Capítulo 21
Quando o interfone tocou no sábado de manhã, o estômago da Bia deu um nó de nervoso. O Fred fazia questão de estar com ela na hora do Diego pegar as filhas e, mais que nunca, por causa da discussão do dia anterior, os serviços de para-raios do irmão seriam apreciados, mas ele tinha mandado uma mensagem logo cedo dizendo que tinha precisado ir à clínica fazer uma cirurgia de emergência e não tinha hora de voltar.
Sem problemas, ela tinha um plano para enfrentar o Diego sozinha. Era só conseguir fazer as filhas descerem rápido. Ele não arrumaria briga na frente delas.
— Não demora! O papai chegou! — a Bia gritou para as filhas correndo entre um quarto e outro, enchendo as mochilas de tralhas que elas não precisavam porque tinham tudo na casa do Diego, mas, como na praia, era melhor deixá-las levar o que quisessem que ter o desprazer do ex-marido voltando para buscar algo que a péssima mãe que ela era deveria ter usado sua bola de cristal e adivinhado que as meninas iam pedir.
O segundo toque da campainha a pegou no alto das escadas, mas ela não se apressou. Não era como se o Diego precisasse de permissão para entrar, o interfone era uma formalidade que ela só precisava atender porque a Berê, sua atendedora oficial de interfone, estava de folga no fim de semana.
As visitas também tinham dado um jeito de desaparecer. A Mariana foi passar o dia com uma amiga e o Lourenço pegou carona com ela para ir resolver uns assuntos, que a Bia desconfiava serem um pretexto para ele não estar lá quando o Diego chegasse.
No fundo, ela estava aliviada com a ausência dele. Além de poupá-la do que seria um encontro super constrangedor entre os dois homens, o quase beijo depois da aula de pintura, tinha deixado um clima estranho entre eles. Pelo menos, da parte dela, que tinha passado o resto da tarde anterior sem conseguir encará-lo, respondendo às perguntas dele com monossílabos e tentando se convencer que era bom como ele estava agarrado ao celular trocando mensagens, sem parar, com alguém.
Provavelmente, armando um esquema com a Barbie do shopping.
Ou o mais certo, no Tinder.
Por isso, depois do jantar, quando o Fred e a Mariana foram para casa dele trabalhar nos papéis da clínica, e as meninas pediram para ver um filme, a Bia já estava preparada para não esboçar nenhuma reação com o anúncio do seu hóspede de que ele ia sair. Afinal, que homem solteiro trocaria a noite no Rio de Janeiro pelo tédio de assistir TV com duas crianças e a mãe sem graça delas?
Aparentemente, o Lourenço. Que se jogou no sofá da sala de televisão como se estivesse em casa, o que deixou a Bia irritada e aliviada. E mais irritada ainda por estar aliviada.
Pela quinquagésima milésima nonagésima vez, eles assistiram Frozen e terminaram a sessão com a Alícia e a Amanda dormindo por cima deles, no sofá, e com o Lourenço declarando que aquele era o novo filme preferido dele. Quando a Bia riu, ele a olhou ofendido.
— Você acha que eu tô brincando? O príncipe é o vilão e o cara comum é que salva todo mundo!
— Quem salva todo mundo é a princesa — ela replicou.
— Concordo, mas com uma ajudinha do cara comum, que levou ela pro príncipe, mesmo sendo o oposto do que ele queria fazer porque era o que ela precisava.
A última coisa que a Bia queria, era ficar discutindo o enredo de Frozen com o Lourenço, ainda mais porque parecia que ele estava tentando passar algum tipo de mensagem oculta que ela suspeitava ser melhor ignorar. Ela mudou de assunto pedindo que ele carregasse a Alícia para a cama, o que ele fez emocionado, no que foi o mais perto de uma 'tarefa' de pai que ele cumpria desde que tinha chegado.
Depois de cobrirem a meninas, juntos, e antes que ele achasse que era uma boa oportunidade de retomar de onde eles tinham sido interrompidos naquela tarde, a Bia deu boa noite e, praticamente, o expulsou do seu quarto. Ele foi com o cantinho do lábio levantado num meio sorriso que deixava óbvio que ele sabia o motivo de tanta pressa em se ver livre dele. E que aquilo o agradava muito, o convencido.
