Capítulo 31
Foi a Bia quem escolheu manter o...
Relacionamento?
Caso?
Pegação?
Qualquer que fosse o nome do que estava acontecendo entre ela e o Lourenço, debaixo dos panos, e aquela era a decisão certa. Ela só não tinha antecipado que seria tão difícil agir com normalidade no domingo à noite. Conversar e comer sentada do outro lado da mesa como se a maratona de sexo da manhã não tivesse acontecido.
A julgar pela ferocidade com que o Lourenço tinha arrastado a Bia de volta para o quarto dele depois que o Fred finalmente tinha ido embora e a Mariana, dormir, ele estava passando pelas mesmas dificuldades.
Alguns botões da sua blusa voaram pelo ar quando ele a arrancou. Sua calcinha virou um trapo inútil ao sofrer tratamento igual. Quando a Bia começou a gemer e choramingar como uma gata no cio, o próprio Lourenço a pôs de quatro e empurrou o rosto dela no travesseiro, para o barulho não acordar a Mariana não-bêbada a meros passos de distância. E o orgasmo foi tão intenso, que ela rasgou — rasgou! — a fronha agarrada nos seus punhos.
Felizmente, ele tinha entendido os motivos dela para ir dormir na própria cama e a deixou ir. Depois da quinta tentativa. No dia seguinte era véspera de Natal, ela precisava de todo descanso que conseguisse, o que seria impossível se precisasse passar a noite vigiando cada barulhinho da casa achando que era a Mariana prestes a pegá-los no flagra.
Mas foi horrível acordar sozinha sabendo que o Lourenço estava logo ali. E igualmente péssimo sentar na mesa do café da manhã, outra vez do lado errado, fingindo escutar com indiferença os planos dele com a irmã, sem ter ganhado nem um beijinho junto com o seu bom dia.
— Você me segue no carro até a locadora, eu devolvo a moto e a gente pode alugar o outro carro lá mesmo, ou você prefere ir direto pro aeroporto e eu te encontro lá? — O Lourenço esperou a resposta da irmã, tomando um gole do café.
— Eu te sigo. O aeroporto vai estar lotado, melhor a gente ir junto.
— Vocês podem usar o meu carro — a Bia ofereceu.
— Se fosse só pra buscar eles no aeroporto, eu aceitava. — O Lourenço pousou a xícara de café no pires com um sorriso que testou toda a força de vontade da Bia. — Mas eles vão ficar até o fim de semana. Vão precisar de um carro, de qualquer maneira.
O tio e a esposa, mais a Alexa, o marido e o filhinho deles iam chegar de Porto Alegre antes do almoço. O Fred também tinha oferecido a casa dele como hospedagem, mas eles recusaram, dizendo que não queriam incomodar. Provavelmente, porque iam ficar mais à vontade no apartamento de Copacabana e, claro, com um carro à disposição.
— Biatriz? — A Mariana se inclinou para a frente. — Você não precisa se preocupar com o nosso almoço. Até eles chegarem e a gente ir em casa deixar as bagagens, vai ficar tarde. A gente almoça lá em Copacabana.
A Bia agradeceu com um sorriso. Não porque ela se importaria de esperar por eles, mas a Berê tinha trazido a filha e a cunhada para ajudar com a montanha de coisa para fazer. Seria injusto exigir que ela preparasse comida para aquele monte gente, quando já estava atolada, adiantando tudo o que podia para a ceia daquela noite, e o almoço de Natal no dia seguinte.
— Vamos? — O Lourenço levantou e foi imitado pela irmã. — E, Bia? Qualquer coisa que você precisar da rua, avisa ao Fred, ele traz pra você.
— Claro! — O Fred rolou os olhos dramaticamente. — Vamos dar mais tarefas pro único que não tá desocupado hoje!
Se a Bia não cortasse aquela discussão pela raiz...
