fazer e que a Bia não podia recusar porque era um direito da Alícia. Por fim, com a pacificação de ânimos do advogado, ficou resolvido que o dinheiro seria colocado em um fundo de investimentos para a Alícia sacar depois que atingisse a maioridade.
Era compreensível que o alarme do instinto de proteção da Mariana tivesse sido ativado. Uma ex-namorada aparecendo depois de tanto tempo, pedindo um exame de paternidade, mas negando que a filha soubesse da verdade sobre o pai dela, e ainda recebia uma quantia considerável de dinheiro, levantava as suspeitas de qualquer um. Sem contar que a antipatia da Mariana pela Bia era antiga. Mas elas eram adultas e saberiam se comportar durante a semana que iriam passar juntas sem sujeitar os outros ao mesmo clima tenso e desagradável do almoço de anos atrás. Pelo menos, a Bia estava de dedos cruzados. O que ela precisava era de se livrar dos seus estresses e não acumular outros.
— Eu não vejo como... — a réplica do Fred foi interrompida pelo interfone.
Ele soltou outro suspiro, que fez a Bia morder a língua para não chamá-lo de drama queen, e foi na cozinha atender. Ela abriu a porta e foi esperar pelo Lourenço exatamente no mesmo lugar onde tinha esperado por ele na única vez que ele tinha vindo na sua casa, no dia em que conheceu a Alícia. A revoada de borboletas no seu estômago não lhe espantava mais. Acontecia toda vez que ela se lembrava que ele estava vindo se hospedar com ela.
Era normal que ela se sentisse ansiosa com a proximidade entre pai e filha, pela importância do segredo que eles estavam escondendo da Alícia, pelo medo de alguém acabar falando mais do que devia. A Alícia sabia que o Diego era seu pai de coração, como eles costumavam dizer, e ela aceitava aquele fato sem muita curiosidade pelo pai de verdade, mas ela era inteligente, um comentário impensado de qualquer um deles e a filha poderia começar a fazer perguntas que a Bia ainda não queria responder.
O carro subiu a rampa da garagem ao mesmo tempo em que o Fred se juntou a ela.
O Lourenço saiu primeiro e a Bia perdeu a respiração por alguns segundos. Ele estava de calça preta e uma camisa cinza clara aparecendo pelo paletó cinza escuro entreaberto.
Meu Deus! Aquele homem tinha nascido para usar paletó, e o paletó tinha sido criado para ser usado por homens como ele, preenchendo a peça de roupa como se fosse uma segunda pele.
Ele afastou um pouco as golas da camisa, talvez sentindo o choque do calor depois do ar condicionado do carro, expondo parte da pele morena, e a Bia entrelaçou os dedos das duas mãos para resistir à tentação de se abanar porque, realmente, o calor tinha aumentado muito de uma hora para outra.
O sorriso que ele abriu ao vê-la se tornou incerto quando o olhar dele pulou para o Fred parado ao seu lado, com os braços cruzados.
— Se comporta? Por favor, Fred? — a Bia sussurrou.
— Claro. — Ele deu um aceno firme de cabeça. — Desde que ele se comporte também.
A porta do carona abriu, e foi a vez da Bia ficar tensa. A Mariana saiu com suas pernas compridas cobertas pelo vestido longo, se movimentando suave e elegantemente e deu o braço para o irmão, com uma expressão impassível no rosto. E das duas uma, ou ela tinha descoberto o segredo da juventude eterna, ou era vampira, porque não tinha envelhecido um dia desde que se conheceram. Dez anos antes! Nenhuma ruga. Nenhum fio branco entre os longos cabelos negros.
Mesmo na posição superior de anfitriã, a Bia se sentiu pequena nas suas roupas largas e intimidada pela presença da irmã mais velha do Lourenço, que parecia uma rainha e a fazia se sentir uma mendiga. O carinho sutil do Fred nas suas costas, a lembrou que ela não estava sozinha, e lhe deu forças para continuar de cabeça erguida, aparentando uma calma que ela não sentia.
— Oi — o Lourenço cumprimentou a Bia com dois beijinhos e um meio abraço.
— Fizeram boa viagem?
— Tranquila, obrigado — ele respondeu e fez um gesto com a mão, indicando a irmã. — Você lembra da Mariana?
Como esquecer?
Mas a educação da Bia não a deixou dar a resposta atrevida.
— Claro. — Ela se obrigou a sorrir e estendeu a mão. — Como vai?
— Bem, obrigada, Biatriz. — Ela retribuiu o aperto com firmeza, a olhando nos olhos. — E eu agradeço também por ter aceitado me receber com o Lourenço. Foi muita gentileza sua.
Ela tinha acertado seu nome, e se não tinha sido exatamente um reencontro caloroso, também não tinha sido congelante como da última vez, e a Bia, que estava aprendendo a se contentar com pequenas vitórias, se deu por satisfeita e parou de tremer. Um pouco.
— E você se lembra do Fred — ela disse, olhando para o Lourenço.
O último encontro entre os dois homens foi no dia das bodas dos pais, quando ela descobriu que o Lourenço estava envolvido com drogas, e dizer que tinha sido desagradável, era pouco.
— Fred. — O Lourenço assentiu, estendendo a mão.
— Lourenço. — O Fred estendeu a mão de volta.
O aperto se estendeu por vários segundos além do apropriado, tão forte que esbranquiçou os nós e as pontas dos dedos dos dois.
Se segurando para não revirar os olhos, a Bia acabou com a competição de homem das cavernas moderno entre eles dando uma cotovelada nem um pouco discreta no irmão.
— E Fred, essa é a Mariana, irmã do Lourenço — a Bia apresentou os dois únicos desconhecidos do grupo.
Felizmente, o irmão a atendeu e deixou o Lourenço, pegando a mão da Mariana com delicadeza.
— Muito prazer, Mariana.
— Igualmente, Frederico.
— Não. — O Fred balançou a cabeça com a mesma expressão de paciência que usava no rosto sempre que fazia a mesma correção. — O meu nome não é Frederico. É só Fred.
O Lourenço e a Mariana inclinaram a cabeça para o mesmo lado, ao mesmo tempo.
— A minha mãe tinha ideias muito próprias sobre nomes — ele continuou, dando de ombros. — Pra que Frederico se todo mundo ia me chamar de Fred? Eu ainda não entendi como ela não venceu a Bia pelo cansaço e a Alícia não virou Alice.
A Bia e o Lourenço trocaram um olhar rápido. Ela nunca contou para ninguém a origem do nome da filha mais velha, o que, com certeza, ia mudar nos próximos dias, mas a tensão já estava alta demais e ali não era o lugar, nem aquele o melhor momento, para se explicar para o Fred. Hora de mudar de assunto.
— Por que você não vai ajudar o Lourenço com as malas? — a Bia se dirigiu ao irmão e fez um sinal para a Mariana a seguir. — Vamos entrar?
O ar condicionado da sala foi um alívio e a Bia apontou para o sofá.
— Fica à vontade, Mariana. Eu vou chamar as meninas.
O brilho de curiosidade que acendeu o olhar da outra mulher foi o mesmo que fez a Bia retorcer as mãos a caminho da sala de televisão.
Tudo podia dar muito certo, ou ser um desastre completo. Ela só esperava não ter tomado a decisão errada em trazer os dois irmãos para dentro da sua casa.
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