Capítulo 35
Quantas vezes a vida precisaria ensinar a Bia que planos eram inúteis?
Se estar onde ela estava na noite de trinta e um de janeiro não fizesse aquilo entrar na sua cabeça dura, a vida podia desistir.
Por um micro segundo, ela tinha cogitado ir passar o réveillon com o Lourenço em Porto Alegre. (Explodiu pelos ares).
Depois, ela decidiu ficar em casa sozinha. Dormindo, de preferência. (Até parece que o Fred ia deixar).
Para não fazer o irmão passar a noite de ano novo mais depressiva de todos os tempos, os dois sozinhos em casa, ela aceitou ir a uma festa com ele, mas só depois que ele, casualmente, deixou escapar que a Naiara estaria lá também. (Não aconteceu. Pelo menos para ela, porque o Fred tinha saído de casa todo animadinho).
E ali estava ela, prestes a entrar no último lugar em que ela tinha pensado em passar a virada do ano.
O apartamento do Diego.
O começo da sua mudança radical de planos começou com uma mensagem do ex-marido, naquela manhã. A Bia leu e releu o convite e largou o celular. Era um engano, só podia. Um minuto depois, ela recebeu uma segunda mensagem, avisando que a Vivi tinha ido para Búzios com as amigas e as meninas estavam morrendo de saudades da mãe.
E era só o que ela precisava saber.
Quando deixou as filhas com o Diego no dia de Natal, a Bia tinha planejado ir buscá-las no dia seguinte, mas cada vez que ela conversava com a Alícia, ouvia o mesmo pedido:
— Ah, mamãe, posso ficar mais um dia?
E um dia virou outro, que virou quase uma semana e a Bia também estava morrendo de saudades, e não houve argumentação do Fred que conseguiu fazê-la mudar de ideia ou aceitar que ele fosse com ela.
Quem achava que dava para ir de carro em qualquer lugar perto de uma das praias do Rio de Janeiro na noite de ano novo, claramente não era carioca. Como o apartamento do Diego ficava a alguns quarteirões de distância do seu condomínio, a Bia combinou o vestido branco com uma sandália prateada que não machucava seu pé (muito), jogou alguns band-aids dentro da bolsa e foi andando.
A Barra da Tijuca não era um destino tradicional de turistas no réveillon, mas tinha seu próprio show de fogos de artifício e era mais conveniente para os moradores que se deslocar até a badalada e lotada Copacabana. A avenida da praia estava fechada para o trânsito e com movimento suficiente para que ela se sentisse segura fazendo um trajeto que ela não se atreveria a fazer a pé, sozinha, às dez horas de outra noite qualquer. E ela nem percebeu a caminhada, distraída com a animação em volta.
Depois de mostrar a identidade ao porteiro, que checou seu nome numa lista, a Bia foi acompanhada por ele até o elevador, onde ele digitou um código numa tela parecida com a de um telefone celular, antes de a deixar sozinha. O elevador subiu sem parar os três andares até a cobertura, e a porta abriu direto no vestíbulo da sala do Diego, onde ela foi recebida pela ex-sogra.
— Biatriz! — ela exclamou com os olhos arregalados. — Que surpresa inesperada!
E existe surpresa esperada? Foi o que a Bia quis dizer, mas não disse.
— Tudo bem, dona Odete? — Ela se inclinou e deu dois beijinhos nela. — O Diego me convidou, por causa das meninas.
— A Alícia, né, coitadinha? — O balançar de cabeça podia ser interpretado como pesar ou reprovação, mas a Bia não tinha dúvidas sobre qual dos dois a dona Odete estava sentindo. — Tão pequenininha e tão traumatizada!
A chegada do Diego não poderia ter sido mais oportuna, salvando a Bia de precisar responder.
— Bia! Eu achei que você não vinha mais!
E para a sua surpresa totalmente inesperada, ele também deu dois beijinhos nela, mas, claro. A sala estava cheia de convidados, era só uma atuação.
— Você não me disse que tinha convidado a Biatriz, meu filho. — Daquela vez, a dona Odete não se preocupou em disfarçar a recriminação.
— A Bia não precisa de convite. — Ele deu um sorriso para aliviar a má resposta. — Ela pode vir aqui quando ela quiser.
Ela podia?
