Capítulo 15
A Bia entrou em casa pela porta da cozinha, na sexta de manhã, com as mãos cheias de sacolas.
Já que seu sono não era lá grandes coisas, ela aproveitava e ia ao laboratório bem cedo nos dias de exame de sangue. Não porque ela precisasse estar de jejum e sim porque estava mantendo os exames escondidos das filhas.
Elas ainda não precisavam saber sobre a audiência e a possibilidade de terem que sair da casa onde sempre viveram, deixar a mãe e ir morar com o pai. Ela e o Diego tinham conversado, e concordado, que seria melhor as meninas não saberem de nada, por enquanto, para não sofrerem por antecedência.
— Ninguém acordou? — a Bia perguntou para a Berê, que descascava um monte de batatas.
— Não. Nem o doutor Fred chegou. — Ela limpou as mãos num pano de prato. — Deixa eu ajudar a senhora.
— Não precisa, obrigada. Já tá quase acabando.
A Bia foi e voltou, e colocou o resto das sacolas perto da Berê, que guardava as coisas na geladeira.
Era normal que ela voltasse antes de as meninas estarem de pé, mas, naquele dia, ela tinha aproveitado e dado uma passada no supermercado para cuidar da lista que ela e a Berê tinham feito no dia anterior. Graças à compra farta feita antes do Lourenço e da Mariana chegarem, ela foi mais rápida do que tinha esperado, mas, mesmo assim, já tinha passado da hora das filhas acordarem.
— Foi todo mundo dormir tarde, mas essas meninas estão muito preguiçosas. Eu vou chamar elas.
— Terminando aqui, eu arrumo o leite delas. A senhora vai querer... — O oferecimento da Berenice foi interrompido pelo toque do interfone. — Eu atendo.
A Bia acompanhou os passos da sua funcionária com o mesmo aperto de ansiedade no estômago de sempre, mas se obrigou a não surtar. Podia ser o seu Juarez com os presentes das meninas.
— Obrigada, seu João. — A Berê recolocou o fone no lugar e se virou com movimentos idênticos aos da tarde anterior, porém, com o semblante bem mais carregado. — O seu Diego tá entrando.
— Mas ele só chega hoje à noite! — O protesto inútil escapou da Bia, encarando e esperando uma resposta da Berenice, que levantou as mãos e balançou a cabeça no sinal clássico de quem não sabia o que dizer. Claro que sua funcionária não sabia o porquê do Diego ter voltado antes. A Bia respirou fundo. — Tudo bem, eu vou esperar ele lá na frente.
A Bia atravessou a sala com as mãos trêmulas apertadas uma na outra.
Não devia ser nada.
Ele deve ter terminado a gravação mais cedo e porque ficou a semana toda sem falar com as meninas, estava com saudades e resolveu vir ver as filhas. Não tinha como ele saber do Lourenço. Não tinha como ele saber do Lourenço!
Ela abriu a porta de casa na mesma hora que o Diego bateu a porta do carro com força. Quando ele a olhou, soltando faíscas, o estômago da Bia caiu. Ele sabia sobre o Lourenço.
— Você voltou mais cedo. — Ela lutou para a voz soar calma, mas um leve toque de desespero se entrelaçou pelas palavras.
— O clima cooperou e gente acabou de gravar ontem. Eu cheguei à noite. Era tarde, por isso eu não liguei. Posso entrar?
— Claro. — A Bia chegou para o lado e, depois de fechar a porta, o seguiu até a sala. — As meninas ainda estão dormindo. Eu estava indo acordar elas.
— Por favor, Biatriz. O bom ator dessa família não é você. Me poupa dessa atuaçãozinha ridícula. Você sabe muito bem o que eu tô fazendo aqui.
— Não. — Ela reforçou a negativa com a cabeça. Ela não era boba de se entregar antes de saber se suas suspeitas sobre a visita dele eram válidas. — Se não é pra ver as meninas, eu vou precisar que você me explique.
— Eu vou te explicar. — Ele tirou o celular do bolso, os dedos rápidos voando sobre a tela. — Sorte que eu voltei mais cedo, né, Bia? Eu viro as costas um segundo e você faz merda. Olha a primeira coisa que eu vi hoje, quando eu acordei.
Ele lhe entregou o telefone, e ela o aproximou do rosto para ter certeza que estava enxergando certo.
A foto tinha sido tirada no dia anterior, no shopping, depois do pet shop, na hora em eles estavam indo de volta para o carro. Foi quando a Amanda reclamou que estava cansada e a Bia a pegou no colo, e o Lourenço deu um jeito de carregar as bolsas de compras e a caixa da árvore de um lado, enquanto segurava a mão da Alícia, do outro.
