Capítulo 24
— Quem é você, e o que você fez com a minha irmã? — O Fred virou o braço da Bia de um lado para o outro, estudando a tatuagem por todos os ângulos.
— Você não gostou? — ela perguntou sentada no chão do seu closet, afundada em uma pilha de roupas que ela tinha parado de usar, mas, quem sabe ela não tomava coragem?
O estêncil do Renê tinha incluído uma margarida com algumas pétalas caindo por cima da frase, que ele a deixou à vontade para não tatuar, se ela não quisesse, mas tinha ficado perfeito, e ela não podia estar mais orgulhosa de si mesma. Por ter tido coragem de fazer uma coisa que ela quis por tanto tempo. Por ter conseguido seguir o conselho do pai e ter marcado sua pele com uma homenagem que ela levaria com honra para sempre.
Chegando em casa, depois de almoçarem juntos — e aparentemente, andar de moto abria o apetite, porque ela até conseguiu comer um pedaço de peito de frango com sua costumeira salada — ela e o Lourenço foram direto para o quarto.
Cada um para o seu, claro.
Ele para checar se não tinha aparecido nenhum problema de última hora com os bares, e a Bia aproveitando para dar uma reorganizada nas suas roupas.
— Da frase da mamãe na letra do papai? — O Fred soltou o braço dela e coçou a barba. — Claro que eu gostei, mas eu te deixo sozinha uma manhã com seu ex-namorado e você me volta com uma tatuagem?
— O que eu posso dizer? Eu tô me sentindo aventureira, hoje.
— Tô vendo. Eu queria te fazer uma pergunta. — Ele sentou do seu lado. — Na verdade, duas.
O tom de voz cauteloso do irmão fez com que ela largasse a blusa que estava examinando e desse toda a sua atenção a ele.
— Ontem, na piscina, eu vi a tatuagem do Lourenço. — Ele colocou a mão no peito, não deixando dúvidas sobre a qual tatuagem ele estava se referindo. — Eu pensei que ele tinha feito por causa da nossa Alícia e não ia falar nada, mas ele percebeu a minha curiosidade e disse que era uma homenagem pra mãe que tinha morrido?
— A Alícia ouviu? Ela achou estranho? — Ela agarrou o braço do irmão, o coração saindo pela boca.
— Ela ouviu e achou engraçado a coincidência, mas não, Bia, ela não desconfiou que o nome dela também é uma homenagem pra avó, mas por que você nunca contou pra gente de onde você tirou o nome da Alícia?
— Óbvio, né, Fred? Vocês iam tentar me fazer mudar de ideia. Sem saber de nada, a mamãe já não parava de me perguntar porque Alícia e não Alice.
— Até aí, tudo bem, mas por quê? Você estava com tanta raiva dele, por que você escolheu um nome tão ligado a ele?
A Bia pegou um dos seus vestidos largos e jogou na pilha de doação. Ela podia contar a história da conversa em que o Lourenço tinha dito que se algum dia eles tivessem uma filha, ela teria o nome da mãe dele, mas aquilo explicava a origem do nome e não do porquê da escolha.
— Todo mundo só sabia me mandar esquecer. — Sua voz saiu pequena. Ainda era difícil falar sobre aqueles dias. Ela limpou a garganta antes de continuar. — Eu não queria estar sentindo aquela mágoa, aquela raiva toda, mas eu não me sentia pronta pra me desligar dele totalmente e... não, eu não queria esquecer. Eu escolhi Alícia pra me lembrar dele cada vez que eu chamasse por ela. Pra não esquecer.
— Até parece que precisava. — Ele deu um meio sorriso. — A menina é a cara dele.
— Mas eu não sabia disso enquanto ela estava dentro da minha barriga, sabia?
— Você tá certa. — O Fred passou as mãos pelos cabelos, bagunçando tudo, deixando o cansaço dele mais evidente. — Mas não tem mais nada, tem, Bia? Tem alguma outra coisa que você não tá me contando?
Por alguns segundos, ela gelou. Será que ele descobriu as duas cartelas de comprimidos escondidas? Mas ele estava se referindo ao passado dela com o Lourenço, e ela relaxou. Ele não precisava saber dos remédios. Ela tinha conseguido resistir à tentação de tomar o calmante depois da discussão com a Vivi, não tinha? Não era como se ela tivesse a intenção de usá-los, ela só precisava da segurança de saber que eles estavam lá.
— Não. Pelo menos, eu não tô me lembrando de nada importante sobre o Lourenço que você precisa saber, mas se eu lembrar, eu te conto, pode deixar. E qual a segunda pergunta?
— Não é bem uma pergunta, é mais um convite...
