Capítulo 2

A Bia devolveu o suco intocado para a mesinha. Suas mãos estavam trêmulas e ver o líquido balançando dentro do copo, e como ela não conseguia controlar uma coisa básica como o movimento das próprias mãos, a deixava mais nervosa. O que fazia suas mãos tremerem mais e se tornava um círculo vicioso de ansiedade e irritação. Ela entrelaçou os dedos, como se estivesse rezando, e pousou as mãos no colo.

O Lourenço esperava sua resposta com uma calma invejável. Sem demonstrar nenhum receio por ter prometido ajuda antes mesmo de saber como a vida dele poderia ser afetada, embora ele devesse desconfiar do que se tratava, claro. Falta de inteligência nunca tinha feito parte da lista de defeitos dele.

Ela engoliu o nó na garganta e começou o script que tinha ensaiado e ensaiado e ensaiado na noite anterior, passada quase toda em claro.

— Lourenço, eu vou ser bem honesta com você. Não que eu nunca tenha sido outra coisa. — Ela o olhou nos olhos. Em tantos aspectos ela era fraca, mas ali, ela precisava ser forte. Se ela estava prestes a trazer o Lourenço de volta para sua vida, e da sua família, ele precisava ver que ela estava quebrada, sim, o que não significava que ela não estaria ditando as regras. — Eu te telefonei ontem movida pelo desespero e pela esperança de que você tenha se empenhado em cumprir o que me disse da última vez em que a gente se encontrou, que você ia se esforçar pra se tornar um homem que a sua filha ia ter orgulho de chamar de pai.

— Barbaridade! — Ele soltou uma risada estrangulada — Essa é a sua maneira sutil de me perguntar se eu tô metido em alguma confusão que eu não devia?

A Bia não respondeu e continuou com o olhar firme no dele.

— Já que você tá sendo honesta, eu vou retribuir à altura. — Ele endireitou os ombros com o rosto coberto por determinação? Raiva? Ela não conseguiu distinguir. — Eu errei com você, sim. Mas porque eu coloquei a sua segurança na frente de tudo. Foi uma escolha minha e eu não tô minimizando o que aconteceu. As consequências desse erro foram muito graves, eu perdi cinco anos da minha vida. Cinco anos que eu passei no inferno de uma penitenciária ao invés de estar vendo a minha filha nascer e aprendendo a andar e falar e mais um monte de coisas que pesa nos meus ombros todo dia, e vai continuar pesando pra sempre.

Ele se inclinou e pegou uma garrafinha de água em cima da mesa. As mãos grandes e fortes também estavam tremendo ao tomar quase metade de uma vez. Ao voltar a falar, a voz dele não era menos enfática.

— Nesse exato momento, não, eu não tô envolvido em nada ilegal ou ilícito. Tudo o que eu tenho, eu consegui com a ajuda do meu tio e do meu trabalho. Essa é a verdade, e se você conseguir pensar num jeito de eu te provar isso, me avisa que eu te provo. Mas se amanhã, a segurança de alguém da minha família, e isso inclui você e a Alícia, estiver em risco e depender que eu faça qualquer coisa, tá ouvindo, Bia? Qualquer coisa! Roubar, matar, não interessa! Eu faço. Sem pensar duas vezes.

A Bia aceitou a sinceridade brutal com um aceno de cabeça. Ele não tinha mudado naquele ponto, ele podia ser omisso ou deliberado no que deixava ela saber, ou não, mas quando a situação exigia, entregava a verdade completa.

Se tinha uma lição que ela tinha aprendido no seu casamento com um ator famoso, vivendo numa vitrine, sujeitando sua vida ao exame minucioso dos outros, era que era muito fácil julgar quando não se sabia realmente como era a vida da outra pessoa. Sua avó Célia costumava dizer que só quem usava os sapatos sabia onde lhe apertava os calos. Mais certa, ela não podia estar, porque mesmo que você se colocasse no lugar daquela pessoa, mesmo que você 'calçasse os sapatos dela', os seus pés eram diferentes, seus calos eram outros e nunca era igual.

E que direito a Bia tinha de julgar o Lourenço pelo instinto de proteção desmedido e feroz, se ela também era capaz de tudo pelas filhas? Matar ou roubar ou enfrentar os fantasmas do passado?