— Se eu precisar de alguma coisa, eu mesma vou buscar, obrigada — ela disse olhando para o Lourenço, e antes que o irmão começasse a debochar da resposta, ela se virou para ele. — E eu sou a única desocupada dessa casa hoje, eu preferia que você não falasse como um insulto, obrigada.
— E se os meninos não se comportarem, o papai Noel não vai trazer presente.
Aquilo foi dito pela Mariana, que ganhou um olhar de surpresa e divertimento dos três.
— Até você? — O Lourenço soltou uma risadinha incrédula.
— A Bia já tem duas filhas pra cuidar. Alguém precisa ajudar com as duas crianças extras. — A Mariana pegou a bolsa do encosto da cadeira e colocou nos ombros. — Vamos, senão a gente vai chegar atrasado. Bom dia pra vocês.
Depois de um aceno para a Bia e o Fred, ela passou o braço pelo do irmão e o puxou pela sala.
— Bom dia! — o Lourenço gritou por cima do ombro. — Sério, Bia, se você precisar de alguma coisa me...
O resto da frase foi cortado pela porta fechando atrás dos dois.
Sem beijo de despedida também, a Bia suspirou, bebendo o restinho de chá. Ela tinha passado dez anos sem quase nenhum contato com aquele homem. Não tinha sido fácil nos primeiros meses, mas ela tinha sobrevivido. Como algumas poucas horas sem um toque, um carinho, e parecia que faltava um pedaço essencial dela mesma?
— Você vai pra clínica agora? — ela perguntou para o irmão, forçando os pensamentos a tomar outro rumo.
— Depois que o Diego deixar as meninas.
— Não precisa, Fred. Sério. Ele vai demorar e eu não pretendo ficar sozinha com ele. Você sabe que ele não vai ter coragem de falar nada na frente delas.
— E se ele mandar a Vivi, de novo?
— Eu sobrevivi a ela no sábado, não foi? — a Bia disse com mais coragem que sentia, e pela cara do irmão, ele não tinha sido convencido. — Se te deixa mais tranquilo, se for a Vivi que vier, eu peço pra Berê receber as meninas, que tal?
— Tem certeza? Quanto mais cedo eu for, mais cedo eu tô de volta.
— Você não vai acabar ficando preso no trabalho e perder a ceia, vai? — Um calafrio passou pelo corpo da Bia.
Era uma promessa difícil de se pedir a um médico. Ela tinha feito o mesmo juramento de colocar o dever na frente de tudo, mas ela não conseguiria sobreviver à noite de Natal sem o irmão com ela.
— Sem chance. O Henrique é quem vai ficar de plantão. Ele só vai me chamar em caso de catástrofe. Eu preciso ir lá levar os documentos pra contabilidade e resolver uns assuntos, mas eu chego muito antes da ceia. — Ele levantou e deu um beijo na cabeça da irmã. — Fica tranquila.
Como se estivesse só esperando pela deixa da porta batendo anunciando a saída do Fred, a Renata, filha da Berê entrou na sala.
— Posso tirar a mesa, dona Bia?
— Eu te ajudo.
Enquanto a Bia fez uma viagem até a cozinha, a Renata esvaziou a mesa toda. Ela entendia a pressa, elas queriam terminar cedo e ir para casa prepararem a própria festa. Não querendo ficar no caminho e atrapalhar, a Bia foi para a sala de televisão, embrulhou os últimos presentes e mandou mensagens de Feliz Natal para alguns poucos amigos. A festa de confraternização da clínica foi um lembrete de como ela tinha se afastado de todo mundo. Não era com todo mundo que ela queria manter contato, mas algumas pessoas, como a Milena, mereciam o esforço de uma reaproximação.
Ela não escutou o interfone e só reparou que a Berê tinha entrado na sala, quando ela falou:
— A dona Vivi tá vindo deixar as meninas.