A Bia desceu do carro se segurando na porta tentando se equilibrar no salto alto afundando nas pedrinhas soltas que revestiam o estacionamento.
Na hora que o Fred mencionou a confraternização de Natal da clínica, usando o argumento das visitas para eles não passarem a noite de sábado em casa, por alguns segundos, a Bia cogitou recusar.
Não era certo uma pessoa que estava passando por tantos problemas, como ela, se sentir de nenhuma outra maneira que não triste, deprimida e arrasada, não é verdade? Mas, com firmeza, ela respirou fundo e afastou os pensamentos angustiantes. A cada dia, ficava um pouco mais fácil não se afundar na velha culpa que, às vezes, a atingia quando ela se sentia quase... ela não poderia usar a palavra feliz, mas contente ou entusiasmada.
Até porque se diversão fosse exclusividade de quem não tem problema nenhum, que droga de vida todo mundo teria.
Se o irmão tinha mencionado a festa da clínica, era porque ele queria muito ir. O que era normal. Ele ficava mais tempo lá que em casa, e alguns dos companheiros de trabalho, ele considerava bons amigos. E mesmo se a Bia não concordasse que seria um tédio obrigar o Lourenço e a Mariana a passar o sábado à noite em casa, ela não teria se recusado a ir ao bar na Lapa.
Com a morte dos pais e a traição do marido e da prima, sua vida social tinha ficado reduzida praticamente à zero. Foi iniciativa do próprio Fred ficar em casa com ela nas noites de sábado depois que as meninas começaram a passar os fins de semana com o Diego. Como homem, recém-separado, claro que o irmão devia ter vários rolos, mas ele era discreto e, por mais que a Bia insistisse que estava bem e que ele podia sair com os amigos, ele nunca deixava transparecer que preferia estar em outro lugar que não comendo pizza e vendo filme, com ela.
Como não fazer a vontade de um irmão daqueles?
— Vamos? — O Fred trancou o carro e ofereceu o braço para a Bia.
Pelo bem da sua saúde, ela ficou satisfeita de ir andando na frente com o irmão. Quer dizer, não era normal alguém ficar com o coração num ritmo acelerado constante por causa da aparência de alguém, era? A roupa do Lourenço não era muito diferente do que ele tinha usado nos últimos dias, mas, por algum motivo, a calça cinza escura parecia se agarrar com mais atrevimento às curvas das pernas grossas e quadris estreitos, e a camisa azul-marinho com finas listras vermelhas, realçava mais que o normal o físico impecável por baixo.
Na entrada do casarão de fachada antiga em um tom de laranja vibrante com detalhes brancos em volta da porta e janelas, a Bia alisou a saia do vestido preto, que ela tinha escolhido porque a faixa de amarrar na cintura disfarçava como ele se ajustaria melhor no seu corpo se fosse uns dois números menor, e se prometeu relaxar. Sua única restrição era a bebida, que realmente não lhe fazia falta. Em todo o resto, ela era livre para fazer suas próprias opções. Ficar sentada a noite inteira, ou se aventurar na pista de danças, a escolha era só sua.
Depois de atravessar um pequeno vestíbulo, eles entraram num salão amplo, de iluminação indireta, dominado pela pista de danças, onde vários casais deslizavam ao som da música de gafieira vinda dos alto-falantes. Um cartaz na entrada tinha prometido show ao vivo, mas no palco vazio, os instrumentos ainda estavam à espera dos músicos.
A Bia procurou por um grupo grande de pessoas que poderia ser o pessoal da clínica, mas os únicos lugares de sentar eram os bancos altos, quase todos desocupados, acompanhando o contorno do bar com fileiras e fileiras de garrafas de bebida refletidas na parede de espelho por trás delas.
— Lá em cima — o Fred falou perto do seu ouvido, a guiando em direção às escadas ao lado da porta de entrada.
Alguém devia ter mandado uma mensagem para o irmão com a localização exata do grupo. Ele zigue-zagueou com segurança pelo burburinho e risadas das pessoas sentadas nas mesas ajuntadas de qualquer maneira pelo salão do segundo andar, passou pela porta que levava ao terraço e foi direto até à mesa comprida onde a Bia avistou vários conhecidos.
— Chega de bagunça, crianças! O patrão chegou! — um homem que ela não conhecia gritou, assim que os viu.
Ele recebeu uma chuva de bolinhas de guardanapo de papel e vaias que se misturaram ao coro de cumprimentos de boas-vindas a eles.
— Boa noite, todo mundo! — o Fred gritou de volta. — Pra quem não conhece, essa é a minha irmã, Biatriz.