— Você me disse, uma vez, que não se arrepende do que fez. Eu respeito isso. — A Bia ficou satisfeita quando a sua voz saiu calma e segura. Dois alvos que ela nem sempre conseguia atingir. — Eu preferia que tudo tivesse sido diferente? Claro que sim, mas aconteceu do jeito que aconteceu. Não importa quantas horas eu passe me obcecando, pensando em cada coisinha que eu podia ter feito de outra maneira, não vai mudar nada. Você fez as suas escolhas, e eu tô fazendo a minha, eu tô te dando a minha confiança pela terceira vez, mas lembra que, se você não cuidar bem dela dessa vez, não é só a mim que você vai atingir.

Os ombros do Lourenço relaxaram e ele colocou a garrafinha de água apoiada na perna, segurando suas mãos entre as dele.

— É mais que eu mereço, eu sei. E eu vou fazer o melhor que eu posso pra não te decepcionar outra vez.

— É tudo o que eu te peço. Agora, eu queria te fazer outra pergunta? — Ela esperou que ele concordasse com um leve aceno, antes de continuar. — Quando você me visitou, quando você conheceu a Alícia, eu te pedi pra se preparar antes de a gente contar pra ela que você é o pai dela. Você foi embora e, depois de me mandar seu número de telefone, nunca mais tentou nenhum contato. Por quê? Você ainda não se considera pronto? Ou mudou de ideia?

Ele balançou a cabeça algumas vezes, como se estivesse pesando as palavras antes de falar.

— Quando eu cheguei em Porto Alegre, meu tio foi muito generoso comigo. Foi ele quem me ajudou a abrir o meu primeiro negócio. Imagina, colocar todas as suas economias na mão de alguém que você mal conhece e que acabou de sair da cadeia pela segunda vez? Doido, né? — Ele deu uma risada, mas o olhar dele era carinhoso e suave ao falar do tio. — Eu trabalhei duro pra retribuir a confiança dele, e o dia que eu paguei o último centavo que eu devia a ele, foi o dia que eu tinha me prometido que eu ia ligar pra você, mas aí, vocês já eram a 'família mais perfeita do Brasil'.

O tom de voz foi amargo e acusador, e a Bia nem tentou se defender, porque ela também tinha vontade de pegar a pessoa que inventou aquele rótulo e dar uma boa estrangulada no infeliz.

— Eu passei umas duas horas com o telefone na mão, olhando fotos e mais fotos de vocês na internet. — A voz dele saiu baixinha. — A Alícia estava tão feliz, tão... no lugar que ela devia estar, que eu pensei, como eu posso ir lá estragar isso? Como eu posso dizer pra minha filha que a família dela não é tão perfeita assim?

— Um segredo? — A Bia se inclinou na direção dele. — Você não devia acreditar em tudo o que vê na internet. Não é que a gente fosse infeliz, mas perfeito? Longe disso. Tudo publicidade. Tudo planejado com cuidado pra criar uma imagem.

— Bia, no dia que eu não te liguei, não foi porque eu larguei de mão. Eu só achei melhor esperar, não sei, talvez ela crescer mais um pouco? Ter mais maturidade pra entender?

— Se o que você queria era um momento oportuno, deve estar sabendo que nós não somos mais 'a família mais perfeita do Brasil'. — Ela não conseguiu evitar o tom amargo na voz, embora não fosse sentir saudade nenhuma de carregar aquele peso nas costas.

O Lourenço deu um leve aperto na sua mão, chamando sua atenção para eles terem ficado de mãos dadas por mais tempo que o apropriado? Para disfarçar, a Bia se soltou e pegou sua garrafinha de água, tomando um gole e não a colocando de volta na mesinha.

— É o que você quer? Que eu assuma a paternidade da Alícia? — ele perguntou, e como ela esperava, sem nenhum pingo de surpresa na voz. — Porque você disse que tinha um favor pra me pedir, e isso não vai ser um favor. É o que eu sempre quis. Desde que eu percebi que aquela guriazinha sentada no seu colo era nossa filha.

Nossa filha.