Outra vez, ela se lembrou que aquele comportamento do Diego, bem diferente dos últimos tempos, tinha mais a ver com uma imagem a ser mantida que com uma mudança de atitude.
— Vem comigo, Bia. — Ele colocou a mão na parte de baixo das costas dela, querendo levá-la para o meio da sala. — Eu não convidei muita gente. Alguns amigos e o pessoal da minissérie que eu acabei de gravar. Alguns você já conhece, outros não.
— Só um minuto, Diego. — Ela plantou os pés no chão. — Eu posso ver as meninas primeiro? Eu tô morrendo de saudades.
— Claro. — Ele mudou de direção, a levando pelo corredor que saía da sala.
Gritos entusiasmados vinham da primeira porta aberta e eles entraram no ambiente dominado pela televisão, que mais parecia uma tela de cinema, com a imagem de um joguinho de videogame de futebol, e várias crianças torcendo e incentivando dois meninos com os controles na mão.
— Mamãe! — A Amanda foi a primeira a vê-la e sair correndo, seguida de perto pela irmã.
A Bia se ajoelhou no chão e recebeu o abraço das duas, aliviada, em especial, com a maneira que a Alícia não tinha hesitado em vir para ela. Pelo telefone, ela tinha notado o gelo da filha ir derretendo com cada ligação, mas ver de perto como ela não estava mais magoada, tinha sido o motivo principal da sua ida até ali.
Não que a Alícia tivesse superado tudo, de jeito nenhum, ainda havia um longo caminho a ser percorrido, cheio de conversas e lágrimas, até toda a situação com o Lourenço ficar resolvida, mas aquele era um bom início.
— A gente tá jogando videogame — a Amanda informou, como se não fosse óbvio.
— Eu não sabia que você gostava de futebol.
— Eu não gosto muito. — Ela franziu o narizinho. — Mas eu fiz dois gols!
— Parabéns! — a Bia elogiou e virou para a Alícia. — Você também tá jogando?
— Não, eu não gosto.
— Os meninos estão deixando, né? — o Diego perguntou. — É pra todo mundo jogar igual, senão eu acabo com a brincadeira.
— Eles estão deixando, eu é que não quero — ela explicou e, tanto o Diego quanto a Bia, não insistiram. O surpreendente seria se ela tivesse a coragem de se expor a não fazer uma coisa bem-feita na frente de outras crianças que ela não conhecia direito.
— E esses vestidos? — a Bia mudou de assunto, admirando a roupa das duas.
— Foi a vovó Odete que comprou. — A Amanda deu uma pirueta, a saia rodada se levantando, acompanhando o movimento.
— Ela disse que no ano novo, a gente tem que usar roupa nova — a Alícia completou.
— A vovó tem bom gosto. Vocês estão lindas.
Gritos de comemoração, abafaram as últimas palavras da Bia.
— Quem é agora? — uma voz de menino gritou.
— Vem. — A Alícia puxou a irmã. — É sua vez.
A Bia aceitou a ajuda do Diego para levantar e acompanhou com os olhos a Alícia abrindo caminho no meio das crianças maiores, com a Amanda atrás. Depois do jogo começar, ela ficou do lado da irmãzinha, dando instruções e animando e defendendo quando alguém implicava.
— Mata qualquer pai de orgulho, né? — o Diego falou perto do ouvido da Bia, que só pôde apertar os lábios num sorriso e assentir, ou ia chorar ali mesmo.
Ela andava mais emotiva que o normal, mas não era para menos. Depois dos acontecimentos dos últimos dias, qualquer um estaria da mesma maneira. Ou era TPM. Vai saber.
— Vem, eu vou te mostrar o resto do apartamento — o Diego convidou.
Se fosse pela sua vontade, ela teria arrumado um cantinho e ficado ali, com as crianças. Não que os outros convidados não fossem pessoas interessantes, a Bia só não tinha muito em comum com eles. Aquele era o mundo do Diego, um lugar onde ela nunca tinha se encaixado, mas conversar e tentar ser simpática era o preço que ela teria que pagar por ter ido à casa do ex-marido.
Ele continuou levando a Bia pelo corredor, mostrando outro cômodo grande cheio de livros nas estantes — que ela sabia serem enfeite já que o Diego era daqueles que preferia ver o filme a ler o livro — e uma escrivaninha com um computador que, como a televisão, parecia ter tomado anabolizante. Depois, ela conheceu o quarto da Alícia, o da Amanda e, sem saber como, foi parar na suíte principal. Ela tentou dar um passo para trás ao perceber onde estava, mas o Diego a empurrou com suavidade para dentro.