A Bia deu um aceno geral. Na época do pai, ela costumava participar das comemorações da clínica com mais frequência, mas dois anos era muito tempo e vários rostos novos, e curiosos, a encaravam de volta.
— E essa é a Mariana e o irmão dela, Lourenço. Amigos nossos. — O Fred se virou para o trio parado ao lado dele. — É muita gente. Eu vou apresentando pra vocês, aos poucos.
No meio da movimentação de juntar mais uma mesa, achar cadeiras extras e cumprimentar quem estava perto, a Bia escutou seu nome e levantou a cabeça para a mulher sorridente, acenando para ela se aproximar, lá da outra ponta da mesa.
— Eu vou falar com a Milena. — A Bia tocou o braço do irmão, que concordou com um aceno de cabeça distraído, enquanto puxava uma cadeira para a Mariana.
A Milena era com quem a Bia costumava ter mais contato na clínica. Ela era secretária do pai, e agora do Fred, e na época em que a Bia trabalhava no Galpão e precisava de algum favor, fosse remédio, material de curativo ou uma vaga para uma cirurgia gratuita na clínica, era a Milena quem cuidava da logística e fazia tudo acontecer.
— Bia! — A Milena a recebeu de braços abertos quando ela finalmente chegou depois de ser parada por vários conhecidos querendo cumprimentá-la. — Quanto tempo!
— Eu sei. — A Bia a abraçou com cuidado para não apertar o barrigão da gravidez entre elas. — Desculpa eu não ter ligado pra dar os parabéns, mas...
— Você não precisa explicar. — A Milena segurou o braço da Bia com um sorriso compreensivo no rosto. — Eu entendo. E hoje não é dia de falar de coisas tristes!
— Me desculpa, mesmo assim. Eu fiquei muito feliz, de verdade, quando o Fred me contou.
— Obrigada. Você lembra do meu marido, Roger? — Ela apontou o homem ao lado dela, também de pé.
— Claro. — A Bia trocou dois beijinhos com ele. — Tudo bem?
— Tudo bem, doutora Biatriz, e você?
— Por favor, Biatriz. Ou Bia.
— Combinado, Bia. — Ele apontou a cadeira dele para ela sentar. — Eu tô indo pegar uma cerveja. Os garçons esqueceram da gente aqui fora. Você aceita uma bebida?
— Por enquanto, não, obrigada — a Bia aceitou só a cadeira.
Pelo menos até ele voltar. O Lourenço e a Mariana não conheciam ninguém. Era obrigação dela e do Fred fazerem companhia para eles, embora eles não parecessem estar precisando. A Bia observou os dois irmãos numa conversa animada com o companheiro do doutor Ângelo, o Elias, enquanto o Fred cochichava baixinho com uma loura que ela não reconheceu.
— É a Naiara, da contabilidade — a Milena explicou, notando seu olhar. — Se as fofocas da clínica não falharem, você e ela ainda vão ser muito íntimas.
A Bia tentou não se entusiasmar. Fofoca de ambiente de trabalho era quase sempre só aquilo, fofoca, mas que o irmão ia precisar passar o relatório completo sobre a Naiara depois, ele ia.
— Você lembra de mim, doutora? — Uma moça estendeu a mão pela frente da Milena. — Aline?
— Claro, Aline. Você é enfermeira, né? — Ela retribuiu o aperto de mão e repetiu o mesmo pedido que fez ao Roger. — Por favor, nada de doutora. Só Biatriz. Ou Bia.
— Enfermeira chefe, agora, Bia — ela informou toda orgulhosa, mas antes que a Bia pudesse parabenizá-la pela promoção, ela apontou a moça sentada ao lado dela. — E essa é a Raíssa. Ela é minha amiga de infância e tem um mês que ela tá trabalhando de recepcionista na clínica.
— Prazer, Raíssa. — A Bia também apertou a mão da moça.
— E você se lembra do doutor Henrique. — A Milena apontou para trás da Bia que se virou na cadeira com um pulo.
— Meu Deus, me desculpa! Eu dei as costas pra você. Tudo bom, doutor Henrique?
— Sem doutor, por favor — ele imitou o pedido da Bia com um sorriso largo emoldurando a fileira de dentes perfeitamente branquinhos contra a pele morena escura. — E não precisa pedir desculpas. Eu que tô acostumado ainda fico meio tonto quando junta todo mundo, imagina você.
— É verdade, Henrique. Eu não me lembrava que era tanta gente. — A Bia correu os olhos pela mesa comprida, se focando nas cadeiras perto deles. — E a sua esposa... Júlia? Não veio?
— Sem esposa. — Ele levantou a mão esquerda, balançando o dedo que deveria estar com a aliança, mas não estava. — Divórcio.