Por um segundo, cenas antigas de um reencontro dentro de um carro num estacionamento e de uma tarde inteira de beijos saudosos e mãos ansiosas queimaram na sua memória, mas a Bia as afastou com firmeza. Aquela não era hora de nostalgia. Ainda havia muito a ser dito.

— É isso o que eu quero — a Bia confirmou. — E eu sei que você já se comprometeu a me ajudar, mas antes eu queria te contar tudo. Pra você saber onde você vai estar se metendo e, se você mudar de ideia, eu vou entender.

— Eu não vou mudar de ideia — ele afirmou num tom de voz decidido. — Mas eu ia gostar de saber o motivo do pedido. Tem alguma coisa a ver com a sua separação?

— Tem tudo a ver com a minha separação, mas eu preciso voltar um pouquinho no tempo. — Suas mãos voltaram a tremer e ela tomou o restinho de água como se fosse coragem, antes de continuar. — Você sabe o que aconteceu com os meus pais?

O olhar de pena que ele lhe lançou foi resposta suficiente. Claro que ele sabia. A imprensa tinha explodido com notícias de como a tragédia tinha atingido em cheio a família de um dos atores mais famosos do Brasil.

— Eu tentei falar com você. — O Lourenço tirou a garrafa vazia das suas mãos, que ela nem tinha percebido que tinha amassado, mas não tentou segurá-las novamente. — Foi a sua tia que atendeu. Eu não me lembro o nome dela, mas ela disse que ia te passar o recado, que eu liguei.

— Tia Natália, mãe da Vivi. Ela pode ter esquecido. Ou ela pode ter me falado e eu não registrei, desculpa. Foi uma época tão confusa e horrível. Todo mundo estava perdido...

Uma nova leva de lágrimas encheu seus olhos, mas ela parou, respirou fundo e revirou a bolsa atrás de outro lenço de papel.

Quase dois anos depois que o pai finalmente tinha arranjado tempo para sair de férias e realizar o sonho da esposa de conhecer a Grécia, cada vez que se lembrava deles, a Bia ainda era tomada pelo desespero do momento em que o Fred desligou o telefone recebendo a confirmação de que tinha sido mesmo o avião deles que tinha caído no mar. E ela e o irmão não tiveram nem o conforto de poder dizer adeus com um enterro. Eles precisaram se conformar e aceitar que os pais, que tinham acenado do portão de embarque sorridentes e felizes como recém-casados indo para a lua de mel, não existiam mais.

Se a Bia achava que sabia o que era sofrer, aprendeu outra difícil lição com a vida.

A saudade não tinha tamanho, era sufocante e cruel, mas ela precisava se concentrar na tarefa de contar tudo para o Lourenço sem se despedaçar, ou eles iriam ficar ali o resto da semana.

— Eu só sobrevivi por causa das meninas e dos remédios — a Bia continuou a história. — Remédio pra dormir de noite, pra ficar acordada de dia, pra abrir meu apetite, pra conseguir passar cinco minutos sem chorar. Mas, aos poucos, eu fui melhorando. Eu ainda tô melhorando. Eu não preciso te explicar. Você também passou por isso.

— Eu nem consigo imaginar como deve estar sendo horrível pra você. Eu não tô dizendo que não foi pesado quando os meus pais morreram, mas você sabe que a minha relação com eles era complicada. A gente não era próximo como você era dos seus pais.

A Bia assentiu, antes de continuar.

— Foi nessa época que o meu casamento começou a acabar. Eu não tô reclamando, o Diego cuidou de mim, me apoiou, fez tudo que um marido deve fazer, mas perder os sogros é diferente de perder os pais, e foi mais fácil pra ele, seguir em frente. O que é normal, eu entendo, mas a gente se afastou. Era como se a gente estivesse na mesma estrada, ele com uma Ferrari e eu lá atrás no meu fusquinha velho, mas eu achei que valia a pena tentar me reaproximar. O que eu não sabia, era que o banco de passageiro da Ferrari estava ocupado por outra.

A Bia fez uma pausa, esperando o Lourenço pular na oportunidade de falar mal do seu ex-marido. Ele nunca tinha gostado do seu playboy, como ele costumava chamar o Diego, mas ele continuou em silêncio, sério e compenetrado, esperando que ela continuasse.