Em letras maiores, por cima da fotografia, o site de fofocas que a Bia nunca visitava se pudesse evitar, lançava a seguinte pergunta: "A ex-família mais perfeita do Brasil tem um novo pai? "
Pai.
Eles tinham que ter usado a droga da palavra pai.
Com o dedo tremendo, a Bia deslizou a tela e leu o resto do estrago:
A ex-esposa do nosso ator preferido, Diego Valdez, não perdeu tempo. O lugar dele nem esfriou, e a vaga deixada há poucos meses, já foi preenchida. Biatriz e as filhas foram vistas nessa quinta-feira, alegres e sorridentes, fazendo compras de Natal na companhia do empresário da noite de Porto Alegre, Lourenço Ribeiro. Que a moça tem bom gosto (e sorte!!) não se pode negar. E para aqueles que gostam de tudo bem explicadinho, fica a dúvida: será que finalmente encontramos o pivô da separação do casal que parecia inseparável?
A Bia caiu sentada no sofá. Lixo, especulação e sensacionalismo, como sempre, mas, infelizmente, muita gente lia e acreditava naquela bobagem toda. Era só uma questão de tempo alguém descobrir que ela e o Lourenço tinham sido namorados, fazer as contas, notar a semelhança entre ele e a Alícia, que todos sabiam que não era filha do Diego e... Bum!
Ela não teria problema nenhum com a verdadeira paternidade da Alícia se tornar conhecimento público, se os estilhaços daquela explosão não corressem o risco de atingir a filha. Um segundo de distração, um comentário de qualquer um e ela descobriria, da pior maneira possível, que o tio Lôro era, na verdade, pai dela.
A vida da Bia parecia um daqueles presentes enormes que você ganha do amigo brincalhão. Você abre e encontra outra caixa dentro de outra caixa dentro de outra caixa. Só que no seu caso, não era um presente, e sim uma sucessão sem fim de coisas ruins e quando ela achava que tinha acabado, que não podia ter outra caixa dentro daquela tão pequena, ela abria a tampa e outra coisa ruim pulava lá de dentro.
Quando ela recomeçou a sair com o Diego, logo no início da carreira dele na televisão, eles tinham conversado sobre a fascinação do público pelas celebridades. A Bia não entendia porque um pai de família cheio de contas para pagar e a dona de casa na correria do dia a dia, perdiam tempo curtindo e comentando a foto do prato de comida que ele postava nas redes sociais ou se importavam quando ele ia ao dentista.
Ele tinha explicado que o interesse pelos famosos tinha duas partes, o lado glamoroso das festas exclusivas, roupas bonitas e carrões, que servia de escape, justamente para fazer as pessoas esquecerem um pouco dos próprios problemas. E pelo outro lado, ver que até os privilegiados pelo dinheiro, fama e influência, comiam macarrão e não estavam livres de sofrer com a banalidade de uma dor de dente, criava empatia, os colocavam em pé de igualdade, dava esperança de que eles próprios poderiam, um dia, deixarem de ser o cidadão comum e se tornarem alguém especial.
O problema era que a Bia não era uma celebridade. Não foi mentira o que ela disse ao Lourenço sobre nunca ter sido interessante o suficiente para a imprensa. A não ser quando eles queriam criticar seu vestido nos eventos em que ela acompanhava o marido.
Por que aquilo, naquele momento? E como eles tinham identificado quem era o Lourenço, tão rápido?
Só tinha uma explicação. Se aquilo não tinha o dedo podre da Vivi, nada mais tinha.
Era comum que os jornalistas — se é que os profissionais da fofoca mereciam receber esse título — procurassem alguém próximo do famoso em busca de confirmação, ou informações extras, sobre um fato antes de divulgá-lo. A prima mesma, tinha confessado ter sido alvo daquele tipo de consulta várias vezes. Talvez, fosse até verdade que ela tivesse se recusado a cooperar. Antes. Mas, o jogo tinha virado.
Se alguém procurou a Vivi com aquela foto, deu nas mãos da víbora a oportunidade perfeita para resolver dois dos problemas dela de uma só vez. A Bia passava a ser a sem caráter, culpada pelo fim do casamento e da ruína da 'família mais perfeita do Brasil', dando ao Lourenço, que não tinha nada a ver com aquela podridão toda, o papel indesejado de pivô da separação. E de quebra, a Vivi preparava o caminho para a entrada dela mesma, amiga compreensiva e fiel que consolou o pobre marido traído, se livrando do perigo de ser antipatizada pelos fãs do Diego. Mas, ai da Bia se abrisse a boca para compartilhar essas suspeitas com o ex-marido que não via nada além de perfeição e boas intenções na atual namorada.