— Eu queria conversar com você.
A Bia já esperava por aquilo. Eles não tinham tido a oportunidade de conversar depois do acontecido no dia de Natal, mas precisava ser no quarto dele e da Vivi? Alguns vestidos largados em cima de uma poltrona e os potes de creme junto das escovas de cabelo e pincéis de maquiagem que a Bia podia ver pela porta entreaberta do banheiro, pareciam acusá-la de estar se intrometendo onde não era chamada. Não era possível que o Diego não visse como aquilo era inapropriado ao extremo.
— Diego...
— Que falta de educação! — Ele bateu a mão na testa interrompendo a Bia. — Eu nem te ofereci nada. Você quer beber alguma coisa?
— Uma água? — Ela estava mesmo com sede depois da caminhada. — Mas eu vou com você e a gente conversa em outro lugar?
— Aqui é o único lugar onde ninguém vai interromper a gente. Eu já volto, me espera, por favor?
— Tá certo — ela concordou com relutância.
— E não precisa dizer, água com gás, gelo e limão. Acertei? — Sem esperar resposta, ele saiu, fechando a porta atrás dele.
Ele não precisava ter feito aquela cara de quem tinha acabado de acertar as seis dezenas da Mega da Virada. Depois de nove anos juntos, ele sabia como ela gostava de beber água da mesma maneira que ela tinha certeza que ele ia trazer um copo de suco de fruta com vodca para ele mesmo. Era estranho como você podia saber tantos fatos genéricos sobre uma pessoa sem nunca conhecer ela de verdade. E como você podia conhecer profundamente alguém com quem teve pouco tempo de convivência.
O que era mais importante, saber como alguém preferia beber água ou desvendar os segredos que ela pintava?
Como vinha acontecendo quando pensava no Lourenço, a Bia foi tomada por uma saudade tão grande oprimindo o peito, que ela perdeu o ar. Respirar fundo foi um erro. O perfume da Vivi encheu seus pulmões, a deixando ainda mais desconfortável por estar em frente a cama onde seu ex-marido dormia com sua ex-melhor amiga, e o quarto ameaçou rodar em volta dela.
Como é que ela se metia naquelas situações?
A varanda foi sua salvação. Do lado de fora, a Bia puxou outra golfada de ar, e o cheiro de mar, churrasco e pólvora dispersaram um pouco da tontura. Ela foi até o canto e se deixou cair numa cadeira de madeira, forrada com almofadas floridas. Ali, ela estava escondida de todos os olhares, tanto dos convidados do Diego na outra varanda, que ficava de frente para a praia, quanto das pessoas na avenida e dos vizinhos dos prédios do outro lado da rua.
A claridade que vinha dos postes de iluminação era mais que suficiente para ajudá-la a achar o celular dentro da bolsa, e ela pegou o telefone com a simples intenção de mandar uma mensagem para o Lourenço dando notícias da Alícia.
No dia seguinte ao Natal, a Bia tinha recebido um telefonema da Alexa com um inesperado pedido de desculpas. Ela achava que a reação da Nicole tinha sido provocada por uma ligação que ela fez da casa da Bia mesmo, para desejar feliz Natal para a amiga, quando ela tinha comentado como o Lourenço estava feliz e pensando em se mudar para o Rio de Janeiro. A Alexa garantiu que a Nicole não costumava ser inconsequente ou egoísta, e pegou todo mundo de surpresa com o que tinha feito, e que, ela mesma, sempre tinha desencorajado a outra de tentar tornar o relacionamento dela com o Lourenço em algo permanente, porque sabia que não era a intenção do irmão.
Com três pessoas assegurando que não havia noivado nenhum, a não ser na cabeça da desiludida da Nicole, a Bia não tinha como duvidar da sinceridade do Lourenço, mas ela ainda não tinha evoluído a troca de mensagens para mais que notícias da Alicia.
Só que era ano novo. E a Bia estava sentindo uma falta enorme dele. E ela não lutou contra o que queria fazer.
Biatriz: Feliz Ano Novo! Que todos os seus recomeços nesse ano tenham finais felizes.