— Oh... Eu sinto muito.
— Eu não. Às vezes, é a única solução.
A Bia concordou com um balançar de cabeça silencioso e compreensivo.
— E as meninas? — A Milena tocou o ombro da Bia, que se voltou para ela, tomando cuidado para não dar as costas para o Henrique de novo. — Você nunca mais levou elas na clínica. Elas devem estar enormes.
— Elas estão. Enormes e muito bem, obrigada. Elas estão na casa do pai.
— E que pai! — A Aline se abanou com exagero e se virou para a amiga. — A Bia era casada com o Diego Valdez, o ator.
— Nossa! — A Raíssa arregalou os olhos para a Bia. — Eu sou super fã dele!
A Bia repuxou os lábios num sorriso forçado. Nove anos de situações como aquela e ela ainda não sabia como responder aquele tipo de comentário.
— Mas se a gente não tem mais aquele rosto bonito pra ficar admirando... — a Aline continuou, passando a mão pelo decote acentuado da blusa, com os olhos perdidos na outra ponta da mesa. — Você deu um jeito de arranjar um substituto à altura.
A Bia acompanhou a mira gulosa da moça até o Lourenço que, como se tivesse sentido seu olhar, a olhou de volta com um pequeno sorriso.
— Substituto? — A Bia retornou sua atenção para a Aline. Talvez, eles não tivessem ouvido a apresentação do Fred, ou tivessem visto a bendita foto na internet. — Não. O Lourenço, e a irmã, a Mariana, são só amigos nossos. Eles moram em Porto Alegre e estão passando uns dias lá em casa.
— Só amigos? — A Aline deu uma olhada rápida para a Raíssa, antes de voltar a encarar a Bia. — Quer dizer, então, que não tem problema a gente ir lá, se apresentar pra ele?
O estômago da Bia se encheu de chumbo e ela se deu um puxão de orelhas. Primeiro, ela não devia estar surpresa pelo interesse que o Lourenço estava causando, não só para as duas assanhadas, mas para todas as mulheres em volta deles que tinham dois olhos que funcionavam. E segundo, não era da sua conta e melhor assim.
— Claro que não tem problema. — A Bia forçou o sorriso a ser o mais sincero possível.
— E como vocês vão decidir quem fica com ele? — A Milena se recostou na cadeira com uma expressão divertida. — Ele escolhe, ou vocês tiram no par ou ímpar?
— Ele pode escolher, se ele quiser. — A Aline também se recostou na cadeira, mas a expressão dela era pura safadeza. — Ou ele não precisa escolher, se não quiser.
O braço que ela passou por trás da cadeira da amiga deixou bem claro as más intenções das duas. A imagem delas ajoelhadas na frente do Lourenço com as mãos entranhadas pelos cabelos de cada uma, passou como um flash na mente da Bia, mas ela a afastou.
Continuava não sendo da sua conta. E melhor assim. Melhor! Assim!
— Quem vai escolher o quê? — O Roger voltou acompanhado por um garçom, que colocou duas garrafas de cerveja, uma água mineral e alguns copos limpos, na mesa. A Bia se preparou para devolver a cadeira, mas ele tinha trazido outra com ele, que espremeu na quina da mesa entre a esposa e a Aline.
— Melhor você não saber! — A Milena não pareceu muito feliz de ver o marido ao lado da moça, e se dirigiu a ela. — Você não tem vergonha de admitir essas coisas assim, em voz alta?
— Super normal, hoje em dia. E você pode ficar calminha. — A Aline estreitou os olhos. — A gente não brinca com homem casado. Nem com colega de trabalho. Desculpa, doutor Henrique. — Ela fez um beicinho na direção do homem em questão, como se fosse só aquilo que a impedisse de estar pulando no pescoço dele.
— Eu entendo. — Ele devolveu o beicinho, mas não parecia pesaroso com a rejeição.
As gargalhadas da Mariana, do Elias e do Lourenço viajaram pela mesa comprida, puxando o olhar da Bia de volta para ele. E ela teve a ideia mais brilhante da noite. Ou a mais idiota. Mas antes que pudesse decidir qual das duas opções era a verdadeira, ela se virou para a Aline.
— Eu posso apresentar ele pra vocês, se vocês quiserem. Mas eu preciso avisar que ele não é casado, mas é comprometido. Ele e o Roberto, companheiro dele, estão juntos há muito tempo.
***
Votação: levanta a mão quem acha que isso vai chegar no ouvido do Lourenço.
Quinta tem capítulo novo pra vocês descobrirem quem acertou. Espero vocês, bjs.
Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top