Capítulo 39
A Bia ainda estava de pernas bambas ao descer do táxi na frente de casa.
— Você quer deixar pra fazer isso outro dia? — o Lourenço ofereceu.
Eles não ficaram presos no elevador por muito tempo. Uma eternidade que durou menos de dez minutos, por causa de uma falha de energia, que estava atingindo vários pontos da cidade, aleatoriamente. Ela tinha passado a viagem de táxi com a cabeça caída no ombro do Lourenço, sem forças para nada, mas chega de fraqueza. Era hora de pensar na filha.
E sendo honesta consigo mesma, ficar presa no elevador não tinha sido tão ruim. Claro, foi horrível e assustador, mas afastou um pouco do exagero que tinha ficado da sua memória de infância. Do pânico no escuro, do eco dos seus próprios gritos, da sensação que estava sendo castigada e não ia sair de lá nunca mais. Ela preferia não passar por aquilo uma terceira vez, mas, se acontecesse, ela sabia que não seria nada que não pudesse sobreviver.
— Não — a Bia respondeu com toda a firmeza que conseguiu.
Na verdade, naquele primeiro momento, ela estava com mais receio de encarar o Fred. Com a confusão toda, ela só lembrou que não tinha ligado para ele, quando eles já estavam entrando no condomínio, e ela preferiu passar aqueles últimos minutos preciosos resumindo suas conversas com a Alícia para o Lourenço, ao invés de religar o telefone e descobrir quantas ligações perdidas encontraria do irmão, que devia estar cuspindo fogo.
Exatamente como ela esperava, um segundo depois de a Bia abrir a porta, ele saiu sala de televisão pisando duro.
— Eu não acredito que você não me ligou!
Ele congelou ao vê-la, com o Lourenço e a Mariana entrando atrás dela.
— Não, Bia, não! Eu não acredito que você perdeu! — O Fred interpretou errado sua palidez e sua expressão sombria.
— Não, eu não perdi — ela tranquilizou o irmão largando a bolsa em cima da poltrona. — Eu consegui a guarda compartilhada.
— E essas caras de enterro?
— A gente ficou preso no elevador — o Lourenço esclareceu por ela.
— Sério? — O Fred a puxou para os braços dele. — Que merda! Como é que você tá?
— Eu tô bem. Já acabou.
Um par de pezinhos passou correndo por eles.
— Tio Lôro! Tia Mari! — a Amanda gritou.
— Oi, minha linda.
A Bia se soltou do Fred e procurou pela outra filha. A Alícia estava parada na porta da sala de televisão, observando a cena com medidas iguais de curiosidade e incerteza no olhar.
— O tio Lourenço e a tia Mariana vieram fazer uma visita de surpresa pra gente — a Bia explicou para ela.
A Alícia a olhou por vários segundos, parecendo estar pesando a sinceridade da mãe numa balança imaginária e se decidindo se aquela era uma surpresa ou uma armadilha. Ela demonstrou a confiança dela na Bia, assentindo e indo até ela. Que a filha não estivesse correndo escada acima era ótimo sinal.
— Você ficou presa no elevador? — ela perguntou, ignorando as visitas.
— Eu fiquei. — A Bia se agachou na frente dela.
— Você ficou com medo?
— Um pouquinho. A tia Mari ficou segurando a minha mão.
A Alícia concordou com a cabeça novamente, mas continuou sem olhar para os dois irmãos.
— Você não vai falar oi com eles? — a Bia tentou incentivá-la e se levantou, dando a mão para ela e virando as duas de frente para o Lourenço, que observava tudo atentamente, com a Amanda no colo.
Apesar do apoio da mão da Bia na dela, a Alícia continuou calada e parada no mesmo lugar. Mudando de tática, a Bia deu uma cotovelada no Fred, outro que parecia uma estátua do seu lado.
— E você também não vai cumprimentar a Mariana e o Lourenço?
— Claro, desculpa. — Ele deu um passo à frente com a mão esticada para o Lourenço. — Foi tanta coisa ao mesmo tempo. Eu não esperava ver vocês aqui, tudo bem?
— Tranquilo, e você? — O Lourenço trocou a Amanda de braço e devolveu o aperto do Fred. — A gente tinha que vir.