Seu dedo pairou pela setinha de enviar. Ela tinha pensado na Alícia, mas a mensagem também servia para ela mesma. E daí? Sem pensar muito, ela enviou.
Um tracinho cinza.
Dois tracinhos cinzas.
E ela já ia desligar, porque ele devia estar ocupado e provavelmente só veria a mensagem mais tarde, quando os dois tracinhos ficaram azuis. Ela esperou com a respiração suspensa, escutando o próprio coração batendo, os olhos grudados no 'digitando' debaixo do nome do Lourenço. Um minuto depois:
Lourenço: Feliz Ano Novo pra vc também. Que todas as suas surpresas desse ano sejam as melhores possíveis. Saudades.
Saudades. Ele também estava com saudades.
Com o som da porta do quarto se abrindo, ela colocou o celular no silencioso e o jogou de volta dentro da bolsa.
— Bia? — A voz do Diego soou incerta.
— Aqui fora.
Ele saiu na varanda com dois copos na mão.
— Eu achei que você tinha fugido. — Ele sentou na cadeira ao lado dela, e depois de lhe entregar o copo de água, levantou o dele. — Maracujá com vodca. Quer um pouco?
— Não, obrigada. — Ela puxou o líquido no copo pelo canudinho, devagar, e só depois de ter certeza que não tinha nada misturado na água além do limão, ela bebeu tranquila.
O Diego não sabia que ela não estava bebendo, nem dos exames de sangue, mas vai que o convite era um pretexto para prejudicá-la no processo de guarda. Depois do que ele e a Vivi tinham feito, ela não duvidava da capacidade deles para mais nada.
— Você queria conversar comigo? — a Bia perguntou. Melhor acabar logo com aquilo. — Eu imagino que seja sobre como a Alícia descobriu que o Lourenço é pai dela.
— Isso mesmo — ele concordou com a voz mais calma que ela esperava. Ao invés de raiva, ele parecia estar constrangido. — Eu tinha um monte de coisa pra te dizer, mas... eu perdi a razão.
— Perdeu a razão, por quê?
— A Vivi... eu escutei a Vivi conversando com a Alícia e... — Ele deu várias voltas com o canudinho na bebida e tomou um gole antes de continuar. — Como é que eu posso brigar com você por causa de um comentário de uma desconhecida, quando a Vivi, que conhece a Alícia desde que nasceu, que viu tudo o que ela passou...
— Diego, fala logo! — a Bia pediu, largando o copo no braço da cadeira. Suas mãos começaram a tremer e ela ia acabar derrubando tudo. — O que a Vivi falou pra Alícia?
— Ela disse... que era tudo culpa da Alícia. Que ela tinha avisado que era pra ela ficar longe do Lourenço e ela não tinha obedecido e...
— Filha da... — A Bia ficou de pé num pulo. Ela não se considerava uma pessoa violenta, mas se a prima não estivesse bem longe, ela teria sido capaz de estrangular a imbecil. — Eu não acredito! E o que você fez?
— A gente brigou. — O Diego também largou o copo e ficou de pé. — Eu já tinha conversado com ela sobre ela ter contado pras meninas sobre o Lourenço ser preso. Você estava certa, ela não tinha o direito. Quando eu ouvi ela falando aquilo com a Alícia, eu perdi a cabeça. Eu mandei ela nunca mais se meter entre as meninas e você.
Apesar de estranheza da situação, um pequeno sorriso escapou pelos lábios da Bia.
— Você mandou? Na Vivi?
Ele deu um sorrisinho igual.
— Eu não preciso contar como foi o resto da conversa. Ela não tá aqui agora, né? Mas sério, eu avisei que ela não precisava voltar enquanto não entendesse que esse assunto é pra ser resolvido entre eu, você, a Alícia e o Lourenço.
— O Lourenço? — a Bia repetiu, surpresa. O Diego nunca tinha admitido em voz alta o direito do Lourenço como pai da Alícia.
— Não tem como evitar. Ainda mais agora que a Alícia sabe. Ela tá magoada, mas eu também vejo como ela tá curiosa. Sem contar que a Amanda não para de falar o tio Lôro isso, o tio Lôro aquilo.
— Você tá certo, a Alícia tá magoada, mas elas gostaram muito dele. Ele não é má pessoa, Diego.
— O que não quer dizer que eu não vou ficar de olho. Ele pisa na bola com as minhas filhas e ele vai se ver comigo.