— Um sábado à tarde, eu fui levar as meninas numa festa de aniversário. Quando a gente chegou lá, eu percebi que eu tinha esquecido o presente. As meninas não quiseram voltar comigo porque, Deus me livre perder um minuto no pula-pula! — Apesar da seriedade da história, um sorriso lhe escapou ao falar das filhas. Mesmo com todo drama, birras e cansaço, ser mãe seria sempre o melhor presente que a vida tinha lhe dado, e estar com elas, uma das poucas coisas boas que restava para a Bia. Ela recolheu o sorriso e continuou. — Eu deixei as meninas com uma das mães que eu conhecia e corri de volta em casa. Eu vi o carro da Vivi na porta, e eu me lembro de ter achado estranho porque eu tinha avisado que eu ia passar a tarde fora, mas nunca, nem em um milhão de anos, eu estava preparada pra o que eu vi.

— A sua prima? — As sobrancelhas do Lourenço quase sumiram pelo cabelo caído na testa. — Você tá tentando me contar que pegou o seu marido com a sua prima?

— Eu nem precisei ir longe, eles estavam no sofá da sala.

— E pelo jeito que você tá falando, eles não estavam conversando?

A Bia deu uma gargalhada, mas não porque era engraçado. Ela sempre ficava meio histérica ao se lembrar da cena.

— O Diego até que estava bem falante, mas a boca da Vivi estava ocupada com outras coisas.

— Puta que pariu! — O Lourenço balançou a cabeça de um lado para o outro. — Essa eu não esperava.

— Sendo completamente sincera aqui? — A Bia explodiu. — O Diego me chocou, mas não me surpreendeu. Quando ele não aproveitou a oportunidade das minhas primeiras tentativas de... da gente voltar... — Seu rosto começou a queimar e ela fixou o olhar no borrão de maquiagem no peito do Lourenço, antes de se obrigar a seguir. — Da gente se reaproximar fisicamente, eu não achei que era porque ele era um marido compreensivo e queria me dar mais tempo. Eu desconfiei, mas estava disposta a relevar. Tinha sido uma época conturbada e eu pensei que não era justo culpar ele por procurar fora de casa o que eu tinha negado a ele por tanto tempo, mas a Vivi? Essa morreu pra mim.

— Não, Bia. Eu consigo ver porque a traição da sua prima parece pior pra você, mas o que o seu marido fez, também não tem justificativa. Você estava passando pela pior experiência da sua vida, ele devia estar menos preocupado com sexo e mais preocupado em ajudar a família dele a se recuperar.

— Eu admito que talvez fosse o caso de não estar pronta pra abrir mão de mais uma coisa na minha vida depois de ter perdido tanto, mas eu teria sido capaz de tentar perdoar um escorregão do Diego com uma desconhecida, se eu percebesse que ele estava arrependido e tão disposto quanto eu a recuperar nosso casamento. Mas não foi o caso. — A Bia fechou os punhos com as lembranças da discussão desagradável e baixo nível que seguiu o flagrante. — Os dois não tiveram nenhum problema pra admitir que estavam juntos desde logo depois do acidente dos meus pais. Quando eles disseram que eu não tinha o direito de ficar com raiva, que foi minha culpa por negligenciar o meu marido... eu perdi a cabeça. Eu coloquei os dois pra fora de casa e avisei ao Diego que eu ia entrar com o pedido de divórcio.

O Lourenço deu um sorriso de aprovação, como se não esperasse menos dela, e abriu a boca para falar alguma coisa, mas foi interrompido pelo toque de um celular.

— Desculpa. — Ele se remexeu até tirar o telefone dele do bolso e xingou ao olhar a tela. — Droga! Eu preciso atender. Eu fiquei de avisar pra Mariana que eu cheguei bem e esqueci.

— Tranquilo. — Ela levantou e alisou a saia do vestido. — Posso usar o banheiro?

— No fim do corredor. — O Lourenço apontou o caminho e encostou o telefone no ouvido, falando com a irmã. — Eu esqueci, Mari, foi mal.

A Bia seguiu pelo corredor, agradecida pela pausa. A pior parte da história ainda estava por vir, e ela precisava estar no comando total das suas emoções para poder contá-la. 

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