— Inesperado, mas muito legal, vocês virem de Porto Alegre pra isso. — O Fred largou o Lourenço e deu um passo de lado, ficando na frente da Mariana. — Foi por causa da Bia, então, que vocês vieram?
— A gente queria dar nosso apoio pra ela — a Mariana respondeu. — Mas eu também tinha uns assuntos inacabados pra cuidar.
— Assuntos inacabados? — O Fred virou a cabeça de lado, a testa franzida.
— Não é o que você tá pensando. — A Mariana levantou a mão direita com a palma para fora. — Mas, eu pensei que, talvez...
Ela não teve tempo de terminar a frase, sendo interrompida pela boca do Fred se grudando na dela.
A Bia esticou o pescoço para a frente e piscou várias vezes para a cena do seu irmão abraçando e beijando a Mariana, ali, no meio da sua sala. Definitivamente, aquele dia ia entrar na galeria de dias mais loucos e surpreendentes e estranhos da sua vida.
O Fred e a Mariana?
Ela olhou para o Lourenço, também assistindo à cena de queixo caído, enquanto a Amanda escondia o sorriso travesso por trás das duas mãozinhas.
— Você sabia disso? — a Bia perguntou.
A resposta do Lourenço foi uma lenta negativa com a cabeça, sem desviar o olhar do beijo.
— Mamãe? — A Alícia puxou a manga da sua blusa até ela lhe dar atenção. — O tio Fred tá namorando a tia Mari?
A Bia deu de ombros, sem saber o que responder, e voltou a olhar o casal abraçado na sua frente, e nos dez segundos em que tinha ficado distraída, o beijo tinha esquentado. As mãos do Fred começaram a descer pelas costas da Mariana quase chegando na...
— Opa! — O Lourenço agarrou o ombro do Fred. — Tem criança aqui!
O Fred largou a Mariana e deu um passo para trás.
— Desculpa! — Ele massageou o ombro que o Lourenço tinha apertado.
O rosto da Mariana estava vermelho pimentão e tinha alguma coisa muito interessante no tapete na frente dela, porque era só para onde ela conseguia olhar.
— Fred? — a Bia chamou.
— Eu sei... — Ele se virou para ela, ofegante e implorando com o olhar que ela não perguntasse nada. — Eu sei que eu fiquei de ir almoçar com vocês no shopping, mas...
Ele deu uma olhada de lado para a Mariana.
— Você tem um assunto inacabado pra resolver — a Bia terminou por ele. — Tudo bem, pode ir.
O alívio no rosto do irmão foi imenso.
— Eu prometo, que amanhã a gente faz alguma coisa. — Ele agarrou a mão da Mariana e a levou com ele em direção à porta da rua. — Eu prometo!
A saída do casal foi seguida pela batida da porta e pelo silêncio que se estendeu pela sala, até o Lourenço quebrá-lo.
— A Mariana sempre se envolve com os tipos mais inapropriados...
— Ei! — a Bia o interrompeu. — É do meu irmão que você tá falando. A Mariana tem é muita sorte de estar com ele!
— Você não me deixou terminar. — O Lourenço a olhou com um sorriso grande. — Eu ia dizer que até que enfim ela tomou juízo.
— Ah, bom! — A Bia sorriu de volta pra ele.
— Tio Lôro? — A Amanda segurou o rosto dele com as duas mãos. — Você vai no shopping com a gente?
A pergunta inocente trouxe de volta para o palco principal o motivo deles estarem ali. A Alícia a abraçou pela cintura, escondendo o rostinho na sua barriga.
— Não, minha linda — o Lourenço respondeu, sem conseguir esconder a decepção. — Um outro dia eu vou com vocês.
Só que a Bia não queria desistir. O que ela teria feito sem pensar duas vezes se achasse que a Alícia estivesse amedrontada, o que não parecia ser o caso. Ela estava vulnerável, um pouco confusa e insegura com a situação nova, mas de maneira nenhuma rejeitando o Lourenço, ou não estaria ainda ali, com eles.
— Escuta, meu amor. — A Bia correu os dedos pelos longos fios dos cabelos negros da filha. — O tio Lôro queria conversar com você. Você não precisa dizer nada pra ele, se você não quiser, mas você podia, pelo menos, escutar, o que você acha?
Ela levantou a cabeça, fincando o queixo na boca do seu estômago.
— Você vai ficar aqui comigo?
— Se você quiser, eu e a Amanda ficamos.