O pedido para que sua funcionária fosse receber as filhas morreu na ponta da língua da Bia. Ela tinha mais que sobrevivido à prima no sábado, não tinha? Uma pessoa tinha o direito de se sentir fraca em algumas circunstâncias, mas abusar dessa prerrogativa significava precisar colocar covardia na sua lista de características permanentes. A Bia não se importava por sido covarde em alguns momentos, mas ela não queria ser uma covarde. Ela se levantou e guardou o celular no bolso do short.
— Obrigada, Berê. Eu tô indo.
Não foi fácil. Tudo dentro dela estava se revirando e ela parou no degrau com os braços cruzados, escondendo o tremor das mãos.
À toa.
Não devia ser por causa das suas ameaças, a Vivi não era de se intimidar com pouco, mas para a sorte da Bia, a prima parecia estar com pressa. Ela parou o carro e só esperou as meninas descerem antes de arrancar de novo. Apesar de toda sua determinação, foi um alívio não ter precisado lidar com a víbora, e um olhar para os sorrisos nos rostinhos das filhas saltitando pelo caminho foi tudo o que ela precisou, e tremores e desconforto se evaporaram como se nunca tivessem acontecido.
— Que saudade, meu amor. — A Bia agachou e abraçou a Amanda, fazendo o mesmo com a filha mais velha, em seguida. — Como é que foi com o papai?
— Foi bom — a Alícia respondeu.
— Mamãe, sabe por que a gente demorou? — A Amanda puxou o rosto da Bia para ela, dando dois pulinhos.
— A gente ficou com a tia Vivi vendo o papai na televisão. — A Alícia se juntou ao entusiasmo da irmã. — Ele foi no programa da Ana Maria Braga, você viu?
— Não, meu amor, eu não sabia que ele ia. — E mesmo se soubesse não ia ver. Não que ela não gostasse da Ana Maria Braga, que ela tinha encontrado pessoalmente algumas vezes e era ótima pessoa, mas não havia nada que o ex-marido pudesse dizer numa entrevista que a Bia teria interesse em escutar.
A Amanda puxou o rosto da Bia, de novo.
— Ele pediu pro Loro José mandar um beijo pra gente.
— Verdade?
— Foi! — a Alícia respondeu com um sorriso. — Ele falou assim: 'um feliz Natal e uma beijoca nas fofas da Alícia e da Amanda'.
— Ele chamou a gente de fofa! — a Amanda deu um gritinho.
— Claro que ele chamou vocês de fofas. Vocês são as meninas mais fofas do mundo! — A Bia riu junto com elas. Ela precisava admitir, nem tudo na carreira do Diego era ruim, ainda mais quando ele fazia a felicidade das filhas com um simples recadinho de um boneco de papagaio. — Vamos entrar?
A Amanda passou pela porta correndo, arrancando a mochila das costas e largando no chão, mas a Alícia agarrou a mão da Bia e parou logo na entrada, virando a cabeça de um lado para o outro, procurando por alguma coisa dentro de casa.
— O tio Lôro tá aqui? — ela perguntou.
— Ele não tá aqui agora, mas ele vai chegar mais tarde, por quê?
— A tia Vivi disse que é pra gente não chegar perto dele — foi a Amanda quem informou, voltando até a mãe.
— O quê? Por quê? — a Bia perguntou com o coração disparado. Não era possível que a Vivi tinha feito o que ela estava achando que ela tinha feito. Ela não ia descer tão baixo.
Com a vozinha baixa e insegura, a resposta veio da filha mais velha.
— Ela disse que ele é perigoso. E que ele já foi preso, é verdade, mamãe?
Claro que aquela cobra não tinha limites quando se tratava de ser baixa e tóxica. Pena que ela não aproveitava e descia até o inferno e ficava por lá mesmo! E aproveitava para levar o Diego com ela. Tinha razão os dois ficarem juntos, os cafajestes se mereciam.
A Bia respirou fundo. As filhas a encaravam com curiosidade e não era nelas que ela tinha que descarregar sua ira e indignação.
