Capítulo 3

Seu rosto no espelho estava exatamente como ela esperava, vermelho, inchado e borrado de maquiagem. A Bia fez o melhor que pôde se consertando com um lencinho de papel úmido e um tubinho de corretivo. Não ficou nível Gisele Bündchen, mas ficou menos Arlequina.

Ela não ouviu vozes ao abrir a porta do banheiro, sinal que o Lourenço tinha terminado a ligação, e voltou para a sala. Ele a esperava de pé, olhando pela janela.

— Saudades do trânsito do Rio de Janeiro? — Ela largou a bolsa no sofá e se juntou a ele, observando a confusão de carros buzinando por causa de um sinal quebrado na esquina.

— Sempre foi tão barulhento? Porto Alegre não tem o trânsito mais calmo do mundo, mas eu acho que eles são mais... — Um homem enfiou a cabeça para fora do carro e desfiou uma corrente de palavrões para o motorista da frente, fazendo a Bia e o Lourenço franzirem a testa juntos. — Bem-educados?

— É segunda de manhã. Não tem ninguém de bom humor — a Bia defendeu seus conterrâneos.

— Pode ser. Eu trabalho à noite. Nos horários que eu dirijo, o trânsito é menos complicado. — Ele se virou de frente para o apartamento, se apoiando no peitoril da janela e voltando ao assunto. — Não é muito difícil ligar os pontos, você tá se separando e quer que eu assuma a paternidade da Alícia. O seu ex-marido tá querendo ficar com as suas filhas. É isso?

— Na quinta-feira, eu recebi um telefonema do meu advogado. A audiência pra decidir a guarda delas vai ser no final de janeiro, e ele me avisou que o Diego entrou com o pedido de guarda unilateral. Isso quer dizer que eu só vou poder ver as meninas em fins de semana alternados, e que todas as decisões sobre a vida delas vão ser única, e exclusivamente, dele. — Ela já tinha perdido quase tudo na vida, os pais, o marido, a melhor amiga, sem contar sua dignidade e autoconfiança, e agora corria o risco de perder as filhas também. O simples ato de conversar sobre a possibilidade era demais, e a sala ameaçou rodar. — A gente pode sentar?

— Claro. — O Lourenço deve ter percebido, porque segurou o braço dela até eles chegarem ao sofá, onde assumiram a mesma posição de antes. — Mas Bia, ele não tem chance, tem? Eu não entendo nada desse assunto, mas a mãe só perde a guarda dos filhos em caso extremo, não é verdade?

— É verdade, mas o Diego tem um caso muito extremo pra basear o pedido dele. Minha tentativa de suicídio.

O Lourenço arregalou os olhos e abriu a boca, mas não emitiu nenhum som.

— Eu não tentei me suicidar, Lourenço — a Bia o tranquilizou. — Eu nunca ia fazer isso com as minhas filhas. Logo eu que tô sentindo na pele o que é perder a mãe numa tragédia... — Sua voz engasgou e ficou difícil falar com o nó na garganta, mas ela tentou não se desesperar e seguiu em frente. — Eu que sinto falta dela todo dia. Eu que não tenho coragem de apagar as mensagens dela do meu celular, só pra poder ouvir a voz dela de vez em quando. Eu nunca, nunca ia fazer a mesma coisa com as minhas filhas de propósito. Foi um acidente!

Ela foi tomada por outro acesso de choro, mais violento que o primeiro, um peso se assentando no seu peito, lhe roubando a respiração.

— Calma. — O Lourenço a abraçou de novo. — Respira, Bia, respira.

Ela tentou seguir o exercício da doutora Clarisse. No começo, foi difícil respirar no ritmo certo, mas, aos poucos, sua visão foi clareando, e ela voltou a ter noção de onde estava, no sofá com o Lourenço que a segurava com força, a balançando levemente para a frente e para trás, como ela fazia quando queria consolar as filhas.