— Eu não quero brigar, eu juro que eu não quero — o Diego disse com a voz calma, sentando na beirada da mesinha de centro, na frente da Bia. Com suavidade, retirou o celular das suas mãos trêmulas e o colocou do lado dele. — Você não tá bem ultimamente e não tá conseguindo pensar direito, mas você não vê como é suspeito esse cara te procurar logo agora que você tá vulnerável, perdeu seus pais, tá se divorciando? Ele não é boa pessoa, Bia, nunca foi. Ele tá querendo se aproveitar de você. Acorda! Quanto você gastou com ele ontem?
A acusação contra o Lourenço foi a injeção de raiva que a Bia precisava para reagir, e ela ficou de pé com um pulo.
— Nem um centavo! — ela gritou, mas se controlou e abaixou o tom de voz para continuar. — Tudo o que a gente comprou ontem, foi ele que pagou. Ele que deu de presente pras meninas. E se você quer saber, não foi ele que me procurou, fui eu que procurei por ele.
O Diego também se levantou, a paciência que ele tinha demonstrado há poucos segundos se evaporando frente à resposta irada da Bia.
— A Vivi te conhece bem pra cacete, mesmo! — Ele soltou uma gargalhada amarga. — Ela falou isso, que tinha sido você quem tinha ido atrás do seu ex-namorado, mas eu não quis acreditar. O que você tá querendo, Biatriz? Um exame de DNA? Tentar evitar que eu fique com a Alícia? Porque eu já liguei pro meu advogado, ele disse que eu sou pai de fato, que é muito mais importante que um laço de sangue com um desconhecido.
— Fala baixo! — Ela olhou para a escada como se pudesse ver as palavras do Diego subindo e se esgueirando por baixo das portas, indo parar nos ouvidos de quem não devia. Tanto das meninas, quanto das visitas. Ela não precisava se preocupar com a Berê, que trabalhava com ela desde que a Alícia era pequenininha e amava as meninas igual filhas, e tinha toda a confiança da Bia. — Eu não sou idiota. Eu sei disso tudo. E você não devia estar surpreso com o Lourenço querer conhecer a Alícia. Você sempre soube que esse dia ia chegar.
— Meu Deus! — O Diego enfiou os dedos nos cabelos, puxando um pouco. — Você não contou pra ela, contou? Você não tem o direito de tomar uma decisão dessas sem me avisar, Bia. Ela é mais minha filha que...
— Ninguém contou nada pra ninguém! — a Bia o interrompeu, falando baixo, mas num tom que não deixava dúvidas quanto a sua irritação. — Agora não é a hora de contar nada pra Alícia. E assim como eu sempre defendi o lugar do Lourenço na vida dela, eu não vou desrespeitar os anos todos em que você conviveu com ela. Claro que você pode estar presente na hora de contar a verdade pra ela, se você quiser. Não foi pra isso que o Lourenço veio aqui. Ele queria conhecer a filha. Ele tem esse direito.
— Você tem razão! Eu não devia estar surpreso por você ter ido atrás desse cara. Você nunca deixou de gostar dele. — Seguindo o exemplo da Bia, ele baixou o tom de voz, que não ficou menos raivoso e ameaçador. — O tempo todo em que você me negava adotar a Alícia legalmente, era porque você não queria perder o único vínculo que você tinha com ele. Vínculo que você aproveitou a primeira oportunidade pra usar e trazer ele de volta pro seu lado. Você nunca esteve inteira no nosso casamento, uma parte sua, sempre foi dele. Admite, Bia! Admite!
A acusação foi como um tapa na cara e ela precisou respirar por alguns segundos antes de achar as palavras para respondê-lo.
— Se você acha isso, por que casou comigo? Quase nove anos juntos de quê? Uma brincadeira? Uma farsa?
— Eu tinha esperança... eu achava que com o tempo, você ia esquecer, mas a prova maior que isso nunca aconteceu, é ele estar de volta na sua vida — o Diego falou com a mão no peito, mas a Bia não se deixou comover, ele pegava pesado no drama quando tinha a chance. E como o ótimo ator que era, mudou da mágoa de volta para a raiva em um segundo, se aproximando da Bia com passos ameaçadores. — Você só tá esquecendo de um detalhe. O cara é um bandido, um traficante. Eu quero ele longe das minhas filhas!
— Isso é passado! Eu nunca ia deixar ele chegar perto das meninas se ele não tivesse mudado.
— Olha como você é rápida em defender ele! — O Diego segurou seus ombros e a sacudiu. — Ele te disse isso uma vez, não foi? E o que aconteceu quando você acreditou nele? Quem foi presa? Quem ficou grávida e sozinha?
A Bia apoiou as mãos nos braços dele, tentando se soltar. Ele a sacudia com tanta força que ela sentia o cérebro batendo no crânio, mas ele continuou sem se importar se a estava machucando.