Tinha algum tempo que ela não passava suas noites de insônia se remexendo entre as filhas, mas qualquer general conhece o melhor momento de mandar as tropas se recolherem para não arriscar a morte certa, e ela acabou dormindo com uma espiral de palavras como péssima ideia, complicação, instinto de autoproteção rodando pela cabeça.
A Bia arrancou o fone da parede no meio do quinto toque.
— Já sei, seu João. O Diego chegou.
— Não, dona Biatriz. Foi a dona Vivian que passou aqui pela portaria.
A Bia encostou a testa no azulejo frio na sua frente, respirando fundo e rápido. Claro que o Diego ia se vingar pela discussão do dia anterior. Burra foi ela por não ter previsto a reação óbvia do ex-marido depois de ter sido vítima das infantilidades dele mais de uma vez.
— Dona Biatriz? Tá tudo bem? A senhora me escutou? — A voz preocupada do segurança viajou pelo fone que ela segurava com força contra o ouvido.
— Escutei. Tá tudo bem, obrigada — a Bia replicou no automático e desligou antes de escutar a resposta.
Um arrepio desceu pelo seu corpo deixando suas mãos geladas, mas não tinha motivo de desespero. Era só reajustar o plano. A Vivi sempre esperava no carro. A Bia ia abrir a porta e vigiar as meninas andando pelo caminho, evitando qualquer contato visual com a víbora.
Ou quem sabe, ela se trancava no quarto com as filhas e fingia que não tinha ninguém em casa.
Se era horrível vê-las indo embora com o ex-marido, era quase como morrer entregá-las nas mãos da Vivi. Seu único conforto era que a prima não se atreveria a fazer nada contra elas ou precisaria enfrentar a ira do Diego. Se tinha uma coisa que ele nunca aceitaria de ninguém, absolutamente ninguém, era alguma maldade com as filhas.
Pena que se esconder não era uma possibilidade viável. Apesar do horário de visitação do Diego ainda ser um acordo informal entre eles, a Bia não podia privar as meninas de passar tempo com o pai. Sem contar que ele usaria sua negativa em deixá-lo a ver as filhas para piorar sua situação na audiência de disputa de guarda.
Com um suspiro saído do fundo da alma, a Bia deu meia volta para ir apressar a Alícia e a Amanda e acabar logo com aquilo. Pelo menos, elas estariam de volta antes do Natal, e elas passariam o feriado juntas. Situação que poderia ser muito diferente no ano seguinte.
Por causa dos mil pensamentos ocupando a cabeça, ela quase passou pela sala sem perceber a mulher parada em frente a árvore de Natal. Foi o perfume, doce e enjoativo, que a atingiu primeiro e embrulhou seu estômago. Sem acreditar na ousadia da cafajeste, a Bia piscou duas vezes para ter certeza que seus olhos não estavam enxergando uma assombração. O sorriso cruel que deformou o rosto da Vivi afastou qualquer esperança que sua manhã não tivesse oficialmente se tornado um pesadelo.
— O que você tá fazendo aqui? — explodiu pelos lábios da Bia.
— Oi, prima preferida. — A ironia escorreu como um veneno pelas palavras dela. — O Di tinha um compromisso, por isso eu vim pegar as nossas meninas.
As mãos da Bia se fecharam automaticamente ao ouvir a antiga maneira da prima chamar a Alícia e a Amanda. Aquele 'nossas', antes, se referia a ela mesma e a Vivi, e era cheio de carinho, fazendo a Bia sorrir ao sentir que tinha uma cúmplice na criação das filhas, mas tinha passado a ser usado como uma maneira de exclui-la do novo clube em que só a Vivi e o Diego eram sócios.
— Eu não podia estar menos interessada no que o Diego tinha pra fazer. Eu quero saber o que você tá fazendo aqui, dentro da minha casa?
— Eu vim te agradecer, claro. — A Vivi se virou para a árvore com um sorriso debochado. — Me lembra de te dar o telefone da decoradora do Di. Essa sua árvore tá parecendo mais de carnaval que de Natal. A tia Helô ia ficar desolada de ver os enfeites dela desperdiçados desse jeito.