Ela assentiu, enchendo o peito da Bia de alívio e orgulho. Elas foram até o sofá e a Alícia subiu no seu colo assim que ela se sentou. O Lourenço ocupou o lugar ao lado delas, com a Amanda no colo dele.
A Bia olhou a filha mais velha sentada de lado nas suas pernas. Ela estava de frente para o Lourenço, as mãos entrelaçadas pousadas no colo, e o olhar baixo. Quase igual a ela mesma, há poucas horas, na sala de audiência, tentando ser corajosa e parecer calma enquanto um redemoinho de emoções a chacoalhava por dentro. Aquela menininha só tinha nove anos, mas já enfrentava problemas gigantes com a valentia de gente grande.
Se inclinando para a frente, a Bia deu um beijo na cabeça dela.
— Vai dar tudo certo — ela murmurou no ouvido da Alícia antes de olhar para o Lourenço com um sorriso de incentivo.
Ele também parecia estar calmo, mas a Bia o conhecia. Por dentro, ele devia estar tão trêmulo quanto elas duas. A única indiferente à importância do momento era a Amanda.
— Obrigado, Alícia, por você me escutar — o Lourenço começou com a voz grave e séria. — A sua mãe me disse que conversou com você, que ela te contou como a gente namorou e...
— Você namorou a minha mãe? — a Amanda o interrompeu.
— Filhinha? — A Bia segurou a mão da sua caçulinha. — A mamãe já ensinou que não pode interromper quando alguém tá falando. Depois que o tio Lôro acabar, você e a Alícia podem fazer todas as perguntas que vocês quiserem e a gente responde, combinado?
— Tá bom, mamãe.
— A sua mãe já foi minha namorada, sim. Há muito tempo. — O Lourenço tocou a ponta do indicador no nariz da Amanda antes de voltar a se focar na Alícia. — E ela te contou também que quando eu fui preso, eu não sabia que ela estava grávida. Eu te conheci, aqui mesmo nessa sala, com você sentada no colo da sua mãe, assim, do jeito que você tá agora, quando você tinha quatro aninhos. E eu fiquei tão feliz, Alícia, em conhecer aquela menininha linda, inteligente e esperta, mas foi um dia muito triste também, porque eu precisei ir embora. Eu sei que parece que eu fui embora porque eu não gostei de você, mas não é verdade. Você morava com a sua mãe e o seu pai, você ia ganhar uma irmãzinha, e eu não tinha casa aqui, eu não tinha trabalho, então, eu precisei ir. Mas não teve nem um dia em que eu não pensei em você, em como você estava, no que você estava fazendo...
Ele puxou o ar com força e coçou a cicatriz do lado do olho. A Bia só se lembrava de ter visto o Lourenço chorar uma vez, e não é que ele estivesse chorando, mas os olhos cheios de lágrimas não caídas, era pior, mostrava como ele estava tendo dificuldades em dominar as emoções para conseguir dizer tudo o que precisava.
Não era fácil uma pessoa reconhecer seus erros, e é verdade que ele tinha errado, e muito, mas a punição dele tinha sido severa e, o mais importante, ele tinha aprendido uma lição, mudado e estava tentando se redimir, que era só o que se podia exigir de um ser humano. Ela estava de dedos cruzados para que a filha tivesse a mesma compreensão.
A Bia soltou a mão da Amanda e agarrou a dele, dando o seu apoio, passando um pouco da sua força para ele. Se o momento não fosse tão sério, ela poderia ter rido. Ela passando força para o Lourenço? Mas era exatamente o que estava acontecendo.
Depois de respirar algumas vezes, ele continuou.
— Quando a sua mãe me convidou pra vir passar o Natal aqui, eu fiquei muito feliz. Era tudo o que eu queria, e se a gente não te contou quem eu era, não foi pra te enganar. A gente achou que ia ser melhor você ir sabendo da verdade aos poucos, pra ficar mais fácil pra você entender. E o que eu preciso te falar, na verdade, são duas coisas. A primeira é que eu quero te pedir desculpas.
Pela primeira vez desde que o Lourenço tinha começado a falar, a Alícia levantou a cabeça e o olhou, curiosa.
— Desculpas pela maneira que você ficou sabendo de tudo, pela boca de uma pessoa que você não conhecia, sem cuidado, na frente de todo mundo. Você não merecia. Não era assim que era pra ter acontecido. Você me desculpa?