— Então... — A Bia massageou a garganta como se pudesse fazer o bolo lá dentro sumir. — Isso quer dizer que se você ficar com a guarda delas, você não vai dificultar as coisas entre ele e a Alícia?
O Diego encostou o quadril no parapeito da varanda, ficando de frente para a Bia.
— Eu pensei muito nesses últimos dias. Na nossa situação. Em tudo o que aconteceu. Foi por isso que eu te convidei hoje. — Ele estendeu a mão e segurou a mão esquerda da Bia, o polegar passeando pelo pedaço de pele onde a aliança dela costumava ficar. — Como é que a gente veio parar aqui, Bia?
— Você sabe como a gente veio parar aqui. — Ela tentou puxar a mão, mas ele não a soltou.
— Mas ano novo é tempo de recomeçar. Por que a gente não deixa tudo pra trás? Você aqui em casa, é tão certo! Você também não se sente assim?
Nem com muito boa vontade, a Bia conseguiria sentir nada que não fosse desconforto por estar ali.
— Diego, é melhor a gente parar com essa conversa? — A Bia puxou a mão com mais força e conseguiu se soltar, mas o Diego deu um passo à frente, a encurralando entre ele e a quina da varanda.
— Me escuta primeiro? Pensa como vai ser bom pras meninas. O pai e a mãe juntos. Não ter que ficar se dividindo entre duas casas. A gente liga pros nossos advogados e cancela tudo. Não vai mais ter audiência. Acaba a briga na justiça. As meninas vão ficar com a gente. Com você!
A Bia fechou os olhos. A oportunidade de afastar seu maior medo estava ao seu alcance. Tentadora. Convidativa. Ao imaginar a ligação para o doutor Lemmer, ela sentiu uma paz, um alívio tão grande, que parecia que ela estava flutuando. Só tinha um problema, o Diego queria fazer parte do pacote.
— Diego. — Ela abriu os olhos e o encontrou mais perto do que esperava. Ela colocou a mão no peito dele para não deixá-lo se aproximar. — A gente não pode basear um casamento no que é bom pras meninas. E nós dois?
— Eu sei que a gente estava tendo problemas antes mesmo do acidente dos seus pais, mas nada que não pode ser resolvido A gente pode fazer terapia de casal? Se eu quiser e você quiser, não existe nada que a gente não pode superar. — Ele passou as costas da mão pelo rosto da Bia.
— Por que isso agora, Diego? É porque você brigou com a Vivi? Você tá confuso? — A situação era surreal demais para ela acreditar que estava acontecendo.
— Isso não tem nada a ver com a Vivi. — Ele escorregou a mão pelo ombro dela, acompanhando o braço até chegar na mão pousada no peito dele, apertando como se quisesse que ela sentisse o coração dele batendo rápido. — Eu fiquei muito balançado com aquela foto do Lourenço com vocês. Eu percebi que... Eu fiquei com ciúmes, Bia. E não existe ciúme sem amor.
— Talvez. Mas o que eu sei é que não existe traição com amor. Eu nunca vou conseguir apagar da minha cabeça a cena de você com a Vivi naquele sofá.
— Você tem que entender que sexo é diferente pra homem e mulher. — Ele tentou chegar mais perto, mas a Bia firmou a mão. — Já tinha meses que não rolava nada entre a gente, e eu estava sentindo muita falta. Aí, chega a Vivi me consolando, aproveitando toda a chance que ela tinha pra me abraçar, e acabou acontecendo.
— Se tivesse acontecido uma vez, um momento de fraqueza. Se você tivesse vindo me contar, talvez, terapia pudesse ter ajudado, mas vocês me enganaram por meses.
O Diego desviou o olhar do seu por alguns segundos.
— O que eu posso dizer? Você e a Vivi são diferentes, entende? Você é calma e quieta. Com ela era... mais fogo e...
— Pode parar. Eu já entendi, Diego.
E ela entendia. O sexo deles era mesmo calmo. Tedioso, alguns podiam chamar, mas depois do relacionamento tumultuado com o Lourenço, um amor tranquilo, uma vida estável e previsível foram alguns dos fatores que levaram a Bia a voltar a namorar o Diego.