— Ei! Ei! O que você tá fazendo? — A voz do Fred fez o que a Bia não tinha conseguido e o Diego a largou. Se apoiando no encosto do sofá, ela viu o irmão atravessar a sala, apressado, e se colocar entre ela e o ex-marido. — Você encosta nela de novo e eu te arrebento! Tá me escutando?
— Eu tô decepcionado com você, Fred. — O Diego ignorou a ameaça e atacou o Fred. — A sua irmã fazer merda, eu até entendo, ela tá com a cabeça fraca, mas você? Você sempre foi um cara sensato e inteligente, não pode estar apoiando as suas sobrinhas conviverem com um ex-presidiário.
— Aqui não tem ninguém com a cabeça fraca. — O Fred apontou o dedo para o Diego. — E a Bia tem o direito de trazer quem ela quiser pra casa dela.
O Diego levantou as sobrancelhas com o olhar grudado na entrada do corredor do segundo andar.
— Aqui? Você tá querendo me dizer que esse bandido tá aqui, agora? — Ele voltou a encarar a Bia com tanto desprezo que ela deu um passo para o lado, se escondendo atrás do irmão. Ela não gostava de se sentir frágil a ponto de precisar de um escudo, mas ela era realista e sabia que não tinha forças para enfrentar o ex-marido sozinha. O Diego focou o olhar no Fred e continuou. — Vocês dois estão doidos, acreditando em alguém que não vai pensar duas vezes em trair a confiança de vocês e mostrar, de novo, quem ele é. E vocês estão esquecendo que isso vai atingir duas meninas inocentes que não têm como se defender!
— Não muito diferente do que você e a Vivi fizeram, né, cunhado? — O Fred cruzou os braços e, mesmo sem vê-lo, a Bia podia imaginar o olhar de ironia que seu ex-marido estava recebendo.
O rosto de pele branquinha do Diego se avermelhou e ele abriu a boca, mas ninguém soube o que ele ia falar porque o som de passinhos apressados descendo as escadas o impediu de continuar.
— Papai!! — as meninas gritaram juntas.
— Essa conversa não acabou! — o Diego disse entredentes.
— Acabou, sim! — o Fred replicou da mesma maneira.
Sem mais tempo para reagir, o Diego respirou fundo e soltou o ar com força, colocando um sorriso no rosto e se ajoelhando para receber o abraço das meninas.
— Meus amores! — Ele agarrou a Alícia que chegou primeiro, de um lado, e continuou com o outro braço aberto até a Amanda também se jogar nele. — Eu estava morrendo de saudades!
— Você não ligou pra gente — a Alícia reclamou, ganhando um beijo estalado na bochecha.
— O celular do papai não estava pegando, amor, desculpa.
— Você veio buscar a gente pra ir pra sua casa? — a Amanda perguntou dando dois pulinhos, depois de também receber um beijo.
— Não! — foi a Bia quem respondeu, sua voz saindo mais alta que o necessário, atraindo todos os olhares para si. — O papai veio matar as saudades, só um pouquinho. Amanhã ele volta pra buscar vocês.
As meninas aceitaram a explicação e voltaram a atenção para o pai.
— Vem ver a árvore de Natal que o tio Lôro deu pra gente. — A Amanda o puxou pela mão, e a Bia recebeu um último olhar mortal antes do Diego seguir a filha.
Um calafrio desceu pela sua coluna ao imaginar tudo que o Diego estava guardando para jogar na sua cara na primeira oportunidade em que estivesse longe das meninas.
— Ele te machucou? — o Fred perguntou para ela.
— Ele não me machucou.
Muito, a Bia esfregou os braços onde o Diego tinha apertado.
— Como ele descobriu do Lourenço?
— Uma foto. Do shopping ontem. Alguém postou na internet.
De repente, foi demais, e a sala pareceu se encolher, sufocante, em volta da Bia.
— Fred. — Ela agarrou o braço do irmão. — Fica aqui. Não deixa ele levar as meninas.
— Onde você vai? — Ele a segurou de volta. — Bia, você tá bem?
— Eu preciso de uns minutos. Fica aqui, por favor. Toma conta dele.
O Fred olhou da irmã para o ex-cunhado, e pareceu entender que ficar na sala com as meninas era a melhor maneira de ajudá-la naquele momento, e ele a soltou.
— Eu só vou tomar um remédio pra dor de cabeça. — Ela tentou sorrir e tranquilizar o irmão, mas pela expressão dele não tinha adiantado.
Mas ela não podia ficar naquela sala nem mais um minuto, e subiu as escadas correndo, como se daquela maneira pudesse impedir seus problemas de irem junto.
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