— A mamãe vai explicar tudo pra vocês, daqui a pouquinho. — Ela usou a voz mais calma que conseguiu, embora por dentro estivesse fervendo de ódio. — Me espera na sala de televisão, que a Renata tá fazendo faxina lá em cima. Eu não demoro.
A Bia saiu e fechou a porta atrás dela, andando pelo jardim, se afastando o máximo possível da casa e dos ouvidos que não precisavam escutar aquela conversa. Suas mãos tinham voltado a tremer tanto, que só na terceira tentativa ela conseguiu completar a ligação para o Diego.
— Alô? — ele falou com a voz distraída, como se não tivesse olhado a tela do celular antes de atender e não soubesse com quem estava falando. Ele estava em algum lugar barulhento.
— Oi, Diego. Sou eu, Bia. Você pode falar?
— Posso. Eu tô no carro, você tá no viva-voz, mas eu tô sozinho. Pode falar.
— Como é que vocês tiveram coragem de fazer isso, Diego? — A Bia não tentou se controlar, era muita coisa ruim dentro dela querendo sair. — Você exige que eu converse com você, que eu não tome nenhuma decisão importante sobre as meninas, sem conversar com você! O mínimo que você tem que fazer, é retribuir.
— Calma, Bia. Eu não tô entendendo nada. Que decisão importante eu tomei sem te consultar? Se a Vivi ainda não chegou com as meninas, ela deve estar chegando.
— Ela já chegou e já foi. E eu tô falando sobre ela ter contado pras meninas que o Lourenço foi preso. Eu sei que você não gosta de ser lembrado disso, mas ele é o pai da Alícia. Será que você não vê como assim fica tudo mais difícil pra ela?
— Se a Vivi falou isso mesmo, ela não disse nenhuma mentira, disse?
— Se a Vivi falou? — a Bia gritou no telefone. — Você tá chamando as meninas de mentirosas? E de onde é que elas iam tirar isso?
— Espera um minutinho, Bia, eu vou parar o carro.
Quando o Diego voltou a falar com ela, a voz dele soou mais perto e o barulho em volta dele tinha diminuído.
— Pronto. Não precisa gritar. Vamos conversar com calma, como adultos.
— Tá vendo? Você quer que eu seja adulta, e você toma a atitude infantil e vingativa de usar as meninas... mas vamos lá. O que você achou que ia acontecer, que eu ia mandar ele embora? Nunca mais deixar ele falar com a Alícia? Isso não vai acontecer! E por causa de uma atitude mesquinha, as meninas vão passar o Natal do lado de alguém de quem elas estão morrendo de medo? Não tá certo, Diego, por mais que não seja mentira, é uma informação que tem que ser dada com cuidado. Se você colocasse as meninas em primeiro lugar...
— Espera — ele a interrompeu. — Eu vou conversar com a Vivi, entender direitinho o que aconteceu. Vai ver que as meninas descobriram e perguntaram pra ela?
Claro que ele ia defender a namorada. Nenhuma novidade, mas a Bia estava certa naquela história e ela não ia deixar o Diego levar a melhor. Todas as vezes que ela tinha conseguido enfrentar o ex-marido ou a prima, a raiva tinha sido seu combustível, e ela tinha o suficiente queimando dentro dela naquele momento para ir em frente.
— Você fala com ela, então, Diego. E escuta uma coisa. Se eu aceitei, sem reclamar, todas as suas decisões sobre a nossa separação até agora, foi pra proteger as meninas, que estão lidando com mais coisas que merecem. Só não esquece que tudo relacionado ao Lourenço ser pai da Alícia só tem a ver com ele, com ela e comigo.
— E comigo também!
— Não. Eu tô tendo a cortesia, como eu expliquei pra você, em respeito aos anos em que você conviveu com a Alícia, de deixar você participar, mas se você e a Vivi continuarem tomando decisões pelas minhas costas, isso acaba!
— Você não pode fazer isso!