O grito para expulsar a prima da sua casa e proibir a cobra de pronunciar o nome da sua mãe ficou entalado na garganta. Era aquilo que ela queria, causar uma cena, ter mais evidências de que a Bia era uma pessoa descontrolada e emocionalmente desestabilizada. Pelas filhas, ela se segurou. Aproveitando o silêncio, a Vivi continuou.
— E eu tô vendo que você trocou o sofá. — Ela andou até o referido móvel e se jogou sentada, se remexendo como se estivesse testando para ver se era confortável. — Se foi pelo motivo que eu tô pensando, você vai ter que trocar a mesa de jantar, as escadas, a bancada do seu banheiro e o chuveiro. Ah! E a sua cama, claro.
As imagens da Vivi transando com o Diego em cada um daqueles lugares pularam na cabeça da Bia, mas não tiveram o efeito devastador que a prima esperava. Trocar o sofá tinha sido sim, uma reação automática por ter pego os dois nele, mas aquilo tinha sido logo nos primeiros dias. Ela não se importava mais. O povo tinha razão ao dizer que 'há males que vem para o bem'. De uma vez, ela tinha se livrado de um casamento que estava lhe fazendo mal e da duas caras da Vivi.
E se a prima a conhecia, o contrário também valia. A Vivi estava ali para dar um recado e enquanto não fizesse aquilo não iria ficar satisfeita.
— Anda logo, Vivi, diz o que você quer. Você queria me agradecer pelo quê? — a Bia perguntou, cruzando os braços, sem se importar de estar caindo na armadilha de propósito, se era o que faria a prima ir embora mais rápido.
— Por você ter trazido o seu namorado bandido pra dentro de casa, claro. Você entregou a guarda das meninas nas nossas mãos. Ele não tá por aí? Eu ia adorar agradecer a ele também.
— Ele não tá.
— Pela foto que eu vi de vocês, ele parece tão gostoso como antes. Vocês já foram pra cama?
Pela primeira vez, no que parecia uma eternidade, um sorriso genuíno tomou o rosto da Bia na frente da Vivi. Então, era aquilo que ela realmente queria saber. Se por ela mesma, ou porque o Diego mandou ela especular, não interessava, era uma oportunidade boa demais para deixar passar em branco.
— Talvez. Afinal, ele sempre foi, ó... — A Bia estalou os dedos, várias vezes. — Muito, mas muito, melhor que o Diego.
Os olhos da Vivi se arregalaram por um segundo antes de se estreitarem.
— Não. Você não ia estar tão tensa se vocês estivessem transando. Você lembra, Bia, como sexo é bom? Tem quanto tempo mesmo?
A Bia engoliu o 'não é da sua conta', no último segundo. Ela não ia cair no jogo da Vivi e trocar baixarias com ela. O que ela precisava era se livrar da megera. Dando as costas para a prima, a Bia andou até o pé da escada.
— Alícia! Amanda! A tia Vivi tá esperando. — a Bia gritou lá para cima, causando uma disparada de pezinhos correndo. — Devagar na escada!
— Tia Vivi! — a Amanda gritou descendo o mais rápido que podia, agarrada ao corrimão, a mochila quase maior que ela se sacudindo nas costas em cada degrau.
Apesar de a Alícia ter começado a descer depois da irmã, as duas chegaram juntas ao chão e correram para os braços abertos da Vivi.
— Minhas princesas!
A Bia fixou o olhar na árvore de Natal para não ver os cumprimentos das três. Saber que as meninas eram muito pequenas para entender a dinâmica do que tinha acontecido entre o pai, a mãe e a 'tia' era uma coisa, ter que assistir a troca de beijos e abraços, era mais do que ela precisava para piorar um dia que já tinha começado péssimo.
— Tá tudo aqui? — A Vivi pegou as mochilas das meninas e, depois de receber respostas afirmativas das duas, ficou de pé. — Vamos, então? Eu tive uma ótima ideia, que tal se a gente passar naquela sorveteria que vocês gostam no caminho pra casa do papai?
A Bia mordeu a língua para não intervir. Ela não daria a satisfação para a prima de se tornar a mãe má que não deixa a tia boazinha levar as crianças para fazer uma coisa legal. Um sorvete antes do almoço não seria o fim do mundo, e um preço pequeno, para evitar virar a vilã da história aos olhos das filhas.
