Capítulo 18
A Bia bem que tentou arrancar do Lourenço alguma pista sobre a surpresa, mas nem com a ajuda das filhas, ela teve sucesso. Cadê a pessoa que tinha admitido não resistir à carinha de anjo das duas, quando se precisava dela?
Depois do almoço, e depois que as meninas acordaram da soneca da tarde, eles se dividiram em dois grupos, o Fred, a Alícia, a Amanda e a Bia no carro dela, por causa das cadeirinhas, seguindo o Lourenço e a Mariana. Felizmente, o suspense não durou muito. Eles chegaram rápido ao destino deles, embora a passada de olhos da Bia pela listagem dos escritórios na entrada do estacionamento do prédio comercial, como tantos outros da Barra da Tijuca, não tivesse oferecido nada de interessante para desvendar o mistério.
O Lourenço passou direto por uma vaga vazia perto da entrada e, depois de apontá-la para o Fred, continuou seguindo à procura de um lugar para ele.
— Fala a verdade. — A Bia olhou de lado para o irmão quando ele terminou de estacionar e desligou o carro. — Você tá tentando não gostar dele, mas tá difícil.
— Eu não tô tentando não gostar de ninguém. Eu só acho que a puxação de saco pra cima da Berê tá um pouco demais.
— Você sabe que o seu lugar no coração da Berê ninguém toma, não sabe?
— Me faz um favor, então? — Ele soltou o cinto de segurança e parou com a mão na alavanca da porta. — Diz isso pra ele.
O Fred podia não querer dar o braço a torcer, mas o Lourenço já o tinha conquistado da mesma maneira que tinha feito com as meninas. Eles se implicavam o tempo todo e a competição pela atenção da Berê tinha virado motivo de diversão geral na hora das refeições, mas era claro o respeito e a admiração mútua entre os dois. Eles só eram orgulhosos demais para admitir em voz alta.
A Bia saiu do carro e abriu a porta de trás para a Alícia, que desceu devagar, estudando os arredores virando o pescoço com movimentos alertas e bruscos, como um passarinho assustado. A filha mais velha não era fã de surpresas, e a Bia poderia ter usado aquilo como argumento para fazer o Lourenço abrir o jogo sobre onde eles estavam indo, mas a vida era cheia de imprevistos e viradas repentinas e a Alícia precisava aprender a lidar com eles.
— Escuta, meu amor. — A Bia se agachou na frente dela, enquanto o Fred ajudava a Amanda a sair da cadeirinha e do carro. — O tio Lôro não ia trazer a gente pra fazer nada que não fosse divertido, mas se depois que a gente entrar e ver qual é a surpresa, você não gostar e quiser ir embora, me diz e a gente vai pra casa, tá?
— Tá. — Ela sorriu, os olhos menos perturbados, mas mesmo assim agarrou a mão da mãe com força.
O Lourenço e a Mariana os alcançaram e eles entraram juntos no prédio.
— Vocês vão por ali. É no último andar. — O Lourenço apontou para o final do saguão e apoiou a mão nas costas da Bia a levando em outra direção. — Nós vamos por aqui.
Ela deu alguns passos, com a Alícia ao seu lado, achando que separar o grupo era parte da surpresa, até ver a plaquinha de um bonequinho correndo para subir um lance de escadas, por cima de uma porta. Ela entendeu e parou no meio do caminho.
— Lourenço, a gente pode ir de elevador.
— São só cinco andares, Bia. A gente vai devagar, pra você não cansar muito. — Ele a encarava com a cabeça virada de lado, atento às suas reações.
Era uma preocupação comovente, mas não surpreendente. Desde que tinham se reencontrado, o Lourenço não tinha expressado nada além de cuidado, e agido com gentileza e preocupação, tanto com ela, como com as meninas. Não seria diferente com seu antigo trauma.
— Eu ainda tenho vários obstáculos pra superar na vida, mas meu medo de elevador é um que já ficou pra trás. Há muito tempo.
— Você tem certeza?
— Absoluta.
Eles voltaram para o lado da Mariana e do Fred, que acompanharam a conversa de longe, segurando a mão da Amanda entre eles, e se juntaram ao senhor parado em frente as portas fechadas do elevador. Segundos depois, elas se abriram e a Bia respirou fundo.
Enquanto os outros entravam, ainda do lado de fora, ela procurou pela plaquinha de segurança, que declarava a capacidade máxima de seis pessoas para aquele elevador. Eles eram em sete, mas considerando o peso, a Alícia e a Amanda valiam por uma pessoa só, e, se dando por satisfeita, a Bia foi a última a se colocar dentro da lata de sardinhas que levava o título de meio de transporte mais seguro do mundo.