— Ninguém acredita em mim — ela falou baixinho, mas sabia que ele estava escutando porque sua cabeça estava deitada no ombro dele. — Eu tô tão cansada de me defender e ninguém acreditar em mim.

— Nem o seu irmão?

— Ele diz que acredita, e eu sei que ele tá sendo sincero, mas eu percebo como ele dá um jeito de ficar mais lá em casa que na casa dele e quando percebe que eu não tô num momento bom, larga tudo pra vir ficar me rondando. E eu nem consigo ficar chateada, eu entendo. Somos só nós dois e as meninas, agora.

— Os seus avós? — o Lourenço perguntou, passando as mãos pelas costas dela.

— Já faleceram. Tem o tio João Carlos, irmão do meu pai, mas ele é pai da Vivi. Ele me liga, às vezes, mas ficou meio estranho. — A Bia suspirou. — A Vivi é filha única. Lógico que os pais têm que ficar do lado dela.

— Bia. — O Lourenço a afastou e segurou seu queixo. — Eu acredito em você.

— Você acredita? — Ela prendeu a respiração, esperando a resposta.

— Você mesma disse que sempre foi honesta comigo, eu não tenho motivos pra começar a duvidar de você logo agora.

— Bom... — Ela soltou o ar num suspiro. — Teve a vez que eu esqueci de tomar o anticoncepcional e não te contei.

— Mas você ia me contar, não ia? Naquele domingo, antes da campainha tocar, você tinha uma coisa pra me contar e você estava tão nervosa.

— Eu ainda não tinha certeza. — A voz dela saiu pequena. Aquele dia era outro que tinha uma página especial no seu álbum de dias que ela preferia esquecer. — Eu ia pedir pra você ir na farmácia comprar um teste de gravidez pra gente fazer junto.

O olhar do Lourenço se perdeu por cima do seu ombro por alguns segundos, provavelmente imaginando, da mesma maneira que ela tinha feito milhões de vezes, como tudo teria sido diferente se aquela campainha não tivesse tocado. Ele respirou fundo e voltou sua atenção para ela.

— Me conta, então, como foi esse acidente.

O fato de ele ter dito a palavra 'acidente' sem a pequena inflexão que as pessoas que duvidavam dela costumavam usar para lhe dar uma cutucada nada sutil, foi o que lhe deu calma para continuar. Ela pegou outro lencinho de papel, e depois de limpar debaixo dos olhos, começou.

— Nessa época, eu já tinha me livrado de quase todos os remédios. Eu só tinha um calmante leve e o sedativo que eu ainda precisava pra dormir. Depois que o Diego e a Vivi foram embora, eu tomei o calmante, porque eu tinha que voltar pro aniversário, mas eu sempre fui super responsável com a minha medicação. Eu tive consciência que eu não podia dirigir e chamei um Uber e consegui ficar na festa com as meninas, sem ninguém perceber nada. Eu também não avisei o Fred. A esposa dele tinha um jantar de trabalho importante, um que eu sabia que ele não ia pensar duas vezes em não ir pra ficar comigo. Eles estavam tendo problemas no casamento, eu não quis dar motivos pra eles brigarem e achei melhor esperar até o dia seguinte pra contar pra ele. De noite, depois que as meninas foram dormir... eu não sei porquê, eu tive a maravilhosa ideia de abrir uma garrafa de vodca.

Na verdade, ela sabia o porquê. Ela nunca tinha se sentido tão sozinha na vida e lembrou do Lourenço e da comparação de como perder os pais era ficar sem a nossa rede de segurança. O que fez a Bia doer de saudade do colo da mãe, de poder deitar a cabeça no ombro dela e escutar que ela não estava sozinha, que as duas iam passar por tudo, juntas. Mesmas palavras que ouviu quando receberam a confirmação que ela estava grávida da Alícia. As lembranças a levaram de volta até a noite em que tinha conhecido o Lourenço. A noite que ela não se lembrava de quase nada porque a vodca tinha criado grandes buracos negros na sua memória.