— Ah, tia Vivi, eu não quero sorvete agora. Minha barriga tá cheia de leite com pão. — A Amanda passou a mão por cima do estômago com o narizinho franzido.
— E ainda tá de manhã — a Alícia completou. — Sorvete é pra depois do almoço, ou do jantar.
Tem coisa melhor para a mãe do que ver que seus filhos estavam aprendendo o que ela martelava na cabeça deles?
A Bia lançou um sorriso de satisfação para a prima, mas a outra fez questão de não olhar na sua direção sabendo que tinha se dado mal.
— Tudo bem — a Vivi falou. — A gente pensa em outra coisa bacana pra fazer, vamos?
— O beijo da mamãe? — A Bia se abaixou, beijou e abraçou as filhas. — Obedece ao papai e se ficar com saudade, pede pra ele me ligar pra gente conversar. Eu amo vocês.
— A gente também te ama, mamãe — a Amanda respondeu pelas duas, como ela geralmente fazia, a abraçando de um lado, enquanto a Alícia a abraçava do outro. A filha mais velha tinha dificuldade em pôr os sentimentos em palavras, mas não precisava. A Bia entendia.
A Vivi abriu a porta e as meninas passaram correndo em direção ao carro. Assim que ela pôs os pés fora de casa, a Bia a segurou pela alça da bolsa. Ela esperou as meninas se afastarem antes de falar.
— Da próxima vez, você espera no carro ou eu barro a sua entrada no condomínio — ela avisou com a voz mais ameaçadora que conseguiu.
— Problema seu. — A Vivi deu de ombros. — É você quem vai ter que andar até a portaria pra levar elas.
— Pra não ver a tua cara, eu ando até o inferno! — A Bia bateu a porta, abafando a réplica da Vivi, que sempre tinha que ter a última palavra.
Sem problemas, desde que ela não se atrevesse a entrar na sua casa sem ser convidada. Ou seja, nunca mais.
Considerando todos os seus encontros com a Vivi nos últimos meses, aquele não tinha sido dos piores. Ela, pelo menos, tinha conseguido manter a fachada, mesmo que por dentro estivesse tremendo nas bases, mas como numa bebedeira, passado o efeito do álcool, vinha a ressaca. A Bia se encostou na parede e escorregou até o chão, fechando os olhos e deixando a cabeça cair para trás, batendo algumas vezes, fazendo um barulho seco ao se chocar contra a superfície dura.
Como a sua vida tinha virado aquilo? Não era a primeira vez que ela se fazia a mesma pergunta, mas a resposta nunca vinha. Como ela tinha passado de alguém com tantas pessoas a sua volta, para uma solidão tão pesada?
Sozinha, sozinha, sozinha... aquele era o futuro que a esperava e ela não via como evitá-lo. Por enquanto, ela ainda tinha o irmão, mas um dia ele ia conhecer outra pessoa, construir a família que ele tanto queria e ela ia ficar sozinha, sozinha, sozinha...
Ela tentou procurar alguma coisa positiva para afastar a escuridão, mas, naquele momento nada parecia capaz de animá-la. Ela não tinha ninguém com quem conversar. Ninguém para apoiá-la. Ninguém para lhe dar um abraço. Ninguém para lhe estender a mão.
Por alguns segundos, as caixas de remédios escondidas no fundo do armário do banheiro pareceram chamar pelo seu nome, e ela chegou a ameaçar se levantar, mas não.
Ela podia sentir o fantasma dos beijos das filhas no rosto e, por elas, a Bia se deixou cair de volta no chão, batendo os pés de raiva. A Vivi tinha conseguido tantas vitórias nos últimos tempos, a Bia não lhe daria outra de mão beijada, embora a tentação fosse enorme.
Melhor se conformar e se acostumar com o tal de ninguém, já que ele parecia ser o único que estava disposto a ficar do seu lado...
***
Aposto que vocês estavam com saudades da Vivi. Só que não, kkkk.
Para compensar a visita indesejada, boas notícias: a partir de hoje, vamos passar a ter dois capítulos todas as semanas, e nessa quinta, dois capítulos de presente pra vocês que estão sempre querendo mais. A virada da Bia está chegando com tudo.
Espero vocês depois de amanhã. Bjs :D
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