Ela não pôde deixar de pensar no sexo com o Lourenço, tanto o de dez anos atrás, como o dos últimos dias. Eles eram explosão pura. Não tinha nada de calmo na Bia quando estava com ele, pelo contrário, ela mal conseguia controlar os gemidos e os gritos. Ela tinha rasgado uma fronha!
O Diego pareceu ler seus pensamentos.
— Escuta, eu não me importo se rolou alguma coisa entre você e o Lourenço nesses dias que ele ficou na sua casa. Eu ainda quero voltar com você.
— Nossa! Como você é bonzinho, Diego! — Ela tirou a mão do peito dele. De repente, qualquer contato com ele ficou insuportável. — Eu pego a minha prima fazendo um boquete em você no meu sofá, na minha casa, e você não liga se aconteceu alguma coisa com o Lourenço depois da gente estar separado.
— Você me traiu, e eu te trai. O jogo tá empatado e pronto.
— Eu não te traí, Diego. Se aconteceu alguma coisa com o Lourenço na minha casa, você não tem nada a ver com isso. A gente tá separado!
— Eu não tô falando da semana passada. Eu tô falando do dia do desfile. Do dia em que a gente ainda namorava e você transou com ele.
O queixo da Bia caiu e por alguns segundos ela ficou sem ação. Mas a raiva não demorou a vir. Raiva o suficiente para conseguir empurrá-lo e passar por ele, respirando mais fácil agora que não estava presa entre ele e o peitoril da varanda.
— Eu não acredito! A gente conversou antes de casar. Eu me desculpei, e você disse pra gente esquecer. — Ela apontou um dedo acusador para ele. — Mas você não esqueceu. Você deixou guardado, como um coringa pra jogar na mesa na hora que fosse conveniente. Eu não tô dizendo que eu tô certa, mas eu traí um namorado de seis meses, você traiu a sua esposa, mãe da sua filha, e acabou com um casamento de mais de oito anos!
— Traição é traição, Bia. — Ele deu de ombros. — Mas não importa. A gente tá igual.
— A gente não tá igual! — A Bia abaixou e pegou sua bolsa caída no chão, as mãos tremendo tanto que ela só conseguiu pendurá-la no ombro na segunda tentativa. — Eu contei pra você que eu tinha te traído, eu assumi a minha responsabilidade no que aconteceu. Eu te pedi desculpas. Enquanto você só sabe fazer parecer que é minha culpa você ter transado com a Vivi. Pobrezinho do marido negligenciado que achou conforto nos braços da prima compreensiva. Vai pro inferno!
Ela entrou no quarto quase correndo. Ela devia saber que o convite do Diego não seria só por causa das meninas, mas como ela poderia ter previsto aquela conversa? Ela achava que ele não podia fazer mais nada que a surpreendesse? Errada de novo!
— Espera! — Ele a alcançou e a segurou pelos ombros. — Você nunca toma boas decisões quando tá nervosa. Você sabe que, com tudo o que aconteceu, a guarda das meninas é praticamente minha. Aproveita a sua viagem pra pensar na minha proposta. E eu prometo não dificultar as coisas entre o Lourenço e a Alícia.
— Eu não preciso pensar! Eu morro pelas meninas se for preciso, mas eu tento não mentir pra elas. E é isso que voltar com você, seria. Uma mentira! Você lembra quando você falou que uma parte minha nunca tinha deixado de ser do Lourenço? Adivinha? Você estava certo!
A Bia se soltou com um safanão e saiu daquele quarto onde ela nem deveria ter entrado. As vozes das crianças continuavam animadas com o videogame, mas a Bia passou direto pela porta da sala de TV. No estado que ela estava, melhor não se despedir das meninas. Ignorando também os olhares dos convidados na sala, a Bia apertou o botão do elevador, dando as costas para todo mundo.
— Biatriz — o Diego falou com a voz mais calma do mundo ao parar do lado dela. — Não vai embora. Já são quase meia-noite.
— É melhor eu ir. E amanhã eu preciso das meninas de volta. Eu venho buscar ou você leva, por favor. A gente vai viajar depois de amanhã.
A porta do elevador não demorou a se abrir. O painel diferente a confundiu por alguns segundos até ela enxergar a tecla maior com o 'P'. Antes da porta fechar, ela teve tempo de ver o sorriso satisfeito da dona Odete por trás do filho. Ela devia adorar a Vivi, as duas destilando veneno juntas. Ou não. A ex-sogra era daquelas que nunca se daria bem com as noras, nenhuma mulher boa o suficiente para o filhinho perfeito. Foda-se todos eles!