E por que não tentar esquecer o desastre que aquele dia tinha sido? Daí, a vodca.

Só que o Lourenço não precisava saber daquilo. A Bia não estava pronta para admitir que num dos piores momentos da sua vida, tinha sido para ele que seus pensamentos voaram. E não tinha sido a primeira vez.

— Eu não bebi muito, dois dedos da garrafa, no máximo. Quando eu comecei a ficar tonta eu percebi a estupidez do que eu estava fazendo. As meninas estavam em casa, e eu não podia ficar bêbada sozinha com elas. O problema todo foi o remédio pra dormir. — Ela o olhou pronta para ver o julgamento no rosto dele, mas como na hora em que ela achou que ele fosse falar mal do Diego, o Lourenço continuou calmamente esperando que ela continuasse. — Eu escovei os dentes, e sem pensar, porque era hábito, eu tomei um comprimido. Por causa do álcool, o sedativo fez efeito contrário e depois de me revirar na cama, eu me lembro de pensar 'claro que eu não consigo dormir, eu esqueci de tomar o remédio', e eu levantei e tomei outro. Na minha confusão mental, eu fiz isso mais três vezes, a gente sabe por causa da contagem dos remédios que sobraram na cartela. O médico que me atendeu mesmo disse que a dose não foi o suficiente pra eu correr risco de vida, só pra me fazer passar muito mal.

— E como você foi pro hospital?

— Eu percebi que tinha alguma coisa errada e eu mesma liguei pro Fred. Ele mora na casa que era dos meus pais, pertinho de mim e, graças a Deus já tinha voltado do tal jantar. Em menos de cinco minutos ele estava no meu quarto, me fazendo vomitar. Eu não me lembro muito dessa parte. Eu sei que eu fui de ambulância pro hospital e, como o Fred não sabia de nada, ele ligou pra Vivi ir pegar as meninas.

— E o seu ex-marido estava com a sua prima — o Lourenço concluiu.

— Na hora que o Fred me contou que tinha ligado pra ela, eu fiquei foi com raiva porque eu não queria que eles tivessem a satisfação de achar que eu tinha tentado me matar por causa do que tinha acontecido. O que eles acham, claro. Mas se eu perdi os meus pais sem fazer besteira, não era por causa deles que eu ia fazer! Só depois que eu voltei pra casa e o Diego disse que não ia trazer as meninas de volta, que eu não estava em condições de cuidar delas, foi que as implicações do que parecia que eu tinha feito começaram a me assustar.

— Mas você tá com as meninas? — O Lourenço se inclinou para frente, preocupado.

— Elas estão comigo. Eu não sei o que o Fred disse pro Diego, mas ele saiu lá de casa e voltou com a Amanda e a Alícia e mandou eu não me preocupar, que enquanto um juiz não desse a ordem, ninguém ia tirar elas de mim.

— E agora o juiz pode dar a ordem.

— A chance é grande. — A Bia engoliu o nó na garganta e suavizou a voz para continuar com a próxima parte. — Lourenço, o fato de você provar que é pai da Alícia, não tira o mérito do pedido do Diego de ficar com ela. Ele não é o pai de sangue, e isso não é segredo pra ninguém, mas ele é o único pai que ela conheceu a vida toda. Mas o advogado acha que fica melhor pra mim, como mãe, ter uma prova de quem é o pai da minha filha. Me faz parecer menos irresponsável, você entende?

— Entendo. Você não é a vadia que dormiu com um monte de cara e não faz ideia com qual fez um neném.

— Eu não acho que o Diego vá descer tão baixo, mas o advogado acha melhor a gente se precaver por todos os lados. — A Bia sentiu o rosto queimando. — E eu confesso que tem uma pontinha de vingança minha também. O Diego sempre quis adotar a Alícia, e eu sempre repeti pra ele que só você podia abrir mão de assumir a paternidade dela, mas você sabia que, se acontecer alguma coisa comigo e a certidão da Alícia não tiver o nome do pai biológico, o Diego tem o direito de abrir um processo de adoção sem que ninguém nem precise comunicar nada a você?

