Capítulo 22

— Ei.

A Bia deu um pulo com alguém sentando no chão do lado dela e levantou o rosto, limpando as lágrimas e encarando o Lourenço, que a olhava de volta com a testa franzida de preocupação. Ela não tinha percebido a porta abrir e ele entrar. Os nomes dele e da Mariana estavam na sua lista de pessoas aprovadas na portaria, e eles podiam ir e vir sem ter que esperar por permissão, ou aviso, para entrar no condomínio.

— O que foi? Por que você tá chorando? — ele perguntou, a obrigando a desdobrar as pernas, a examinando de cima a baixo como se fosse encontrar algo fisicamente errado com ela.

— Não aconteceu nada — ela o tranquilizou. — Tá tudo bem.

— Tô vendo. — Ele deu uma risada irônica, passando o braço pelos ombros dela e a puxando para ele.

Sua razão dizia que era melhor se afastar, mas, pego num momento de fraqueza, por conta própria seu corpo se aconchegou no calor gostoso, a cabeça deitou no ombro sólido, o braço se enroscou pela cintura de músculos firmes, e ela respirou fundo, se acalmando com o cheiro familiar e confortável.

— Foi o Diego, não foi? Eu queria ter ficado, mas o Fred disse que era melhor não provocar o seu marido e...

— Ex-marido! — a Bia gritou e imediatamente se arrependeu, levantando o rosto e olhando o Lourenço. — Desculpa. Eu tô nervosa, mas eu não devia ter gritado. Só, por favor, nunca mais chama ele de meu marido?

— Tá certo. Desculpa também. Eu não chamo mais. — Ele puxou a cabeça dela de volta para o ombro dele e ela foi sem resistência. — Me conta, então, o que o playboy aprontou agora?

Foi impossível não sorrir ao ouvir o velho apelido do Lourenço para o Diego.

— Não foi ele. Quer dizer, foi ele e as vingancinhas infantis dele. Ele mandou a Vivi pegar as meninas.

— Puta merda! — o Lourenço xingou. — Eu devia ter ficado. Eu não devia ter escutado o seu irmão.

— Não é culpa sua. Nem você, nem o Fred, podiam ter adivinhado. — A Bia deu dois tapinhas no peito dele para acalmá-lo, embora soubesse que o irmão também ia se recriminar por não ter previsto o comportamento óbvio e característico do Diego. Mas não era como se ele pudesse não ter ido fazer a cirurgia. E foi melhor o Lourenço não estar lá. A cena ia ser pior e, talvez, não tivesse sido possível esconder a discussão das meninas e elas poderiam acabar escutando algo que não deviam. — Nem foi tão horrível assim, e só que...

— É só que o quê? — ele a incentivou quando a pausa se alongou demais.

— É sempre igual quando eu vejo a Vivi. Pelos dois primeiros segundos, eu esqueço o que aconteceu, o meu primeiro impulso é sentar com ela, conversar e desabafar. Aí vem tudo de uma vez. Eu me lembro da traição e é como se eu perdesse ela outra vez e... eu me sinto tão sozinha. Mas eu acho que eu tenho que me acostumar, né? A ser sozinha?

— Não, você não tem que se acostumar. — Ele apertou o braço passado pelos ombros dela. — Eu tô aqui. E eu vou sempre estar aqui quando você precisar de mim. Eu sei que não é a mesma coisa, que vocês mulheres têm os segredinhos de vocês, mas a gente conversava sobre tudo, lembra? Você pode conversar comigo toda vez que precisar.

— Obrigada — a Bia agradeceu pela sinceridade da oferta, embora soubesse que não podia aceitar. Se abrir com um namorado era diferente de se abrir com o homem que você estava lutando para manter uma certa distância. Não que houvesse qualquer distância entre eles naquele momento. Ela estava praticamente deitada no peito dele, como tantas outras vezes. E talvez, tenha sido o eco daquelas vezes que incitou a confidência a escapulir dos seus lábios. — Eu não lembro se eu te contei do dia que eu conheci o Diego?

— Não — ele respondeu num tom de voz que não demonstrava se aquela era uma informação que ele gostaria de ter ou preferia não escutar.

Acompanhando o contorno do desenho do jacaré desenhado na camiseta dele, sentindo as batidas firmes e calmas do coração por baixo da ponta do dedo, a Bia começou a contar.