— Claro que posso. E outra coisa. Dá um recado pra sua namorada pra mim. Avisa a ela que, da próxima vez que ela se meter onde não é chamada, ou usar as minhas filhas pra me atingir, eu ligo pro apresentador daquele programa de fofocas que você odeia e dou uma entrevista contando o verdadeiro motivo do fim do nosso casamento.
— Eu te conheço, Bia. Você detesta escândalo. — Ele deu uma risada debochada. — Você nunca ia ter coragem.
— Você me conhecia, Diego, e talvez eu não tivesse coragem antes, mas agora eu tenho. Me testa pra você ver! E se você acha que eu não sou boa atriz, lembra tudo que eu sofri e chorei nesses últimos anos. Derramar algumas lágrimas e fazer papel de coitada na frente das câmeras não vai ser nem um pouco difícil.
— Me escuta você, Bia. Você tá certa. — Ele mudou o tom de irônico para calmo e conciliatório. — Eu vou ter uma conversa séria com a Vivi. Ela não devia ter tomado a iniciativa de contar nada pras meninas. Não faz nada que você vai se arrepender depois. Deixa que eu resolvo tudo.
— Você faz isso. E não esquece, vocês se comportam daí, e eu me comporto daqui.
A Bia desligou o telefone enquanto ainda estava ganhando. Um gosto amargo de bílis inundou a sua boca, e ela se curvou, achando que ia reencontrar o café da manhã na grama do jardim. Ameaça e chantagem, ao invés de calma e lógica, não era como ela preferia agir, mas para certas pessoas, como a Vivi e o Diego, era a única coisa que funcionava. Prova maior foi como ele tinha colocado o rabinho entre as pernas rapidinho.
Então, aquele era o sentimento de ter uma vitória, mesmo que pequena numa discussão com o Diego? Fazia tanto tempo que ela nem se lembrava. E apesar de toda baixaria, uma pontinha de satisfação brilhou dentro dela. A doutora Clarisse ia ficar tão orgulhosa! Era um passo pequeno, mas era um começo.
Quando teve certeza que não ia vomitar, a Bia levantou a cabeça e respirou fundo. Ela não podia ficar ali no jardim o dia inteiro comemorando sua coragem. Duas menininhas esperavam por ela e explicações dentro de casa, e ela teria que ser muito cuidadosa em consertar a lambança que a Vivi tinha feito, principalmente para a Alícia. Não só porque o Lourenço era pai dela, mas ela era mais velha, tinha um entendimento melhor do que significava uma pessoa ter sido presa.
Ela entrou em casa se repetindo os conselhos que a psicóloga infantil tinha lhe dado anos atrás: deixar as perguntas das filhas conduzirem a conversa, não dar informações que elas não tinham capacidade de entender, sempre com a verdade, em pequenas doses para não deixá-las sobrecarregadas.
As duas estavam no sofá vendo TV, mas era óbvio como a Alícia estava tensa e tinha aquele olhar perdido de alguém que estava olhando sem ver. Desconfortável dentro da própria casa.
— Vamos conversar? — Sem esperar resposta, a Bia pegou o controle remoto e desligou a televisão.
Incrível como criança é sensível às emoções em volta dela. Mesmo com o esforço da Bia para manter a aparência calma, a Amanda não reclamou pela televisão desligada e buscou refúgio no seu colo, assim que ela sentou no sofá.
— Agora, me conta direitinho, o que a tia Vivi falou? — A Bia segurou a mão da filha mais velha, não só para que ela soubesse que a pergunta foi feita para ela, mas para passar um pouco de segurança.
— Que o tio Lôro é muito perigoso e que ele foi preso e fez você ser presa também. E que não era pra gente conversar com ele, nem pra ficar perto dele, porque ele podia fazer uma coisa ruim com a gente. Foi, mamãe, você foi presa?