A Alícia assentiu, devagar.
— E a segunda coisa que eu preciso te dizer é que eu sei que o seu pai é o Diego. E sempre vai ser. Em nenhum momento, eu pensei em tomar lugar dele. Não foi pra isso que eu vim aqui. Eu vou ficar feliz se a gente puder ser amigos. Passear, ir no cinema, ir na praia de novo. Igual à gente fez antes, é só o que eu queria. Você acha que a gente podia tentar?
— E como é que eu vou te chamar? — a Alícia respondeu com outra pergunta.
— O meu nome é Lourenço. — Ele levantou e abaixou um ombro. — Ou você pode continuar me chamando de tio Lôro, se você quiser.
— Tio Lôro — ela afirmou numa vozinha cheia de decisão. — Eu quero te chamar de tio Lôro.
Fazia sentido. A Alícia sabia que tudo tinha mudado, mas a ilusão de que tudo continuava igual era o que ela precisava para ir aceitando a verdade aos poucos, mas a Bia tinha certeza que era uma questão de tempo até ela voltar a se abrir para o Lourenço. E ele sabia daquilo também, motivo de ele não tentar tocá-la ou forçá-la a nada mais do que ela tinha condições naquele momento, mesmo que por dentro estivesse morrendo de vontade de abraçá-la.
— Ótimo! — a Bia se manifestou. — E já que todo mundo é amigo de novo, o tio Lôro podia ir almoçar com a gente no shopping, não podia?
— Sim! — a Amanda gritou.
— E você? — ela perguntou para a Alícia.
— Tudo bem.
A Bia soltou um suspiro de alívio. Os motivos de querer o Lourenço com elas no shopping eram totalmente interesseiros. Ele tinha acabado de chegar e ela não estava pronta para se separar dele, mesmo que por pouco tempo.
— E eu tive uma ideia — a Bia continuou falando. — Depois do almoço, depois que vocês comerem tudo, a gente vai na loja dos cachorrinhos e, ao invés de só olhar, a gente podia trazer um pra casa, o que vocês acham?
— Sério, mamãe? — A Alícia se virou para ela com os olhos arregalados.
— Eba! — A Amanda pulou do colo do Lourenço para o dela, e a Bia só teve tempo de abrir os braços e pegá-la.
A Bia abraçou as duas, feliz, a manhã terminando da melhor maneira possível. Ela ia continuar podendo cuidar das suas filhas, elas iam continuar juntas e mais, o Lourenço estava ali e ia fazer parte daquilo tudo.
— Então, vamos trocar de roupa. Eu não acredito que vocês estão de pijama até agora.
As meninas pularam do sofá e subiram as escadas correndo e trocando ideias de nomes que elas podiam dar para o cachorrinho. A Bia precisava ir também, a Alícia já sabia escolher uma roupa apropriada, mas da última vez que ela tinha deixado a Amanda se vestir sozinha, ela tinha aparecido com um vestido de princesa, uma coroa na cabeça e uma bota de cowboy amarela nos pés. Ela só queria mais um minutinho com o Lourenço.
— Acho que foi tudo bem, né? — ela perguntou.
O olhar do Lourenço era parecido com o de alguém que tinha acabado de descer da montanha-russa, meio tonto, meio aliviado e orgulhoso de ter enfrentado os altos e baixos sem desmaiar ou vomitar.
— Por sua causa, obrigado. — Ele a puxou para ele, e o dois se abraçaram apertado por longos segundos.
— A gente é um time, agora, não esquece — ela murmurou no ouvido dele.
Ele se afastou o suficiente para que os dois pudessem se olhar.
— Eu só acho que você devia ter esperado pra falar do cachorrinho. Elas não vão comer de tanta ansiedade.
A Bia estalou a língua algumas vezes.
— Você não prestou atenção, Lourenço. Eu disse, depois que elas comerem tudo. Eu posso colocar fígado com jiló no prato dessas meninas hoje que não sobra nem um pedacinho.
— Eu tenho tanta coisa pra aprender. Ainda bem que eu tenho você pra me ensinar.
— Isso você tem. Se prepara que você não vai mais conseguir se livrar da gente.
Pelo olhar que ele lhe deu, aquele era exatamente o plano dele.
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