— Foi num churrasco. Eu e a Vivi vimos o Diego ao mesmo tempo, e nós duas nos interessamos por ele, mas ela falou primeiro e eu, como boa amiga, deixei os dois sozinhos quando ele veio conversar com a gente. — Apesar do tempo, a Bia conseguia lembrar perfeitamente daquela tarde, o som do pagode, o cheiro de churrasco no ar, o tom verde da camisa gola polo do Diego, quase igual aos olhos que tinham a hipnotizado, o peso no peito ao se afastar e deixar a prima com ele. — Mas ele não parou de perguntar por mim, e a Vivi me chamou de volta. Nós ficamos e começamos a namorar. Às vezes, eu fico pensando... se era pra os dois terminarem juntos, por que eles não ficaram juntos desde aquele dia, então? Pra que tanta volta, tanta mágoa?

— Eu não tenho uma resposta pra você, e sem querer desrespeitar o seu sofrimento, eu não posso dizer que eu preferia que tivesse sido diferente. — O Lourenço segurou o queixo da Bia e a obrigou a olhar para ele. — Se a sua prima fosse a namorada do playboy, não ia ser você quem ia estar naquele desfile em Copacabana.

O olhar do Lourenço foi no fundo da sua alma e, ao contrário da indiferença de mais cedo, imaginar a Vivi com ele, foi como engolir um quilo de vidro moído, arranhando a garganta, machucando, cortando tudo por dentro e, mesmo sem ter a certeza de que queria saber a resposta, a Bia foi incapaz de não perguntar.

— Você teria levado ela pra casa? — Sua voz saiu baixa e fraca.

A hesitação do Lourenço durou duas batidas do seu coração e com o endireitar de ombros dele, ela se preparou internamente para escutá-lo.

— Talvez — ele respondeu com o olhar firme e a Bia engoliu outros cinco quilos de vidro moído junto daquela verdade. Nem a carícia do polegar deslizando pelo seu maxilar amorteceu o golpe. — Mas uma coisa, eu te garanto, ia ter sido mais uma noite sem sentido, perdida com tantos nomes e rostos que, hoje, eu nem me lembro mais.

E tudo ficou certo no mundo outra vez.

— E se a gente não tivesse se conhecido, a gente não ia ter a Alícia — a Bia acrescentou, sem conseguir segurar o sorriso. Pela filha, ela passaria por tudo de novo, sem pensar duas vezes.

— A gente não ia ter a nossa filha — ele repetiu, devolvendo o sorriso. — Tirando o drama todo, a gente teve bons momentos, não é verdade?

— Muitos.

Eles se encararam por longos segundos. Ela não precisava ser vidente para saber que ele também estava repassando alguns daqueles bons momentos dentro da cabeça e, ao contrário de quando estava amortecida pela imagem da Vivi com ele, cada célula do seu corpo se acendeu com o polegar do Lourenço acariciando a pele sensível por baixo do seu lábio inferior.

Usando todas as suas forças e o restinho de sensatez que ela nem sabia que ainda possuía, ela se inclinou para trás.

Piscando várias vezes, como se estivesse acordando de um sono profundo, o Lourenço a deixou ir e o momento passou.

— Eu tenho uma surpresa pra você. — Ele ficou de pé, estendeu a mão e a ajudou a fazer o mesmo.

— Outro presente de Natal? — Ela aceitou a ajuda e alisou o amassado da saia do vestido, para não ter que encará-lo.

— Tá doida, Biatriz com 'i'? Quantos presentes de Natal você acha que eu vou te dar?

Uma gargalhada inesperada saiu dos seus lábios, todo o peso desagradável afastado pelo simples fato de escutar o apelido que parecia acender uma luz dentro dela quando ele a chamava daquela maneira.

— Então, não é um presente de Natal?

— Não. Digamos que é um presente de aniversário atrasado. — Ele percorreu seu vestido com o olhar, e ainda que tivesse sido uma inspeção inocente, a Bia ficou com a pele coberta de arrepios. — Mas você vai ter que trocar de roupa. Colocar um short ou uma calça. E não adianta perguntar. É surpresa.

— Tudo bem — ela concordou, se virando na direção das escadas, sem contestar. Ele nunca a tinha decepcionado com uma das surpresas dele, não seria diferente naquele dia. — Peraí.

Os pés da Bia se grudaram no chão. Da última vez que o Lourenço tinha feito uma exigência com sua roupa tinha sido...

Não! Não podia ser.

Podia?

Dando meia volta, ela correu até a porta e a abriu de uma vez.

A moto estava parada ao lado do seu carro. Ela continuava a não entender nada de motocicletas, mas daquela vez, o Lourenço tinha caprichado no modelo muito mais novo que o da outra vez, a tinta vermelha do tanque faiscando debaixo do sol, um capacete preto e um lilás descansando em cima do couro dos assentos.

Como ela não tinha escutado o ronco do motor? Mas ela não tinha nem percebido ele abrir a porta e entrar, quanto mais um barulho do lado de fora.

— Essa é uma parte da surpresa. — O Lourenço parou ao lado dela, com um sorriso divertido. — Onde a gente vai é que é importante.