Depois de confirmar dois números acesos no painel, ela se colocou na frente dele, para o caso de algum engraçadinho querer brincar de apertar todos os botões ao mesmo tempo, e grudou seus olhos no mostrador luminoso em cima das portas. Ela sentia os olhares em cima dela, mas continuou concentrada. Enquanto aqueles números estivessem crescendo, estava tudo bem. Depois da parada no terceiro andar para o senhor descer, eles finalmente chegaram ao quinto andar e ela não perdeu tempo em ser a primeira a pisar em terra firme. Só então ela teve coragem de olhar para o Lourenço, que a observava com um cantinho de boca repuxada para cima.
— O quê? Eu disse que eu andava de elevador, eu não disse que eu gostava.
O olhar dele se suavizou ao ver sua posição defensiva e ele se inclinou para a frente, falando no seu ouvido.
— Eu acho que você foi super bem. Eu só fiquei um pouco decepcionado, porque eu fiquei ali do seu lado, pro caso de você precisar se agarrar em alguém, e... nada.
Ele se afastou, rindo, antes que ela pudesse replicar.
Definitivamente ela ia precisar pedir a ele que parasse com as brincadeiras. Mas, como, sem confessar que o motivo era que ela ficava toda confusa com os sentimentos que faziam o seu coração disparar, bombeando esperanças absurdas para o resto do corpo?
— É aqui mesmo que a gente vai?
A pergunta do Fred fez a Bia olhar em volta e não encontrar o corredor cheio de portas que ela esperava, e sim um salão amplo que parecia tomar todo o andar. Uma placa transparente, suspensa por dois cabos de aço que desciam de uma das vigas que serviam de suporte para o teto todo de vidro, anunciava em letras prateadas que pareciam flutuar no ar: Galeria de Arte Bianca Tavares. As paredes brancas estavam cobertas de quadros e vários pilares estrategicamente colocados pelo ambiente serviam de apoio para esculturas pequenas, enquanto outras maiores, se espalhavam pelo chão.
Automaticamente, a Bia agarrou a mão da Alícia com firmeza e buscou pela mão da filha menor, para evitar que ela corresse em disparada para examinar alguma coisa mais de perto com a delicadeza de um touro perdido numa loja de porcelanas finas.
Antes que o Lourenço respondesse à pergunta do Fred, uma moça saiu de trás do balcão da recepção. Ela tinha os cabelos cor-de-rosa, usava um vestido curto, estampado com círculos roxos, verdes e azuis, de um pano que flutuava em volta dela enquanto ela andava com as botas vermelhas até os joelhos. Ela parecia um arco-íris e a Bia ficou com vontade de perguntar se ela tinha um unicórnio.
— Lourenço? — Ela apontou do Fred para o Lourenço, sorrindo com simpatia enquanto esperava a resposta.
— Sou eu. — O Lourenço deu um passo à frente com a mão direita estendida. — E você deve ser a Bianca?
— Não, eu sou a Chiara, a outra metade dela. — Ela aceitou o aperto do Lourenço. — A Bianca teve que dar uma corridinha no banco e já deve estar voltando, mas a professora aqui sou eu mesma, então a gente não precisa esperar por ela.
— Obrigado por ter arranjado um horário em cima da hora.
— Problema nenhum. Qualquer amigo do Renê é nosso amigo também. São só vocês? — a Chiara olhou o resto do grupo.
— Só nós — o Lourenço confirmou e fez as apresentações, começando pelos adultos e terminando nas crianças.
A Chiara se agachou e ficou da altura das meninas.
— Vocês gostam de pintar?
— Eu gosto! Eu tenho aula de artes na minha escola — a Amanda respondeu ao mesmo tempo em que a Alícia se abraçava à cintura da mãe.
— E você? — A Chiara perguntou para a Alícia. — Também pinta na aula de artes?
— Às vezes — ela respondeu baixinho.
— Tio Lôro? — a Amanda chamou. — O braço dela é colorido igual o seu.
— Verdade. — Com uma risada, o Lourenço arregaçou mais as mangas da camisa, mostrando as tatuagens.
— Você acha bonito? — a Chiara perguntou para a Amanda, esticando os braços, exibindo com orgulho os desenhos que a enfeitavam dos ombros até os pulsos.
A Amanda virou a cabecinha de lado, a testa franzida, estudando os braços da Chiara.
— Eu gosto dessa aqui. — Ela apontou uma flor pequena no meio das outras tatuagens.