Com cada frase da Alícia, o ódio pela prima queimava com mais força dentro da Bia. Se ela tinha alguma dúvida que seria capaz de cumprir a promessa de contar para o maior fofoqueiro da televisão como tinha pegado a Vivi com o Diego, incluindo os mínimos detalhes sórdidos e vulgares, ela não tinha mais. Ela até torceu intimamente para a cafajeste não dar crédito às suas ameaças, e ter a chance de colocar a boca no mundo.
Respirando fundo, ela buscou lá dentro as palavras para responder à pergunta da filha.
— Vocês sabem que a mamãe conhece o tio Lôro há muito tempo. Desde antes de vocês nascerem, e é verdade, ele foi preso. A mamãe estava junto com ele, por isso o guarda me levou pra delegacia também, mas eu não fui presa. O tio Lôro falou pro delegado que eu não tinha feito nada errado, e a mamãe voltou pra casa no mesmo dia.
A Alícia balançou a cabeça, um pouco mais tranquila, como se o Lourenço ter inocentado a Bia o tornasse um pouquinho menos pior.
— E o que ele fez? Ele roubou alguém? — ela perguntou.
— Ele matou alguém? — a Amanda acrescentou e, apesar da seriedade da situação, a Bia precisou prender os lábios para não sorrir com os olhinhos verdes arregalados e as mãozinhas nas duas bochechas. Sua caçulinha tinha puxado o lado dramático das duas influências masculinas na vida dela, não tinha como negar.
— Não, ele não roubou, nem matou ninguém.
— E o que ele fez, mamãe? — A Alícia fixou os olhos, tão iguais aos do pai, na Bia, que respirou fundo, de novo. Então, ela ia ter que ir mais fundo.
— Você sabe o que é droga, né? — A Bia perguntou de volta para ela. — Lembra daquele trabalho que a gente fez pra escola?
— Lembro. É pra dizer não e contar pra você, pro papai ou pra minha professora, se alguém que eu não conheço quiser me dar alguma coisa que eu não sei o que é.
— Isso mesmo — a Bia aprovou, com um sorriso, e se virou para a filha mais nova. — Mas você não sabe.
Pro inferno com a Vivi que a estava obrigando a ter aquela conversa sem ter tido tempo de se preparar melhor. Como explicar o que é droga para uma menina de quatro anos? Mantendo simples e de uma maneira que ela pudesse entender.
— Droga é como se fosse um remédio ao contrário. Quando você tá doente, você toma remédio e fica boa. Com a droga, você toma e fica doente.
— Mas por que alguém toma remédio pra ficar doente? — ela virou a cabecinha loira de lado.
— Porque quem faz a droga, engana as pessoas. Coloca dentro de uma bala, ou de um chocolate. Ou dentro de um suco colorido. — A Bia se lembrou da Mariana e do drinque docinho e aparentemente inofensivo. — A pessoa não percebe que tá tomando a droga até ser tarde demais. Quando ela vê, já tá doente, ou viciada como a gente diz, e não consegue parar e vai ficando cada vez mais doente. Por isso é muito importante não comer, nem beber, nada que um estranho te dá.
— Eu prometo, mamãe. — Ela balançou a cabeça, solenemente.
— O tio Lôro foi preso porque ele usava droga? — a Alícia continuou o interrogatório.
— Não. Ele foi preso porque ele vendia droga.
— E as outras pessoas ficavam doentes por causa dele? Ele não sabia, mamãe?
— Ele sabia... — a Bia fez uma pausa, procurando por uma maneira de fazer a filha entender. — Você lembra daquela boneca de bailarina que a mamãe tinha em cima do móvel da sala? Quando você pediu pra brincar com ela, e eu não deixei porque era de vidro, o que aconteceu?
— Eu peguei escondida — a Alícia admitiu, de cabeça baixa. — E ela caiu no chão e quebrou e eu tentei catar os pedaços e cortei o dedo, mas eu pedi desculpas e disse que não fazia mais!