— Onde você arranjou essa moto? — Ela estreitou os olhos para ele.

— Foi dureza achar um casal numa moto maneira, tá ligada? Pena que o capacete dela não era rosa com florzinha roxa. E a Mariana me ajudou. A gente seguiu o alvo até eles entrarem numa rua pouco movimentada e deu o bote. A Mari foi se livrar dos fuzis e desovar os cadáveres.

A imagem da Mariana com um fuzil na mão, rendendo duas pessoas com as mãos levantadas, era tão impossível que arrancou outra gargalhada inesperada da Bia. Ela riu tanto que lágrimas escorreram pelo seu rosto. Quando tinha sido a última vez que ela tinha chorado de rir? Ela não conseguiu se lembrar.

— Você tá precisando treinar melhor essa gíria carioca sua. Foi horrível. E agora, fala sério.

— É alugada — o Lourenço confessou a verdade.

— Se eu me lembro bem, essa é muito maior que a outra.

— Você não costumava duvidar das minhas habilidades, antes. — Ele revirou os olhos. — Eu tô acostumado. Eu tenho uma quase igual a essa em Porto.

— E você usa jaqueta de couro? — ela perguntou meio tonta com a cena que sua imaginação estava construindo naquele momento.

— Claro. Lá é frio.

Devia ter alguma coisa de errado com as mulheres de Porto Alegre. Como elas viam aquele homem andando de moto o dia inteiro, na frente delas, e nenhuma tinha conseguido agarrá-lo?

O Lourenço se abaixou e sussurrou no seu ouvido, o hálito morno se espalhando como uma carícia pelo seu pescoço.

— Eu comprei o capacete lilás pra você. É seu. Se eu vier pro Rio, eu vou trazer a moto comigo, e se você me pedir com jeitinho, eu te levo pra passear outras vezes.

Os joelhos da Bia ameaçaram falhar e ela se segurou no primeiro apoio que encontrou, o braço do Lourenço. O contato da sua mão na pele quente foi como jogar um fósforo aceso no mato seco, o fogo se espalhando pelo seu corpo em um segundo.

Ela estava suspensa num abismo, segura por um fio prestes a se romper e ela ia cair, sem controle, sem ter onde se segurar. Não tinha mais como negar, ela estava perdida. Como depois daquela primeira noite que ela tinha passado com o Lourenço, há dez anos, quanto mais ela tentava resistir, mais parecia inevitável.

Se, pelo menos, ele tivesse continuado com a indiferença de antes. Mas ela não podia continuar fingindo para ela mesma que não enxergava os sinais que ele estava lhe dando, a paquera disfarçada de brincadeira, o quase beijo e a maneira como ele tinha passado a olhar para ela, como um predador analisando a presa, esperando o melhor momento para atacar.

E por que não?

Os dois eram adultos e desimpedidos — tecnicamente, ela era casada, mas aquilo era um detalhe. Se eles queriam descobrir se a química entre eles continuava tão explosiva quanto antes, que mal havia?

As coisas entre eles tinham a tendência de terminar em desastre, e ela não estava forte o suficiente para sobreviver a outro fim de relacionamento dramático?

Mais um desastre entre eles poderia destruir o frágil relacionamento dele com a Alícia antes de começar?

Ele ainda não tinha se decidido se vinha morar no Rio, e qualquer ligação entre eles seria temporária? E mesmo que ele viesse, o que ela tinha para oferecer, além de problema em cima de problema, para um homem que tinha uma fila enorme de mulheres disponíveis e descomplicadas?

A lista de contras era expressiva demais quando comparada ao único pró: sexo da melhor qualidade.

Aquele fio não podia se romper. E não iria, se dependesse dela. Tudo estava bem da maneira que estava. Monotonia e previsibilidade sempre eram melhores que sofrimento e lágrimas.

— Bia? — O chamado do Lourenço a trouxe de volta ao mundo.

— Oi?

— Você vai ficar aí olhando ou vai trocar de roupa? Eu não tô querendo te apressar, mas a surpresa tem hora marcada.

O certo seria dizer que ela não podia ir. Inventar uma desculpa qualquer. Mas ele a olhava com um brilho de expectativa tão grande que ela não teve coragem de decepcioná-lo. E ela não ia morrer por causa de um passeiozinho de moto. Depois, ela guardava o capacete num lugar bem escondido, onde ela não o visse toda hora, correndo o risco de cair na tentação de 'pedir com jeitinho' um outro passeio.

Pronto. Resolvido.

— Tô indo. — Ela deu meia volta com o coração disparado dentro do peito e correu em direção à casa, gritando por cima do ombro. — Eu não demoro!

Agora era só ser forte o suficiente para seguir seu plano...

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