— Mas não vai acontecer nada com você.

— A gente nunca sabe, Lourenço. A gente nunca sabe o que vai acontecer amanhã. E o Diego e a Vivi estão se achando os donos do mundo, alguém precisa mostrar pra eles que nem sempre vai ser tudo do jeito que eles querem. Me desculpa por estar usando você na minha tentativa de rebelião.

— Você não tá me usando, se é a minha vontade também. — Ele sorriu, mas franziu a testa e ficou sério, novamente. — Mas, Bia? Eu ter sido preso não pode te atrapalhar?

— O doutor Lemmer, meu advogado, me garantiu que não. Você errou, mesmo que duas vezes, mas pagou o que a justiça mandou você pagar. Foi por isso que eu precisei saber se você não tá fazendo nada de errado, Lourenço, porque o Diego vai procurar, e se tiver alguma coisa, ele vai achar.

— Ele pode procurar o tanto que ele quiser. — O Lourenço se encostou no sofá, uma expressão de desafio no rosto. — Ele não vai achar nem caixa dois.

— Eu fico feliz em saber. Não porque me beneficia. Eu sempre achei que você se colocava pra baixo, procurava atalhos que você não precisava pegar. Você só precisava acreditar um pouco mais em você mesmo pra conseguir tudo que você quisesse.

— E você também. — Ele voltou a envolver suas mãos, que pareciam tão pequenas e frágeis entre as dele. — E é por isso que eu vou fazer o que você quiser que eu faça pela Alícia, mas eu vou fazer mais. Eu vou fazer tudo o que eu puder por você também. Pra te ajudar a não perder nenhuma das suas filhas. Qual a sua melhor chance?

Há tempos seus olhos não se enchiam de lágrimas por outro motivo que não fosse tristeza, ou qualquer outra emoção ruim, mas naquele momento, ela chorou por esperança e gratidão de ter mais alguém disposto a ficar do seu lado naquela briga que não seria fácil.

— O problema é que, mesmo que eu não tenha tentado me suicidar, um acidente com álcool e sedativos, por si só, é péssimo. Pra provar pro juiz que não existe chance disso se repetir, a estratégia do meu advogado é eu fazer exames de sangue regulares de agora até o dia da audiência, mostrando que eu tô livre de qualquer dependência química e apresentar o relatório de um psicanalista mostrando que a minha saúde mental é estável. Álcool não é problema, eu quase não tomava nada, uma taça de vinho ou champanhe numa ocasião especial. Eu já estava trabalhando com a doutora Clarisse, minha terapeuta, pra reduzir os remédios aos poucos, e tem uma semana que eu tô a zero.

Uma semana que ela não dormia, nem comia direito, que seu humor ia de um extremo ao outro sem aviso prévio, sem contar os tremores, suores e dores de cabeça. Sintomas que ela aguentaria por quanto tempo fosse necessário, desde que aquilo significasse ficar com as filhas.

Se fosse tão simples e fácil...

— Eu só não posso ter uma recaída — ela confessou seu pior medo.

— Então, se prepara, Biatriz com 'i'. — O Lourenço deu dois tapinhas na sua mão — Se não ter uma recaída é o que você precisa, no que depender de mim, você já ganhou a guarda das suas filhas.

Ele sorriu confiante, e a Bia balançou a cabeça, divertida. Como se todos os seus problemas fossem se resolver apenas porque ele tinha decretado que assim seria.

Mas o pior, é que ele estava tão seguro, que ela também acreditou que aquilo era possível e, pela primeira vez em um longo tempo, ela se sentiu leve. Seu navio flutuando sem esforço, num mar calmo e, se os icebergs não tinham desaparecido, pelo menos, eles não pareciam mais tão ameaçadores.

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