— Ah, eu também adoro essa, sabe por quê? — A Chiara passou o indicador pelo contorno da flor. — Porque é rosa. E rosa é a minha cor preferida.
— A minha também! — A Amanda balançou a cabeça com entusiasmo, arrancando uma gargalhada da Chiara.
— Pra nossa sorte, eu tenho muita tinta rosa pra gente usar.
De repente, a Amanda arregalou os olhinhos.
— A gente vai pintar o cabelo?
— Não, a gente vai pintar um quadro! — A Chiara ficou de pé. — Todo mundo pronto pra aula? O ateliê é por aqui, por favor.
Ela virou as costas e foi andando em direção a uma porta que ficava ao lado da mesa de onde ela tinha vindo. O Lourenço, a Mariana e a Amanda começaram a segui-la, mas a última foi impedida de continuar pela mão da Bia, que continuou parada no mesmo lugar, com a Alícia ainda agarrada a ela.
Uma aula de pintura! Então, aquela era a grande surpresa do Lourenço. A que ela ia adorar, segundo ele. Mas ela não sabia se a paralisia que tomou conta dela podia ser descrita como adoração.
— Biatriz? — O Fred, que também não tinha seguido a Chiara, tocou seu ombro de leve. — Você quer ir pra casa?
Engraçado que ele fizesse o mesmo oferecimento que ela tinha feito para a Alícia. E ela não tinha uma resposta para aquela pergunta porque seu cérebro estava ocupado lembrando da última vez que ela tinha tentado pintar, algumas semanas depois que o Lourenço tinha sido preso.
Ela tinha sentado em frente ao cavalete, encarando o branco da tela, tentando esvaziar a mente dos problemas, buscando a imagem que iria ajudá-la a lidar melhor com a grande confusão que a sua vida tinha virado. Mas não conseguiu.
A mágoa e sofrimento precisaram de apenas um segundo para se tornarem uma raiva tão grande que parecia que ela ia explodir. Por que tinha que ser daquele jeito? Por que o Lourenço tinha estragado um relacionamento tão bonito? E com a traição dele tinha roubado da Bia as cores e a beleza do resto do mundo!
Num acesso de raiva, ela espremeu a bisnaga de tinta direto na tela, o preto escorrendo vagarosamente em gotas grossas. E repetiu com todas as outras cores, esparramando tudo com os dedos, pintando um quadro de tonalidades bagunçadas e misturadas e feias, igual aos sentimentos dentro de si mesma.
Era a segunda vez que ela tentava pintar por causa do Lourenço, e não conseguia. Da outra vez, depois que tinha terminado com ele na festa das bodas dos pais, ela tinha conseguido finalizar a pintura, mas o resultado a fez se sentir pior do que quando tinha começado, e a Bia tinha picotado a tela em mil pedacinhos.
Suas outras pinturas, encostadas no cantinho do quarto, pareciam rir e debochar dela. Cada uma, resultado de algum acontecimento que ela tinha considerado um problema na sua vida. E ela lá sabia o que era problema antes de precisar encarar que seria mãe solteira porque o pai do seu bebê estava preso por tráfico de drogas? Muita ingenuidade da sua parte!
Com os olhos embaçados de lágrimas, a Bia pegou uma tesoura e calou a risada das outras pinturas, destruindo uma por uma, inclusive a que estava pendurada no quarto dos pais. Com as roupas e as mãos manchadas de tinta, ela entrou no carro, foi até à casa da Vivi e quase a matou do coração ao entrar no quarto dela com uma expressão assassina no rosto e uma tesoura na mão. Mas a prima não tentou impedi-la de aniquilar sua última pintura, e a deixou chorar e desabafar até que exausta, a Bia dormiu.
Ao voltar para casa, na manhã seguinte, os únicos sinais de que o cantinho do seu quarto tinha abrigado seu 'ateliê', eram uns poucos respingos de tinta na parede. Que sumiram algumas semanas depois, por trás de uma demão de tinta amarela e do guarda-roupas e do berço branquinhos que ela e a mãe escolheram para a nova fase de vida da Bia. Saía de cena a jovem descontraída e despreocupada, e entrava a mulher responsável por trazer uma nova vida ao mundo.
— Nós vamos precisar de mais um minutinho. — A voz do Fred trouxe a Bia de volta a realidade.
Três pares de olhos a encaravam com emoções diferentes, a Chiara com surpresa, a Mariana com curiosidade e o Lourenço com preocupação.