As pistas da avenida estavam lotadas de pessoas esperando pelos fogos, e a Bia foi andando rápido, tropeçando pelo canto da calçada que estava mais vazia, sem se desculpar pelos encontrões que ia dando nos outros. Eles deviam estar achando que ela estava bêbada, e não estavam muito erradas. Só que ela estava bêbada de pensamentos que não paravam de rodar pela sua cabeça.
Será que ela tinha tomado a decisão certa em dizer não para o Diego? O Lourenço mesmo a tinha lembrado que uma boa mãe fazia o que os filhos precisavam que ela fizesse e não o que ela queria fazer. Será que não era egoísmo se negar a tentar reconstruir a família deles? Seguir a correnteza e fazer o que seria esperado?
A Bia tinha escutado, várias vezes, a teoria de que o Diego tinha se aproveitado da Alícia para se reaproximar dela. Não que ele não tivesse se apaixonado pela menininha que ele tinha segurado pela primeira vez na festa de batizado dela, mas será que era coincidência que ele estivesse, de novo, usando o argumento das filhas para amolecer seu coração?
Naquela ocasião ela não estava se sentindo muito diferente que naquele momento: autoestima em baixa, saudades do Lourenço, carente e sozinha. E por que ela tinha tanto medo de ficar sozinha?
Não era melhor ficar sozinha que voltar para o casamento morno que ela tinha com o Diego? Sem a faísca que fazia os casais se reinventarem e evoluírem juntos. Um relacionamento que mais parecia com amigos que moravam juntos. Cômodo, confortável e fácil para ela. A aparência de uma família perfeita para ele. E um exemplo para suas filhas totalmente ao contrário do que ela tinha tido com os próprios pais.
Quando a gente convive de perto com um casamento como o do papai e da mamãe, é impossível não querer a mesma coisa, as palavras do irmão ecoaram pelos seus ouvidos.
Mas o impossível não era querer a mesma coisa. O impossível era conseguir um relacionamento que fosse, ao menos, parecido com o dos pais. Eles eram exceção. Eles estavam num patamar inalcançável. Um amor daqueles era raro. Um em um bilhão, ou trilhão, ou o que quer que viesse depois.
A Bia estava cansada de tudo na vida ser difícil. Ela dava tudo para ser uma daquelas pessoas ali na praia, festejando a chegada do ano novo com os familiares e amigos, bebendo champanhe em copos de plástico, rindo de nada e de tudo.
Como o Lourenço devia estar fazendo em Porto Alegre, provavelmente com uma modelo pendurada no braço, afinal, eles não tinham assumido nenhum compromisso, não tinham feito nenhum plano.
Como o Fred devia estar fazendo com a Naiara.
Como as filhas estavam fazendo na casa do pai, sem nem ter dado falta dela.
A Bia passou pela portaria do seu condomínio mal respondendo ao cumprimento de feliz ano novo do segurança.
Feliz ano novo?
Feliz para quem?
Não para ela que precisava lutar todos os dias para sair da cama. Que precisava se forçar a comer e não ficar fraca demais para cuidar das filhas. Que tinha passado tantas noites em claro estudando e não tinha condições de exercer sua profissão.
Ela precisou firmar a chave nas duas mãos para conseguir abrir a porta de casa e entrou no escuro, arrancando uma sandália e depois a outra, jogando a bolsa em cima do sofá, tropeçando pelos degraus da escada.
É verdade que ela tinha melhorado um pouco nos últimos dias, decorado a casa para o Natal, voltado a pintar, feito a tatuagem. Tudo com os tais empurrõenzinhos do Lourenço, mas por que era tão difícil pensar em fazer aquilo tudo sozinha?
A Bia se ajoelhou no chão do banheiro e pegou a caixa de absorventes no fundo do armário. As duas cartelas de remédio pareciam queimar a sua mão, e um por um, ela foi empurrando os comprimidos em cima da pia.
Juntando as vinte bolinhas brancas na palma da mão, ela respirou fundo. Chega de ser a fraca da história. Chega de se prometer resolver seus problemas depois. Depois de quê? A hora de retomar o controle da sua vida era aquela.
E com o início dos fogos de artifícios, ela fez o que devia ter feito há muito tempo.
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