— Eu sei. Eu não tô brigando com você. Eu só quero que você entenda que, às vezes, a gente sabe que uma coisa tá errada e faz assim mesmo. — Ela se virou para a Amanda e ensaiou uma cosquinha na cintura da filha. — Isso a senhorita entende, né? Fazer coisa errada. E o que acontece com quem faz coisa errada?
— Fica de castigo — ela respondeu rindo e se retorcendo no colo da Bia.
— E o castigo de quem vende droga, é ser preso. — A Bia parou a brincadeira e voltou a ficar séria. — O tio Lôro recebeu o castigo dele, aprendeu e não faz mais.
O fato que o Lourenço tinha sido preso duas vezes, ia ficar para uma próxima conversa.
— Então, a gente não tem que ter medo dele? — A Amanda a olhou cheia de esperança. — Porque eu gosto muito do tio Lôro.
— Vocês acham que a mamãe, ou tio Fred, iam deixar alguém perigoso chegar perto de vocês? Nunca!
A Amanda se convenceu, mas a Alícia ainda estava tensa, insegura.
— A tia Vivi disse que ele estava enganando tudo mundo. Ele pode ser perigoso e tá enganando você também?
A Vivi não era de deixar nada pela metade. Ela cobriu todas as bases no trabalho sujo de contaminar as meninas.
— Vamos pensar juntas, em tudo o que a gente fez com o tio Lôro desde que ele chegou. A gente jogou Uno e foi na praia. O que mais?
— A gente viu filme e montou a árvore de Natal — a Amanda contribuiu.
— E a gente aprendeu a pintar, brincou na piscina e foi no shopping — a Alícia finalizou a lista.
— Exatamente. E em alguma hora, o tio Lôro fez, ou falou, alguma coisa que deixou vocês com medo? Comigo, não.
Não era inteiramente verdade, alguns dos momentos em que ela passou perto do Lourenço, ela se sentiu apavorada, mas por um motivo diferente. Um que as meninas não tinham idade para entender, e nem era o motivo daquela conversa.
— Nem comigo — a Amanda enfatizou a resposta, negando com a cabeça.
— Comigo também não — a Alícia admitiu depois de pensar em silêncio. — Mas por que a tia Vivi falou isso?
Se a Bia fosse baixa e vingativa como a prima, ali estava a oportunidade perfeita de virar as filhas contra ela, mas, ao contrário da Vivi, ela pensava em como seria para duas crianças conviverem com uma madrasta de quem não gostavam. E ela duvidava que a Vivi ia voltar a usar as meninas para se vingar dela, a Bia pretendia continuar com a ameaça da entrevista mesmo se perdesse a guarda. Ela tinha vivido com as exigências da carreira do Diego por tempo suficiente para saber que o ex-marido não se arriscaria a ser visto como um dos culpados pelo fim do casamento e ia manter a namorada na linha. Foi só por aquele motivo que a Bia fez a última coisa que queria e defendeu a cafajeste.
— A tia Vivi estava preocupada com vocês, mas ela não conhece o tio Lôro como eu conheço. Ele nunca ia fazer nada de ruim com vocês, pode acreditar em mim.
Finalmente, os ombros da filha mais velha caíram, relaxados.
— Alguma pergunta? — A Bia recebeu duas negativas como resposta. — Mais uma coisa, se vocês quiserem conversar com o tio Lôro sobre esse assunto, ele não vai se importar, mas isso não é uma coisa que a gente fala na frente de todo mundo. Aproveita uma hora em que ele estiver sozinho, e conversa com ele sem ninguém ouvir.
O aviso foi para filha mais nova, que seria capaz de tocar no assunto em plena ceia de Natal. E a Bia deixaria o Lourenço preparado, para ele não ser pego de surpresa como ela tinha sido.
— Mamãe? Ainda bem que eu não preciso ter medo do tio Lôro. — A Alícia abriu um sorriso. — Eu também gosto muito dele.
E não importava o que ia acontecer no resto do dia e da noite. A Bia tinha acabado de receber seu melhor presente de Natal.
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