— Sem problemas. — A Chiara levantou o polegar por cima do ombro. — Eu vou esperar vocês lá dentro. Não precisa ter pressa.
Educadamente, a Chiara se retirou e entrou no ateliê, dando espaço a eles.
— Biatriz... — o Lourenço começou a falar, com um passo na direção dela, mas foi interrompido pelo Fred.
— Mariana, quem sabe você e as meninas não vão começando a aula com a Chiara, por favor?
— Claro. — A Mariana estendeu as duas mãos, mas só a Amanda aceitou o oferecimento.
— Você não vai, mamãe? — A Alícia levantou o rostinho ansioso para a Bia.
O coração de Bia estava quase pulando para fora do peito de tão acelerado, e não ter seu terceiro ataque de pânico em menos de vinte e quatro horas, na frente das filhas era uma ótima ideia.
— Pode ir com a tia Mariana. — Ela passou a mão pela bochecha da filha. — Se a mamãe decidir que não quer pintar, eu vou te buscar pra gente ir pra casa juntas. Eu prometo.
Por alguns segundos, tudo o que a Alícia fez foi apertar sua cintura com mais força, mas por fim, se soltou da mãe e sumiu com a Mariana pela mesma porta que a Chiara tinha passado.
— O que você tá pensando, Lourenço? — o Fred explodiu assim que a Mariana, graças aos céus, fechou a porta atrás dela. — Você marca uma aula, a Bia volta a pintar e pronto! Sua consciência fica tranquila?
A Bia ouviu as palavras do Fred de longe, esperando pelos sintomas que ela conhecia tão bem, mas, para seu assombro, o ar não desapareceu, sua visão não se escureceu, as mãos não ficaram mais trêmulas que o normal e, não fosse pelas batidas fortes do coração, ela até poderia se considerar tranquila.
— Eu não marquei essa aula porque eu me sinto culpado — o Lourenço se defendeu. — Quer dizer, é claro que eu me sinto culpado, mas eu quis trazer a Bia aqui porque ela pinta tão bem, e já tem tanto tempo...
— Muito tempo pra você. Não significa que tem tempo suficiente pra ela! — o Fred o interrompeu, e a Bia tentou interrompê-lo, segurando o braço do irmão.
— Fred — ela chamou, sem sucesso.
— Você não sabe como ela ficou! — O irmão encostou a ponta do dedo no peito do Lourenço e continuou a cuspir sua ira. — Você não estava lá! Você...
— Fred! — a Bia gritou e finalmente ganhou a atenção dos dois. — Eu quero tentar.
Ela só acreditou no que tinha tido coragem de falar porque ouviu suas próprias palavras. O Fred se virou para ela de olhos arregalados.
— Bia, você não precisa se sentir obrigada só porque ele quer que você volte a pintar.
— Eu não tô me sentindo obrigada por causa dele. — A Bia lançou um olhar de desculpas para o Lourenço, por estar falando como se ele não estivesse ali, mas ele não parecia estar se importando, mais preocupado com ela, que com ele mesmo. — Mas ele tá certo, tem muito tempo, e eu quero tentar.
— Você acha que é uma boa ideia? Agora? Você já tá passando por tanta coisa.
— Eu só vou saber se é uma boa ideia, ou não, se eu tentar. E eu prometo que se eu não conseguir pintar, o máximo que vai acontecer, é eu deixar a tela em branco. — Ela sorriu para mostrar a ele que estava calma e segura. — Eu nem trouxe a minha tesoura assassina.
A brincadeira surtiu efeito e o Fred soltou uma risada engasgada pela garganta.
— Tá bom. Mas se você achar que é demais, você fala e a gente vai embora.
— Não antes da Amanda acabar com o estoque de tinta rosa da Chiara. Vamos?
A Bia olhou do irmão para o Lourenço, que a olhava de volta com um sorriso enorme no rosto, como se não esperasse outra atitude dela.
Era verdade o que ela tinha dito. Ela não estava fazendo aquilo para aplacar as expectativas de ninguém. Mas se tinha uma lição que ela tinha aprendido ao superar seu trauma de elevadores, era que o primeiro passo parecia impossível, mas era só aquilo, um passo. E tudo ficava mais fácil depois.
E se no processo, ela fizesse o Lourenço achá-la um pouco mais incrível, que mal tinha?
***
Gostaram da surpresa do Lourenço pra Bia?
Agora a minha surpresa pra vocês: pra não deixar ninguém ansioso com o que vai acontecer na aula de pintura, semana que vem tem dois capítulos outra vez, um terça e outro quinta. Beijos e até lá.
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